30.4.06

MÁRTIRES


Em Espanha foi a doer. Aqui, quarenta anos depois, entre 74 e 75, foi praticamente a brincar. Não houve intelectual europeu e norte-americano que não quisesse aparecer ao lado da "república" espanhola. Hemingway, Malraux, Orwell ou Bernanos deixaram em forma de livro as suas "impressões". Em alguns deles, senão em todos, o tempo curou as ilusões "revolucionárias" e melancólicas, deixando transparecer isso mesmo nas suas obras. Na hora da verdade, a "república" foi tão ou mais impiedosa que os seus algozes liderados por Francisco Franco. O deslumbramento "romântico" pela "aventura" republicana espanhola impediu quase sempre uma leitura enxuta da guerra civil, despida de preconceitos. Há um livro que ajuda a perceber o que se passou, do historiador inglês Hugh Thomas, com tradução portuguesa. Isto vem a propósito de ter lido no Insurgente que o Papa Bento XVI beatificou cinquenta e três religiosos espanhóis vítimas da violência jacobina. Numa guerra, civil ou outra, há sempre mártires para todos os lados. Porém, a ao contrário do que doutrina o politicamente correcto, nunca existem mártires mais mártires do que os outros.

O HÁBITO DE DIZER MAL


Retemperado com um banho semi-gelado no Guincho, chego aqui e leio os "comentários" ao post anterior, uma citação - de conteúdo óbvio para quem não é absolutamente destituído - de Vasco Pulido Valente. Há, de facto, muita gente que não suporta ser confrontada com a nossa condição primitiva. Percebo. Tanto percebo que não resisti a ir ler na íntegra o texto de Maria Velho da Costa que é citado no comentário. Velho da Costa, para quem não se lembra, é um milenário expoente "feminista" da "cultura portuguesa", justamente celebrada nos finados do Estado Novo por ter sido uma das co-autoras das "Novas Cartas Portuguesas", um ousado derrame para os tempos, logo, proibido. Depois de a ler agora, fico mais certo da razão de VPV. Repare-se - não sei se o autor do comentário reparou - que o que verdadeiramente interessa a MVC, na sua pequenina acrimónia, é salientar a circunstância de, em tempos idos, ter sido removida como funcionária pública pelo então secretário de Estado da Cultura (VPV) - de quem presuntivamente dependia - de um qualquer lugar que ocupava em regime de destacamento. Ou seja, ele forçou-a, digamos assim, a "regressar à base", um assunto de pura intendência. De resto, as suas considerações farfelu são elucidativas do estado por que passa a nossa literatice contemporânea. Por isso, só mais uma nota, graças ao João Pedro George. Atenção, filistinos: também é (horrivelmente) de VPV. "Os portugueses não gostam que se "diga mal" de nada e desconfiam de quem diz. "Dizer mal" de um livro, de uma escola, de um hotel ou de uma política é sempre considerado um "ataque" de pessoa a pessoa e atribuído aos piores motivos: à inveja, à cobiça, ao ressentimento e por aí fora. Não ocorre a ninguém que "dizer mal" do livro não implica "dizer mal" da pessoa privada do escritor (...). "Dizer mal" é uma condição indispensável para produzir bem e obrigatória para produzir melhor. No hábito de "dizer mal" do que nós fazemos e do que os outros fazem reside a essência da capacidade de aperfeiçoamento e, por conseguinte, de competição."

O FRACASSO

"O país que aí está, trabalha, sofre e paga é, como de costume, um fracasso. Parece que, por baixo de uma grotesca marca de "modernidade", nunca saiu de facto da sua condição primitiva. Pobre, corrupto, irresponsável e apático, este Portugal não encontra com certeza razão para a sua própria sobrevivência".

Vasco Pulido Valente, in Público, 29.4.06

29.4.06

O TREINADOR

O sr. Scolari é insuportável. Pagam-lhe para treinar bola e não para dizer baboseiras com ar de que "todos lhe devem e ninguém lhe paga". Para isso já existe, e em melhor, o sr. Mourinho, uma exportação "gloriosa". Madail, o eterno "patrão" da bola portuguesa, parece disposto a engolir todos os sapos que Scolari, com a sua mediática delicadeza, lhe enfia pela goela abaixo. Os "fãs" da bola também. Scolari percebeu rapidamente o tipo de gente com quem veio lidar. Com toscos, trata-se toscamente. Na sua imensa vaidade, o sr. Scolari limita-se, afinal, a fazer o que lhe compete.

HEMINGWAY

Depois das guerras, da celebridade, da aventura, dos touros, de Cuba, de África, de Paris, das caçadas, do álcool e da depressão, Hemingway estava, como alguém num dos seus contos, "desesperado". Refugiou-se numa casa discreta no Idaho. A mulher apanhou-o várias vezes empunhando uma espingarda para se suicidar, um instrumento com que conviveu bem toda a vida. Para o fim, Hemingway já não convivia sequer com ele próprio. Não conseguia escrever o que, traduzido à letra, correspondia a não conseguir viver. Como Santiago, de O Velho e o Mar, não fora feito para a derrota. Num domingo de manhã, saiu do quarto discretamente enquanto a mulher dormia, desceu as escadas e abriu um armário onde guardava as suas armas. Tirou uma espingarda de dois canos. Meteu-a na boca e premiu o gatilho. "Um homem pode ser destruído, mas não derrotado".

OS MELHORES AMIGOS

Depois do cão, os melhores amigos de um homem são o Zoloft e o Lexotan.

