Há uns dias referi-me aqui à má pulsão croniqueira que invadiu os jornais. Precisamente no espaço físico do jornal onde Eduardo Prado Coelho escrevia O Fio do Horizonte, fui encontrar um jovem jornalista (assina assim), de seu nome Mário Lopes (na edição online o seu retrato foi trocado pelo de outra jornalista que não tem nada ar de "Mário Lopes"), que disserta sobre memórias. Ele não entrava na escola primária que frequentou há vinte anos. Deverá, consequentemente, não ter mais de vinte e cinco anos. Ele "lembra-se" e tem "fortes memórias de infância". Pudera. Mas vai mais longe nisso. «O mais bizarro, dizia, era estar ali, duas décadas depois, a duvidar das minhas memórias. Na verdade, nunca as temos por certas. Vão-se transformando e diluindo entre tudo o que vimos e sonhámos sem viver realmente. Daí, repito, esse afã de registar constantemente. Oferece-nos segurança: a certeza de que fomos e vivemos realmente aquilo que a memória nos diz. Mas eu, que tenho a mania de arquivar, já não estou certo de querer tais certezas.» Pois é, Mário, como é que V. queria estar certo de quaisquer certezas ou de duvidar das suas memórias quando, pelo mero decurso do tempo, é cedo para as ter, quer quanto a certezas, quer quanto a memórias? O Mário oscila, neste sector, entre os "Goonies e Huckblerry Finn" e eu, se fosse ele, ficava por aí. E deixo-lhe um exemplo. Precisamente de quem o antecedeu nesse espaço e cujo fio do horizonte o Mário está longe de poder alcançar mesmo com tantas "certezas e memórias".
«Há pouco mais de dez anos, estava eu em Paris, na noite da minha casa no Marais, semiadormecido no sofá em frente da televisão, e de súbito o telefone tocou. Era uma rádio de Lisboa e pediam que comentasse a morte de Gilles Deleuze, o seu suicídio, em que se libertou da máquina de oxigénio a que vivia preso e se lançou pela janela. Estávamos em 4 de Novembro de 1995. Nesse mesmo ano, o Arte começara a transmitir o Abecedário de Deleuze, no qual este escolhia certas palavras para falar da vida, dos animais, da filosofia (lembro-me, por exemplo, das suas palavras sobre a "maldade" dos wittgensteinianos). Era a mais longa e dispersa das entrevistas, realizada com a cumplicidade de Claire Parnet (com quem Deleuze fizera em 77 o livro Dialogues, a melhor introdução à sua obra). No contrato inicial, tratava-se de um documento para ser divulgado depois da sua morte, mas Deleuze, considerando que a vida que ainda vivia estava mais perto da morte do que da vida, autorizou que ele passasse na televisão. É claro que os jornalistas eram extremamente sensíveis à questão do suicídio. Mas o seu significado continha uma afirmação solar, não um gesto nocturno. Ninguém pode ver nesta morte uma dimensão negra e destrutiva. De certo modo, Deleuze estava inteiramente presente naquilo que nele era a intensidade da vida: a imanência - uma vida, assim se intitulava quase enigmaticamente o seu último texto. Porque a obra ainda anunciada sobre a "a grandeza de Marx" não chegou a ver a luz do dia. Nunca conheci Gilles Deleuze. Vi-o apenas duas vezes. Uma foi na Grande Sala do Centro Pompidou, num debate sobre o Tempo musical. Estavam também presentes Pierre Boulez (a organização era do Ircam), Michel Foucault, Roland Barthes, Luciano Berio. Tudo isto tinha lugar em 20 de Fevereiro de 1978. A segunda vez já não sei quando foi: recordo apenas que num sábado à tarde vi Deleuze percorrendo as estantes de uma livraria que fica em frente da Sorbonne, na Rue des Écoles. Confirmei aquilo que já sabia e que sempre me deixara perplexo nas fotografias: as unhas encurvadas de tal modo estavam crescidas. Deleuze explicava que uma hipersensibilidade na ponta dos dedos o levava a proteger-se daquele modo. Dez anos depois da sua morte, surgem múltiplas iniciativas. Entre nós, o incansável Nuno Nabais organizou uma jornada com comunicações e leituras, no auditório do Instituto Franco-Português. Em França multiplicam-se as publicações. A difusão internacional de Deleuze foi sempre prejudicada pelo seu ódio às viagens e pela sua reserva em relação aos debates nos colóquios. Só agora começam a proliferar as traduções. Em Portugal saliente-se a publicação dos dois magníficos livros de Deleuze sobre cinema na Assírio e Alvim. Noutro dia, na televisão, nas Páginas Soltas de Bárbara Guimarães, alguém propunha a obra O Fio da Navalha de Somerset Maugham e comparava a sua legibilidade com a "chatice" de autores franceses como Gilles Deleuze. Era o mesmo que comparar um elefante com uma formiga. Como filósofo, Deleuze sempre foi um escritor admirável que se lê com um prazer desmedido: se a filosofia tem a ver com a felicidade, é isso que aqui acontece. Leitor admirável (de Spinoza ou de Leibniz), Deleuze tem livros extraordinários sobre a pintura (em particular, Francis Bacon), o cinema (páginas luminosas sobre inúmeros autores, entre eles Oliveira), a literatura (Proust, Melville ou Kafka). E deu-nos um exemplo de uma escrita em comum (publicou vários livros com Félix Guattari). Existe uma admiração que tece um espaço virtual de amizade. Quando naquela noite de Novembro falei ao telefone sobre a morte de Deleuze, eu sentia que uma amizade nos prendia na teia sempre improvável dos encontros.»
2 comentários:
As unhas encurvadas são um claro sintoma de efisema pulmonar.
Vem nos livros.
Curioso! o silêncio neste post.
... e quando uns imberbes, com trinta/quarenta anos de idade, "dissertam" sobre as "memórias" e as "vivências" do tempo do Estado Novo?!
Dessas nótulas é que eu gosto sobretudo quando lá pelo meio nos vão enfatizando o seu estatuto antifaxista.
Cumprimentos
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