5.8.10

POR QUE É QUE A VIDA TEM DE SER ESTA PORCARIA?


Na morte de Marilyn*

Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decidia dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou

Ruy Belo

*5 de Agosto de 1962

5 comentários:

Anónimo disse...

Admirável Poema,daquele que invejava o "que administra sàbiamente a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias". Obrigado por tantas citações de grande nivel que tem ultimamente proposto. E lidas ou ouvidas inesperadamente numa assaz poluída blogosfera,são sempre algo de renovado,o que apesar do pessimismo aqui habitual ,nos dá alguma esperança em estarmos vivos

Anónimo disse...

Lindíssimas palavras dedicadas a uma das actrizes - em corpo e alma - mais bonitas do mundo. Nunca mais será esquecida. Parabéns pela sua sensibilidade ao lembrá-la no dia em que passam 48 anos sobre a sua trágica morte. Que Deus a tenha em descanso. O descanço que o seu corpo tanto procurou em vida e nunca encontrou e a paz que a sua alma tanto necessitava mas que cedo lhe foi roubada. Descanço e paz que tristemente só acabou por encontrar na morte. Talvez Deus na Sua imensa sabedoria se tenha apiedado do seu enorme sofrimento sobretudo da alma e resolvido levá-la mais cedo para junto de Si. Marilyn era boa e sensível demais para viver neste mundo. E este mundo não mereceu uma mulher como Marilyn.
Maria

Anónimo disse...

Estava aqui a pensar na ignorância ou má fé que habitam a cabeça dos que dizem não perceber Saramago por causa da pontuação...

Isabel disse...

A pontuação (ou ausência dela) em poesia nada tem a ver com aquilo que Saramago faz com a sua prosa. E, já agora, o que dele afasta os espíritos sensíveis será, sobretudo, o seu neo-realismo brutal e deslocado no tempo, com pretensões de inovador, mas fiel à cartilha marxista do bom povo explorado, da imbecilidade dos poderosos e da devassidão do clero. Não misturemos a evocação (bela) duma mulher bela com a feia história dum homem feio.Quando admitirão os fiéis de Saramago que o seu ídolo é detestado por muitos, enquanto pessoa e enquanto escritor incapaz de profundidade existencial ou psicológica? O totalitarismo não cessa, de facto, de lançar os seus balões de ensaio!

Anónimo disse...

Bravo, Isabel !!!

Ass.: Besta Imunda