O POBREZINHO NA LAPELA

Já existe uma inevitável comissão para tratar do PNAI. O PNAI é o "plano nacional de acção para a inclusão" - pode adicionar-se ao breviário de siglas do governo - a que Cavaco Silva, no âmbito da "cooperação estratégica", aludiu no discurso do 25 de Abril. A comissão já tem uma presidente e será provida com dezasseis (16...) criaturas oriundas das mais diversas entidadas ligadas à "problemática da exclusão social". Por outro lado, fica-se a saber que o próprio PR possui o seu "roteiro para a inclusão" no qual participará a primeira-dama. Ou seja, os indigentes, com ou sem abrigo, os velhinhos, as mulheres humilhadas e as criancinhas abandonadas, todos conhecidos pelo jargão assistencialista de "mais desprotegidos", têm garantido, desde já, um batalhão de técnicos, de burocratas, de comentadores e de políticos, encimados pelo "alto patrocínio" de Belém, para velar por eles. O pior é se o "roteiro", o PNAI e a piedade de circunstância deixam tudo mais ou menos na mesma, depois de produzidos os indispensáveis relatórios e consumadas as "visitas" caritativas e mediáticas aos abismos destas vidas. É que os "excluídos", ao contrário dos que andam à tona, não têm sequer voz para protestar ou reclamar "direitos". Todavia, quem é que não gosta de exibir um pobrezinho na lapela?

O CINZENTO DE BRUXELAS

O presidente da Comissão Europeia, o nosso dr. Barroso, promoveu um "seminário" com todos os membros da dita Comissão. Após o falhanço manifesto da "constituição europeia", a Europa burocrática procura novas linhas para se coser. Barroso falou de uma "agenda europeia positiva" e de uma "Europa dos resultados" provavelmente porque tinha de dizer alguma coisa. Muito bem. A questão, porém, não é essa. É antes saber-se se "agenda europeia positiva" e "Europa dos resultados" querem efectivamente dizer dizer alguma coisa. Ou se não são mais duas construções vazias e inconsequentes para uma Europa cada vez mais desencontrada consigo própria e entregue ao cinzento de Bruxelas.

28.4.06

OS MANDARINS

Eu votei para existir uma maioria absoluta. Todavia não desejo, antes pelo contrário, o absolutismo maioritário. Ontem à noite, refastelado no sofá, li no Público que a escolha do novo director de informação da Lusa tinha passado pelo gabinete do primeiro-ministro. Neste blogue, quando o dr. Morais Sarmento, no governo de Santana, começou a "pensar" numa "central de informação" ou de "comunicação", desconfiou-se da ideia. Não vi agora ninguém tugir nem mugir (excepção dupla) sobre esta coisa. Pelo contrário, uma "notícia" do Expresso sobre o putativo discurso do PR no 25/4 tem provocado uma fartura de derrames e de contra-derrames por aí afora. O Público, maldosamente, fornecia uma pequena biografia dos "adjuntos" do novo director. Um deles tem uma "vasta experiência" nestas andanças político-comunicacionais e, por mera coincidência, "serviu" em Macau, essa perturbadora sombra que há-de sempre pairar sobre o regime. Tem, pois, razão de ser reproduzir integralmente este post do Jorge Ferreira:

"CONTROLE

Uma notícia do Público dá-nos conta de que o gabinete do Primeiro-Ministro se envolveu directamente na escolha do novo Director da Lusa. Uma notícia destas no tempo de Santana Lopes teria modificado por completo a agenda mediática. Mas esta, passou despercebida face à indiferença geral. Mas há que pôr os nomes às coisas. A notícia é ESCANDALOSA. Ela mostra sobretudo como José Sócrates não está a brincar em serviço e pretende controlar ferreamente a comunicação social. Num país civilizado, a notícia teria provocado demissões, inquéritos e protestos. Cá não. Afinal, ainda bem há pouco tempo um Governo que havia decretado o fim da recessão pretendia gastar uns cêntimos numa central de comunicação. Assim, visto que a recessão continua, sempre se poupam uns dinheirinhos. É usar o que há."

ANO 32

No caminho para o exílio no Brasil, onde viria a suicidar-se, o escritor austríaco Stefan Zweig aportou em Lisboa em 1936. Mais tarde registaria no seu “Diário” que tinha encontrado na nossa capital “o esplendor da miséria”, não obstante a beleza da cidade. Decorriam quatro anos desde a chegada de Salazar à chefia do governo da Ditadura. O Estado Novo dava os primeiros passos espezinhando o que restava da infeliz I República. O regime e sua retórica pretendiam - à semelhança do que o antecedeu e do que se lhe seguiria em 1974 – “servir o país” e não “servir-se” do país, como se acusava a desvairada República de o ter feito. A história posterior é sobejamente conhecida. Agora já levamos trinta e dois anos de democracia e de liberdades. No balanço, temos a Europa graças a Mário Soares, a alteração de estruturas e equipamentos da década de Cavaco e pouco mais. Encheu-se o país de novos-ricos e de novos e de velhos pobres. A “sociedade civil”, salvo raríssimas excepções, permanece inerme e de mão estendida para o Estado. As novas gerações ignoram o que está para trás e estão-se nas tintas para a cidadania. Como escreveu há dias uma politóloga, trinta e dois anos depois, os portugueses estão desmobilizados. As instituições políticas e judiciais, com o Parlamento à cabeça, estão desprestigiadas e exangues. Os partidos são encarados como últimos redutos de inutilidades profissionais. Chega a duvidar-se da capacidade de realização de um governo de maioria absoluta, repleto de boas intenções e de “modernidade”, depois de anos de oportunidades perdidas. No país “real” sobrevive o mesmo “esplendor da miséria” de que falava Zweig, os mais pobres de entre os pobres da Europa. Não conseguimos ser cosmopolitas ou sequer sofisticados. Em suma, falta “qualidade de vida” à democracia portuguesa. Chegámos, assim, ao seu ano 32 em estado de pura esquizofrenia colectiva. Nem tudo é mau. A eleição do primeiro PR não oriundo especificamente da “esquerda” e da “luta anti-fascista” foi um sinal de maturidade e representou o enterro de velhos demónios e de novas fantasias. Cavaco Silva é, pelo menos, um penhor seguro de credibilidade e de rigor. Nesse sentido, a sua ascensão à chefia do Estado foi o melhor acto comemorativo do 25 de Abril em 2006. Para o ano, a democracia atinge a idade de Cristo. Oxalá não acabe como Ele.

