17.7.10

«SOBRE ESTA PRAIA ME INCLINO»



Durante uma fase da minha vida o Guincho foi longamente a minha praia. Com ou sem ventania, basta aquele pedaço da serra de Sintra ao fundo, basta aquela água agitada e fria para o mundo ficar de fora. Foi assim faz hoje uma semana. Ninguém, água razoavelmente fria e um secador automático vindo directamente do céu. Talvez daqui a pouco esteja assim. Ou ao contrário. Não importa. Está lá.

Sobre esta praia me inclino.
Praias sei;
Me deitei nelas, fitei nelas, amei nelas
com os olhos pelo menos os deitados corpos
nus côncavos da areia ou dentre as pedras
desnudos em mostrar-se ou consentir-se
ou em tombar-me intentos como o fogo
do sol em dardos que se chocam brilham
em lâminas faíscas de aço róseo e duro.
Do Atlântico ondas rebentavam plácidas
e o delas ruído às vezes tempestade
que em negras sombras recurvava as águas
me ouviram não dizer nem conversar
mais do que os gestos de tocar e ter
na tépida memória as flutuantes curvas
de ancas e torsos, negridão de pêlos,
olhos semicerrados, boca entreaberta,
pernas e braços se alongando em dedos.
Aqui é um outro oceano.
Um outro tempo.
Miro dois vultos na silente praia
pousada rente à escarpa recortada abrupta
que só trechos de areia lhes consente:
dois corpos lado a lado corno espadas frias.
Ainda que desça a perpassar recantos
onde se acolherão mais corpos nus,
é um outro oceano, um outro tempo em outro
diverso em gente organizado mundo.
Ambíguos corpos, sexos vacilantes,
um cheiro de cadáver, que ao amor não feito
concentra de tristeza e de um anseio
de matar ou ser morto sem prazer nem mágoa.
Aqui mesmo de olhar-se um qual pavor gelado
pinta de palidez o rosto que sorria,
o corpo que se adiante ao gesto desenhado.
E nem mesmo de outrora e de outros mares
se atrevem a deitar-se imagens soltas
que uma vez alegria acaso tenham sido.
Se aqui nasceram deuses, nada resta deles
senão a luz mortal de corpos como máquinas
de um sexo que se odeia no prazer que tenha
e mais é de ódio ao ver-se desejado


Jorge de Sena, Sobre esta praia... Oito meditações à beira do Pacífico, 1977, in Poesia III.


Clip (e a lembrança do Guincho) daqui.

10 comentários:

floribundus disse...

nos anos 50 adorava esta praia porque podia apanhar banhos de sol todo 'pelacho' como diziam no alentejo do meu tempo.
nas outras de Cascais tinhamos de usar duas peças e havia peixe aranha.
um amigo morreu de desatre de automóvel onde está uma cruz junto ao farol

Anónimo disse...

Perdidamente...
Poesia de Florbela Espanca

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Anónimo disse...

Muito de acordo, João Gonçalves. É um sítio de encontro fantástico entre o verde, o azul,o vento e a areia cor de baunilha.
É um recanto mais para Portugueses que deixam o canto mais ocidental para quem nos visita.
PSL

Anónimo disse...

Como é diferente o Guincho. Porque é de mais difícil acesso e porque não é convidativo para os amantes do calor de torradeira e de águas paradas de malária. O comboio conduz democraticamente os delinquentes às vulneráveis praias da linha; a marginal e respectivas ligações facilitam o acesso mecânico a outros delinquentes-graduados e à rasquice suburbana remediada e disfarçada de gente. O Guincho é o fim da estrada - periférico, extremo, vasto e deserto, mal-equipado de cervejolas e arrotos. E depois o cenário grandioso e agreste, de que o Sr. Dr. gosta, faz mal às cabeças vagas que permanentemente buscam pontos-de-referência vulgares e seguros: sambalhada e brasileirices, barracas, Passadeiras escaldantes, bares de chinelo, lixo visual e anúncios, música pimba ou promotora de massacres sociais.
A dona clara, na sua pluma de hoje, descreve uma sua aventura à beira-mar - mas internacional, como é evidente. Tem medo de explicitamente extraír "incorrectos" silogismos do episódio, mas deixa que o leitor os tire. Até pretende isso. Como quem, tipicamente à esquerda, procura que os outros alertados façam alguma coisa, de modo a que ela possa retomar a sua vidinha - nacional e internacionalmente - em segurança e conforto. Já não acredito. A dona clara, como muita gente, vive na saudade secreta e envergonhada de outros tempos; tempos em que os meios materiais e o esclarecimento bastavam para seleccionar ambientes e era tudo virgem; tempos em que a separação das classes, feita ao corte-de-faca, conferia aos burgueses abastados e aos intelectuais a possibilidade de desfrutar de zonas demarcadas; em que não era preciso ser incrivelmente rico para se estar tranquilo. Pois bem, esse mundo acabou, e a sociedade que nela se movimentava é defunta.
Hipocrisia.

Ass.: Besta Imunda

Marota disse...

Também gostava, mas estou a 2 253 km de distância. Tomar banho em lagos de água doce e sem ondas não é a mesma coisa. Que sortudos são vocês aí em baixo.

Anónimo disse...

O Guincho é fantástico, o poema de Jorge de Sena também. Não posso dizer o mesmo de quem o frequenta, burgueses endinheirados, encarniçados que nem lagostas, com cheirinho a Aramis, a arrotar postas de pescada sobre o "estado da nação".

Mas o Guincho não tem culpa, dos burgueses que por lá andam.

Ass: Romão

Karocha disse...

eheheh JG.
As histórias que eu tenho do guincho com a minha canzoada, eram três, para não falar dos homens a nadarem ao contrário ;-)))

Agnelo disse...

O João Gonçalves diz que no Guincho, «com aquela água fria o mundo fica de fora»; mas devo dizer-lhe que eu, no Guincho, tenho sempre é a experiência contrária: com a água fria o meu mundo encarquilha-se e o que quer sempre é ficar para dentro. Talvez fosse por isso que «os homens nadavam ao contrário», Karocha! Mas a paisagem é linda, sim senhor; e a escassa companhia existente na praia é um bem inestimável.

Anónimo disse...

sempre convencida ea dar um ar da graça que não tem.....a D.KAROCHA

Karocha disse...

Anónimo das 11:52 PM

Vá-se Catar