(publicado no
Independente)

Nota: Este artigo foi escrito antes do discurso do PR proferido perante o Parlamento no passado dia 25. Sobre isso, pronunciei-me aqui.

27.4.06

A "ÉTICA REPUBLICANA"

Entre o dia 12 de Abril, passando pelo 25, nenhum alto ou menos alto dignitário do regime se lembrou de invocar a maravilhosa "ética republicana", como chama a atenção o Anarca. Por que será?

EVERYMAN


Pelo André Moura e Cunha, fico meio "por dentro" do "plot" do último livro de um dos maiores escritores contemporâneos, Philip Roth. O livro intitula-se "Everyman" e estará disponível, na próxima semana, nos Estados Unidos. Pareceu-me que podia ser a minha proto-biografia. A auto, claro.

LER OS OUTROS

O texto de Fernanda Câncio, escrito em 1993 para a Grande Reportagem, sobre o "Holocaust Memorial Museum" de Washington.
"Foi um filósofo alemão - evidentemente alemão - Theodor W. Adorno, que o disse: após Auschwitz, não é mais possível. Pensar. Lembrar, sem dúvida. E escrever. Lamentar os mortos, chorar os vivos. E esquecer. Ergue-se contra isso a dor. Um museu. Mas a verdade decretada é que se esquece. Sempre. É esse o ofício da memória: fazer crer que é possível. Pensar, viver . E não ter visto tudo, nunca."

O "DEBATE"

Não ouvi, não vi e não faço tenção de ver ou de ouvir nada sobre o "debate mensal" com (e concebido para) o primeiro-ministro no Parlamento. Como confio na perspicácia do Rui Costa Pinto (e nas linhas enxutas do Jorge Ferreira), basta-me isto para ficar esclarecido. "Tantas palavras e cálculos provisórios para dizer o óbvio: o governo vai dar mais uma cacetada nas pensões dos portugueses. Tantas desculpas para assumir o que todos os portugueses já perceberam: o Estado não vai cumprir o que prometeu a quem trabalhou uma vida inteira na expectativa de ter uma velhice tranquila." Continuamos no "bom caminho", a espantar a classe média. Depois não se queixem.

MAIS NINGUÉM?

Em relação à permanência de Bénard da Costa na Cinemateca Portuguesa até à sua gloriosa mumificação, já disse aqui o que pensava. Também pensava nessa altura que a ministra da Cultura tinha tomado uma decisão política sobre isso. Eis que agora se dá o dito por não dito e Isabel Pires de Lima, com a indispensável anuência de Sócrates, dispôe-se aparentemente a prolongar a "licença especial" que permite a Bénard - aos setenta anos e com uma missão pública impecavelmente cumprida mas porventura exaurida- continuar à frente da Cinemateca. Criticava-se o Estado Novo por convolar em vitalícia a maior parte dos cargos de alta direcção da administração pública. A democracia, pelos vistos, também gosta de ter as suas jarras de estimação. Entretanto foi posta a correr uma inevitável "petição online" em prol de Bénard e, indirectamente, contra Pires de Lima. As capelinhas e o amiguismo mexeram-se depressa. Prado Coelho já as tinha excitado. Parece que está a surtir efeito. A ministra naturalmente tremeu. São sempre os mesmos para o mesmo, dos sete aos setenta e sete anos. Não haverá mais ninguém?

Adenda: Sobre o mesmo tema, João Morgado Fernandes.

O AMIGO DE PENICHE...

... continua.

UM RUDIMENTAR MODELO (actualizado)


José Medeiros Ferreira podia editar no Bicho Carpinteiro o artigo que escreveu para uma revista, intitulado "Os Estados também se abatem?", cuja notícia recolhi do Público. Talvez os aprendizes de feiticeiro que incensam uma fantasiosa "sociedade civil" que supostamente nos vai tirar do atoleiro, possam aprender alguma coisa. E - atenção - eu não sou "socialista". Todavia não posso deixar de concordar com a manutenção de um Estado nacional, não "suburbanizado", e com isto: "crédito, casa e consumo, eis o nosso rudimentar modelo".

Adenda: Paulo Pinto Mascarenhas esclareceu que a revista a que aludo é a Atlântico, no seu número de Maio, já à venda. Mais uma razão para eu gostar da Atlântico. É livre. E, de facto, o meu pedido de desculpas ao Paulo pelo lapso.

26.4.06

O LIMITE

"A gente faz qualquer trabalho para ganhar a vida e sustentar a vida. Suportamos tudo mas há um limite". De acordo com o Público, o homem que agrediu mortalmente um presidente de uma Junta de Lisboa e que feriu outras pessoas, proferiu estas palavras pouco antes de ter sido detido na sua casa. Parece que ia ser notificado disciplinarmente para ser despedido. O homem é imigrante mas podia ser português. A simples ideia do "limite" é assustadora. Quantas mais cabeças desesperadas andarão por aí à beira do limite? Que tensões se escondem sob o manto diáfano do "optimismo" e da "modernidade" anunciados?

PAÍS DO EUFEMISMO

Ao ler levemente os comentários, as notícias e a blogosfera mais dada ao "respeitinho", tudo acerca do pós 25 de Abril de 2006 - por sinal nada político -, lembrei-me, não sei bem porquê, do "País Relativo" do O'Neill. Também gosto do Ruy Belo, como o presidente da República, mas não exactamente daquele Ruy citado. Parece-me que O' Neill vem mais a propósito do que se palrou ontem no Parlamento e do que se vai seguir, se é que se vai seguir alguma coisa. Trinta e dois anos depois continuamos como o poeta nos descreveu nos anos sessenta, "país engravatado todo o ano/e a assoar-se na gravata por engano."

País por conhecer, por escrever, por ler...

País purista a prosear bonito,

a versejar tão chique e tão pudico,

enquanto a língua portuguesa se vai rindo,

galhofeira, comigo.


País que me pede livros andejantes

com o dedo, hirto, a correr as estantes.


País engravatado todo o ano

e a assoar-se na gravata por engano.


País onde qualquer palerma diz,

a afastar do busílis o nariz:

-Não, não é para mim este país!

mas quem é que bàquestica sem lavar

o sovaco que lhe dá o ar?

Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.


País do cibinho mastigado

devagarinho.

País amador do rapapé,

do meter butes e do parlapié,

que se espaneja, cobertas as miúdas,

e as desleixa quando já ventrudas.


O incrível país da minha tia,

trémulo de bondade e de aletria.

Moroso país da surda cólera,

de repente que se quer feliz.

Já sabemos, país, que és um homenzinho...


País tunante que diz que passa a vida

a meter entre parêntesis a cedilha.

A damisela passeia
no país da alcateia,

tão exterior a si mesma

que não é senão a fome

com que este país a come.

País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?

País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,

inaugurando esguichos no engonço

do gesto e do chavão.

E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!


Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.

País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que, com razão duvida.

Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.

Nhurro país que nunca se desdiz.


Cedilhado o cê, país, não te revejas

na cedilha, que a palavra urge.

Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,

a nós e à tirania,

sem perder tempo nem caligrafia.

Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,

que parece comprida!

A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.

País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,

que entre dois sudários não contém senão

a triste maçã do coração.

Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!


País das troncas e delongas ao telefone

com mil cavilhas para cada nome.

De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...


Embezerra, país, que bem mereces,

prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.


Desaninhada a perdiz,

não a discutas, país!

Espirra-lhe a morte pra cima

com os dois canos do nariz!


Um país maluco de andorinhas

tesourando as nossas cabecinhas

de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!


Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro

e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...


No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,

a conversa pancrácia e o jeito alvar.

Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.

Mas também me ofereceste a cordial botelha,

empinada que foi, tal e qual clarim!

INDECISÕES

Depois das comemorações trágicas do 25/04, a cada esquina mais esquizofrénica, brotam, em constante contagem crescente, simpatizantes activos de movimentos ditos de extrema-direita. Curiosamente, os sítios de recruta são os honoríficos estádios de futebol. Se, por um lado, é inevitável assistir-se à “tarde descontraída para conhecer os jardins e a residência oficial do Primeiro Ministro” que os portugueses possidónios não quiseram perder, é simultaneamente desastroso assistir a estas demonstrações obsoletas da ignorância. “Decididos até onde ir, não devemos ir mais além” é uma boa lição de Salazar que, quem gostar de o seguir, podia aproveitar convenientemente. Portugal mantém-se inanimadamente às apalpadelas e sem grandes decisões.

25.4.06

VINTE E CINCO DO QUATRO

É a primeira vez que temos um PR que não veio da "luta anti-fascista", nem pertence à chamada "família socialista". Eanes era atípico, porém um "militar de Abril" e de Novembro. Cavaco, e bem, não perdeu muito tempo com a revisitação da história. Falou para diante e sobre um país esquecido que muito provavelmente não o ouviu. Foi gentil e institucional nos "remoques" propriamente "políticos". No "justicialismo" que reclamou por parte da gestão pública, limitou-se a seguir a vulgata social-democrata. Não foi por acaso que, no final, os olhos da "esquerda moderna", representada por Sócrates, brilhavam. Nem sequer faltou a proposta de um "pacto" ou de uma "união nacional" em torno da ideia, já de si consensual, da "inclusão". Em suma, o regime celebrou-se a si próprio e foi para casa mais descansado depois de ouvir o presidente.

VINTE E CINCO DO QUATRO - 2

"NÃO SEI QUAL O PIOR: Se o "Especial Abril" na RTP1, ontem, se o discurso-padrão no parlamento, hoje. O português solene-televisivo é o produto do cruzamento de um campino com uma rapariguinha do shoppingue."

Filipe Nunes Vicente, in Mar Salgado

VINTE E CINCO DO QUATRO - 3


"Os cravos foram, em última análise, uma oferta do SNI aos golpistas. Destinavam-se as ditas flores a assinalar uma efeméride relacionada com o turismo e, como tal, a serem oferecidos aos turistas que deambulassem nesse dia 25 de Abril em Lisboa. Quanto à loura criancinha do cartaz pode o senhor Presidente da República tranquilizar-se: nasceu em família de cineastas e burguesíssimos. Se a sua vida correu mal não foi por ser pobre. O que é bizarro é que 32 anos depois do 25 de Abril continuamos a ter uma noção poster da democracia e transformámos a botânica num item da política."

Helena Matos, in Blasfémias

VINTE E CINCO DO QUATRO - 4

"mais

uma operação furacão ..... que se fica por operação peidinho.......do "café com leite" nem as borras apanharam... (O vale e azevedo era mesmo tótó...)

ainda por cima cheira-me que o dinheiro dos impostos vai ser gasto a indmenizar estes cidadãos exemplares...

não sei não mas sempre se podia criar a DGCDTTMNAUMGDCC.... (direcção geral e central de tentamos tentamos mas não acertamos uma mas gastamos dinheiro cumó caraças)"

In Anarca Constipado

LER


Este bonito texto de Fernanda Câncio, com uns anos, sobre e com Amos Oz.

24.4.06

COISAS QUE INTERESSAM

Na 2:, às 22:30, começa a 5ª e última temporada de "Sete Palmos de Terra". Vai até Julho, vá lá.

UMA COISA


House: And that’s all you are? A musician?
John: I got one thing, same as you.
House: Really? Apparently, you know me better than I know you.
John: I know that limp. I know the empty ring finger. And that obsessive nature of yours, that’s a big secret. You don’t risk jail and your career just to save somebody who doesn’t want to be saved unless you got something, anything, one thing. The reason normal people got wives and kids and hobbies, whatever. That’s because they don’t got that one thing that hits them that hard and that true. I got music, you got this. The thing you think about all the time, the thing that keeps you south of normal. Yeah, makes us great, makes us the best. All we miss out on is everything else. No woman waiting at home after work with the drink and the kiss, that ain’t gonna happen for us.
House: That’s why God made microwaves.

ESTA...

... tem graça. E esta também, mesmo não tendo.

23.4.06

NÃO ACABEM COM ELE


"A história do deficit - durante décadas a fio acompanhada da do "empréstimo" - continua, tranquilamente, a ser a história das finanças portuguesas. Já Rodrigues Sampaio (1806-1882), numa tirada memorável, que apanhava a essência da coisa, clamou perante o parlamento: "Quase me chego a assustar de que acabe o défice entre nós, com medo de que, acabando ele, acabe o sistema parlamentar."


In Minha Rica Casinha

A FESTA DO DR. MEGA

O "crítico" Henrique Silveira tem andado num frenesim na "Festa da Música" do dr. Mega. Este, o venerando dr. Mega, não perde uma oportunidade para aparecer nos telejornais, num daqueles "directos" normalmente a cargo de umas moças que julgam - e se calhar acertam - que estão na defunta feira popular e que perguntam aos incautos se gostam do "barroco" com o mesmo ar de quem pergunta se gostam de tremoços. A "Festa da Música" é uma espécie de circo musical que anualmente se oferece ao "povo" que, por regra, desdenha a música dita erudita. Os jornais e as televisões fazem disto um estardalhaço palonço como se a música dita clássica fosse uma extravagância. É o que dá num país onde não se educam as crianças para o bom gosto, onde não se promove e defende o património e onde não existem tradições cosmopolitas e sofisticadas. Qualquer pinderiquice é uma "festa". Até o "crítico", apesar de "ir a todas", reconhece:

"Tripla bola preta para o público inculto que aplaude tudo o que lhe põem à frente. Péssimo para a qualidade musical e para os próprios músicos. Os bravos histéricos e as palmas de pé para toda a porcaria que se apresenta exactamente da mesma forma para o concerto superlativo ou para o médio. As criancinhas de colo às 23h também se lamentam, a essa hora devem estar na caminha e não a sofrerem num concerto junto com os pais e a fazerem sofrer quem quer escutar música sem berraria. O pior da Festa da Música é a mentalidade de supermercado que se gera. O melhor é mesmo a Música e a Festa em redor da mesma."

Onde é que ele julga que está? Em Bayreuth? Na ópera de Zurique ou no Lincoln Center de Nova Iorque? Habitue-se.

O "DR."


O José Pacheco Pereira, ou alguém por ele, descobriu esta "inscrição" em forma de pichagem num dos pilares da Ponte 25 de Abril a qual, aliás, nada deve à data em causa. Os costumes revolucionários e a manifesta falta de jeito que temos para lidar com a história, a boa e a má, fizeram o resto. Eu só me admiro de não haver mais pichagens destas noutros pilares, noutros muros. Como escreve JPP, é todo um programa em apenas duas letras.

22.4.06

LER OS OUTROS

Vale a pena, por ser insuspeito, seguir as sugestões de Vital Moreira sobre "medidas para reduzir o défice das contas públicas" no Causa Nossa. A primeira - estabelecer um limite máximo para as pensões de reforma - é de elementar equidade. Algumas das reformas mais ou menos milionárias que foram recentemente divulgadas pelos media resultaram não exactamente dos "descontos" efectuados ao longo da vida profissional pelos respectivos beneficiários e ex-funcionários, mas antes da circunstância de terem terminado a carreira em determinados lugares que lhes trouxeram automaticamente um acréscimo salarial repercutido na pensão de reforma (p.ex. um técnico superior de 1ª ou de 2ª classe da carreira normal que se aposente como sudirector geral ou director geral, ou alguém de uma carreira especial que se reforme num cargo público para que foi nomeado em comissão de serviço e que lhe conferia determinado suplemento remuneratório sobre o vencimento-base). São os impostos dos "activos" que pagam este "excesso", como bem lembra V. Moreira.

SE UM VIAJANTE NUMA TARDE DE CHUVA


Tive a pachorra de ler não sei quantos jornais e páginas "culturais", do dia e atrasados. Sobre as "culturais", não vale sequer a pena "bater no ceguinho". O Actual, do Expresso, é um imenso empadão mais ou menos familiar que se folheia em cinco minutos. Escapam as palavras, não sei se quinzenais ou mensais, do Joaquim Manuel Magalhães. O Mil Folhas do Público é mais aceitável, talvez por ser mais pequeno e "directo". De vez em quando embarca em estopadas como a presente entrevista a António Tabucchi, um "campeão" na luta anti-Berlusconi, alguém cujos livros já gostei mais. O do Diário de Notícias é maneirinho, caseiro e tem a crédito as crónicas de Mario Vargas Llosa. Noutra "vertente", o Economia, também do Expresso, vale hoje por uma citação, tirada do DN, de Manuela Arcanjo, ex-ministra da Saúde de Guterres e ex-secretária de Estado do Orçamento, que diz o seguinte do actual governo: "O que muito sinceramente me desagrada é sentir que a acção do governo supôe que os cidadãos/eleitores podem ser tratados como consumidores de sabonetes! Não é preciso pensar, basta comprar". Isto resume bem a ideia com que fiquei da abundante leitura das notícias, crónicas e comentários sobre a pátria política. Parece que o país começa a estar desconfiado. A palavra "pânico" - em má hora utilizada pelo dr. Teixeira dos Santos precisamente para tentar evitar que se entrasse nele - depois de dois ou três relatórios desfavoráveis ao prometido progresso e "crescimento" da nação, denuncia a consciência realmente preocupada do ministro das Finanças. O Paulo Gorjão sintetiza bem a coisa: "Há diversos estados de graça, que se vão perdendo uns atrás dos outros, numa espécie de cadeia de transmissão. Primeiro perde-se uma pequena audiência, que é irrelevante na sua dimensão, mas extremamente importante pelo facto de ser bem informada e de ter acesso aos meios de comunicação. Perdidas as elites, o resto é uma questão de tempo."

A VELINHA

"Faz o que eu digo, não faças o que eu faço

O canil regista a impagável coerência editorial de José Manuel Fernandes. Depois de invectivar, num apaixonado artigo na revista Atlântico, os jornalistas que abraçam causas, o director do Inimigo Público decidiu acender uma velinha pelos judeus mortos no ano de mil não sei quantos e troca o passo. Obviamente as causas pró-semitas não estão na lista dos pecados criticáveis. Esses, já se sabia, são só os que dizem respeito a comunas, paneleiros e fufas. Viva o Zé Manel!"

Francisco Trigo de Abreu, in Mau Tempo no Canil

TAMBÉM EU

"Festa?

Na televisão à noite, na rádio de manhã, nos jornais por todo o lado. Estou farto da Festa da Música. País erudito uma vez por ano."

João Morgado Fernandes, in french kissin'

ÚLTIMA OPORTUNIDADE

A "lei da paridade" - essa humilhação institucional e democrática das senhoras "políticas" feita com a sua anuência - não passou numa primeira votação na AR. O presidente do parlamento, como lhe competia, deu a lei como chumbada. De imediato a "maioria" estremeceu e, graças ao milagre do "quórum dinâmico" - um conceito a reter e de que iremos ouvir falar ao longo da legislatura - que incluiu o Bloco de Esquerda, a lei lá passou numa nova votação. No espaço de apenas uma semana, a maioria absoluta do PS deu sinais preocupantes da sua irresponsabilidade política e institucional. Não que eu defenda a dita lei, bem pelo contrário. O que eu defendo e tenho o direito a exigir, como cidadão que vota e paga impostos, é que os "meus" deputados cumpram os seus deveres mais elementares, independentemente das matérias em causa. Como se isto não bastasse, Manuel Alegre ergueu-se uma vez mais da sua irrelevância para "avisar", numa entrevista, que Cavaco não é o "comandante supremo do regime". Talvez estivesse na hora de Helena Roseta lhe explicar, numa intermitência de lucidez, que ele perdeu as eleições presidenciais e que o seu milhão de votos não vale absolutamente nada. E que, à medida que o tempo passa pelo regime de que Alegre se supôe subtil guardião, Cavaco Silva tenderá a ser cada vez mais uma referência incontornável. Como se disse e repetiu na campanha, o voto presidencial representava, de certo modo, uma última oportunidade. Cavaco pode já começar a explicar isso no discurso do 25 de Abril.

21.4.06

EXEMPLARES

No momento em que escrevo, está a decorrer o período dentro do qual os deputados que faltaram à sessão de 12 de Abril último têm de apresentar as suas justificações. Nunca é de mais lembrar que, pelo meio da coisa, alguns desses deputados tinham previamente assinado o “livro de presenças” e que, depois, desapareceram no ar. Um deles foi essa singular figura "ética" e modelo de cidadania varonil que é Manuel Alegre. Lembro que existe na AR uma maioria absoluta de um partido que não pôde funcionar porque parte dos seus deputados se havia sumido. Do seu líder de bancada, o improvável Alberto Martins, não se ouviu um murmúrio. Do lado do PSD, o maior partido da oposição, dois terços dos seus representantes pura e simplesmente desapareceram. O chefe parlamentar passou a responsabilidade do ocorrido para os maioritários ao lado que tinham, segundo ele, a obrigação de garantir o quórum para as votações. Os dos restantes mini-partidos pesam pouco nesta pequena história de opereta, embora tivessem aparecido, do lado do PP, várias versões relativas ao ocaso súbito de deputados seus. Não houve cão nem gato que, muito legitimamente, deixasse de apontar o dedo à representação nacional. O regime, meio envergonhado, soltou as rédeas da moralidade política para fustigar, com moderação, os seus pares. Consta que na próxima terça-feira o Presidente da República também irá dar voz à sua preocupação pelos maus costumes democráticos. Como diria o dr. Salazar, está tudo muito bem assim e não podia ser de outra maneira. De facto, é suposto os deputados representarem o país que os elegeu, mesmo sem saber muito bem em quem é que está, em concreto, a votar. Isso tem como consequência imediata a irrelevância da maior parte dos ditos deputados, uma consequência, aliás, que eles levam muito a peito. A “casa da democracia”, como gostam de a apelidar, tem, afinal, telhados de vidro. Todavia não é nada que nos deva espantar. Em certo sentido, os nossos deputados até são exemplares. Eles são o que nós somos e nós somos o que eles são.

(publicado no Independente)

"NÃO SE ESTÁ BEM EM LADO NENHUM



Não me apetece escrever. "Nunca se está bem em lado nenhum" é o inspirado título da crónica da "Vanessa" (Ana Sá Lopes) no Diário de Notícias de hoje. Infelizmente a versão online prefere, na "opinião", a faladura do dr. Vitorino (que ninguém muito justamente lê) e a dos dois talentosos moços da geração dos 30, J. Miguel Tavares e Pedro Lomba. ASL recorre a dois exemplos literários suicidas que aprecio, Cesare Pavese e Stig Dagerman. "A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer", escrevia Dagerman. Sem ser metafórico, parece-me justa a asserção. Nada, pois, de política apesar de ela prometer. Todavia para isso deve recorrer-se ao nosso Fernão Lopes da blogosfera que anda, por assim dizer, a escrever a "crónica de uma crise anunciada". Depois de o ler, dou razão à Ana Sá Lopes. Não se está bem em lado nenhum.

20.4.06

COMENTAR O COMENTÁRIO


José Pacheco Pereira publicou no Público de quinta-feira um interessante ensaio semiótico-interpretativo acerca dos "comentários" na blogosfera, "A fauna das caixas de comentários", dando particular atenção ao "anonimato". Como o Abrupto não tem "caixas de comentários", a não ser o mail do autor, socorro-me da edição do Eduardo Pitta - que também só tem mail - para colocar à consideração dos eventuais "comentadores" esta análise (não integral) de P. Pereira. Para além disso, o texto é um marco nas prosas de JPP já que, pela primeira vez, ele se refere ao blogue O Espectro, entretanto encerrado, com os seus extraordinários 484 comentários finais. Força.

"A Rede está a mudar tudo, a criar coisas novas, a realizar outras muito antigas que as tecnologias até agora existentes ainda não permitiam e a dar eficácia a velhos, e muitas vezes maus, hábitos que existiam no mundo exterior e agora passam para o mundo interior da Internet. Alguns casos recentes voltaram de novo a mostrar a Internet sob uma luz pouco amável, bem preconceituosa aliás, porque nada do que lá se faz se deixou de fazer cá fora. [...] A caixa de comentários tornou-se numa espécie de chat, que parasita a notoriedade do blogue, como já acontecera no Espectro com os seus finais 484 comentários, onde as pessoas se encontram numa pequeníssima “aldeia global”, que tomam como sua. O comportamento destas pessoas-em-linha é compulsivo, eles “habitam” nas caixas de comentários que são a sua casa. Deslocam-se de caixa para caixa de comentário, deixando centenas de frases, nos sítios mais díspares, revelando nalguns casos uma disponibilidade quase total para comentar, contracomentar, atacar, responder, mantendo séries enormes que obedecem [...] São, na sua esmagadora maioria, anónimos, mas o sistema de nick names permite o reconhecimento mútuo de blogue para blogue. Estão a meio caminho entre um nome que não desejam revelar e uma identidade pela qual desejam ser identificados. Querem e não querem ser reconhecidos. [...] Trocam entre si sinais de reconhecimento, cumprimentam-se, desejam-se boas férias, e formam minicomunidades que duram o tempo de uma caixa de comentários aberta e activa, o que normalmente dura pouco. Depois migram para outra, sempre numa tempestade de frases, expressando acordos e desacordos, simpatias e antipatias, quase sempre centrados na actividade de dizer mal de tudo e de todos. Imaginam-se como uma espécie de proletariado da Rede, garantes da total liberdade de expressão, igualitários absolutos, que consideram que as suas opiniões representam o “povo”, os “que não têm voz”, os deserdados da opinião, oprimidos pelos conhecidos, pelos célebres, pelos “sempre os mesmos”. São eles que dizem as “verdades”. Mas não há só o reflexo do populismo e da sua visão invejosa e mesquinha da sociedade e do poder, há também uma procura de atenção, uma pulsão psicológica para existir que se revela na parasitação dos blogues alheios. Muitos destes comentadores têm blogues próprios completamente desconhecidos, que tentam publicitar, e encontram nas caixas de comentários dos blogues mais conhecidos uma plataforma que lhes dá uma audiência que não conseguem ter. Não são bem Trolls, sabotadores intencionais, mas têm muitas das suas formas perturbadoras de comportamento. A sua chegada significa quase sempre uma profusão de comentários insultuosos e ofensivos que afastam da discussão todos os que ingenuamente pensam que a podem ter numa caixa de comentários aberta e sem moderação. Quando há um embrião de discussão, rapidamente morto pela chegada dos comentadores compulsivos, ela é quase sempre rudimentar, a preto e branco, fortemente personalizada e moralista: de um lado, os bons, os honestos, os dignos, do outra a ralé moral, os ladrões, os preguiçosos que vivem do trabalho alheio e dos impostos dos comentadores compulsivos, presume-se. O que lá se passa é o Faroeste da Rede: insultos, ataques pessoais, insinuações, injúrias, boatos, citações falsas e truncadas, denúncias, tudo constitui um caldo cultural que, em si, não é novo, porque assenta na tradição nacional de maledicência, tinha e tem assento nas mesas de café, mas a que a Rede dá a impunidade do anonimato e uma dimensão e amplificação universal. O que é que gera esta gente, em que mundo perverso, ácido, infeliz, ressentido, vivem? O mesmo que alimenta a enorme inveja social em que assentam as nossas sociedades desiguais (por todo o lado existe este tipo de comentadores), agravada pela escassez particular da nossa. Essa escassez não é principalmente material, embora também seja o resultado de muitas expectativas frustradas de vida, mas é acima de tudo simbólica. Numa sociedade que produz uma pulsão para a mediatização de tudo, para a espectacularização da identidade, para os “15 minutos de fama” e depois deixa no anonimato e na sombra os proletários da fama e da influência, os génios incompreendidos, os justiceiros anónimos, o “povo” das caixas de comentários, não é de admirar que se esteja em plena luta de classes."

Adenda:
Afinal, o texto pode ser lido na íntegra no Abrupto onde JPP já o colocou.

EVIDÊNCIA

Imagem "furtada" ao Macroscópio. É verdade, a vida é mesmo puta.

A POLÍTICA CANSA

A tentação de faltar ao trabalho político está na moda. Segundo o Público, Manuel Maria Carrilho, por sinal um dos deputados mais faltosos, abandonou o plenário da vereação da Câmara Municipal de Lisboa num momento crucial para votar uma proposta que interessava a umas centenas de trabalhadores do município. A sua ausência provocou o chumbo da dita proposta, graças ao voto de qualidade do presidente, uma vez que Maria José Nogueira Pinto votou ao lado da "esquerda". Carrilho há muito que não escreve nenhum livro ou artigo de filosofia. Os seus últimos tempos, como político, têm sido desastrosos e quase só se safa como "o marido de Bárbara Guimarães". É pena e, para quem o apoiou noutras ocasiões, uma desilusão. Pelos vistos, a política cansa. Pode-se ir embora.

19.4.06

A RAZÃO DE RATZINGER

Passa hoje o primeiro ano do pontificado de Bento XVI. Dir-me-ão que falo demais deste Papa. É bem provável. Gosto de pouca gente e desconfio da natureza humana, como Ratzinger. Talvez por isso o convoque a este blogue tantas vezes. Quando Ratzinger foi escolhido, os "comentários" então produzidos raramente ultrapassaram o patamar da vulgaridade, como se pôde ver num documentário apresentado há pouco pela RTP. Reduzir Ratzinger ao papel de "grande inquisidor" ou a líder espiritual ultra-conservador é uma graçola medíocre e uma leviandade intelectual. Este primeiro ano de pontificado revelou um Papa fiel à tradição da Igreja, seguro nos seus fundamentos e, por consequência, tranquilo no seu diálogo com o mundo "moderno". A encíclica "Deus Caritas Est" é, em letra de forma, a tradução desse propósito. Ratzinger vem em nome da reconciliação da Igreja com o seu próprio "mundo" e com o mundo, não tanto na concepção cosmopolita e "globalizadora" de João Paulo II, mas mediante uma bem madura e pensada estratégia de "pequenos passos". Na homilia que antecedeu o conclave que o elegeu como Sumo Pontífice, Ratzinger afirmou que "estamos a avançar para uma ditadura de relativismo que não reconhece nada como certo e que tem como objectivo central o próprio ego e os próprios desejos". Exigiu uma fé "mais madura" e um combate sem tréguas ao "radicalismo individual" que nos faz "ser criança andando ao sabor de ventos das várias correntes e das várias ideologias". A um ano de distância, nunca Ratzinger teve tanta razão.

O QUE MERECEMOS

Com o barril de petróleo a chegar aos setenta e quatro dólares, com o FMI a rever em baixa a previsão do nosso crescimento económico - só para falar das maleitas a que convém prestar alguma mísera atenção -, a RTP "oficiosa" abre o Telejornal com a inauguração do casino de Lisboa onde algumas centenas de inúteis e gente de plástico moviam de um lado para o outro a sua frivolidade. Só temos, afinal, o que merecemos.

PEP

A arte de governar por siglas segue o seu imaginativo e imparável caminho. Pelo Rui Costa Pinto ficamos a saber que existe um PEP, um tal "passaporte electrónico português". Enquanto isto, os outros passaportes, os mais rafeiros, continuam a ser utilizados por esse mundo fora como moeda falsa. É a nossa sina, "em pedaços repartida", como dizia o bardo.

A CONTINUIDADE FUNESTA

"A insónia remete-nos para fora do espaço dos vivos, para fora da humanidade. Somos excluídos. Afinal, o que é a insónia? Às oito horas da manhã estamos exactamente no mesmo ponto em que estávamos às oito horas da noite. Não há nenhum progresso. Não há mais do que essa imensa noite que ali está. E a vida só é possível através da descontinuidade que o sono proporciona. O desaparecimento do sono cria uma espécie de continuidade funesta."

Cioran

BLANCHOT


Apetecia-me fazer como Maurice Blanchot. Ser uma posta restante, um apartado, quase ninguém e praticamente tudo.

18.4.06

FACTO, NORMA, VALOR


Pelo José Adelino Maltez tomo conhecimento que desapareceu o jurista-filósofo brasileiro Miguel Reale, pelos vistos com uma provecta idade. De repente fez-se luz no meu inconsciente jurídico e lembrei-me que de Reale provinha a teoria do tridimensionalismo jurídico que me ensinaram no primeiro ano do curso. Não sei bem porquê, sempre simpatizei com essa teoria que procurava trazer o direito para a "cultura" e para a filosofia, encarando o fenómeno jurídico como um híbrido em que se misturam factos, normas e valores. Quando o estudei, sempre encarei com alguma desconfiança o direito jusnaturalista e achava graça à chamada "teoria pura" do sr. Kelsen. Outra expressão de que gosto e que pertence, salvo erro, a Jhering, é a do chamado "sentimento jurídico colectivo". Este forma-se, a meu ver, quando justamente ao facto e à norma se alia o conceito de valor, por vezes desprezado pela cidadania, outras tantas pelos poderes. Na política doméstica, aliás, onde abundam juristas, talvez não fizesse mal a leitura de Miguel Reale ou dos "Princípios de ciência política - o problema do direito", perdoe-me o José Adelino a propaganda ao seu livro. Há mais vida para além da chamada "normatividade" e, quer Reale, quer José Adelino Maltez, ajudam-nos a perceber isso. Para o que me havia de dar a depressão.