27.6.03

O ANONIMATO

O Guerra e Pás colocou um post que levanta uma questão interessante, pelo que, com a sua licença virtual, o repito:

"O Nélson de Matos fala de uma questão que eu julgava que nos ia passar ao lado, a do anonimato. Diz ele que não gosta de blogs anónimos, e eu acho que há mais argumentos a favor da sua posição que da minha, que até mantenho um! Mas eu defendo os blogs anónimos.
Tentarei explicar-me.
Num blog anónimo há liberdades e libertinagens impossíveis num blog assumido – para já a imunidade parlamentar funciona e num país tão litigante ( e sei bem do que falo) e com juizes tão curiosos, nunca se sabe se não malhamos com os costaços na pildra por qualquer coisa escrita in the heat de um moment qualquer. Depois, imagine-se que um dos famosos que por aqui anda embirra com alguém que dá o nome. Num país tão pequeno e tão mesquinho, a falta de fairplay pode significar um emprego, uma carreira universitária (e sei bem do que falo). Mas estes estão longe de ser os argumentos, embora não sejam dispiciendos. O argumento é de natureza literária, ou se quiser, de natureza autoral. Em abstracto que nos interessa a identidade de um criador se a criação nos agrada? Sei que o NM é amigo e admirador (como eu) de Lobo Antunes, mas se não o conhecesse não admiria a sua obra na mesma? Não é ele um admirável escritor?
Sabe muito melhor que eu que a esmagadora maioria dos criadores maiores do nosso mundo eram gente abjecta no íntimo dos seus lares. Freud nem ligava à mulher, Jung enganava a dele, dois filhos de Bing Crosby suicidaram-se, etc (não há aqui nenhum salto lógico a partir de Lobo Antunes, obviamente).
Há um excesso de protagonismo autoral no mundo lá de fora – a nossa sede de ídolos e a humanização forçada de escritores, músicos, actores, distorce a nossa apreciação sobre eles - quem sabe se eu não gostaria mais de Saramago se não embirrasse com ele?
Finalmente, e a questão está longe de estar esgotada, há saberes aqui na blogolândia que são partilha. E por serem partilhados anonimamente, funcionam como a pessoa de que nunca soubemos o nome que chamou a ambulância quando tivemos o acidente, ou, mais comum, que nos indica o caminho na estrada. Há partilha, não há nomes."

Comentários:

1. É pertinente a observação de que, sendo isto a "pequena caixa de fósforos" que conhecemos, em que todos roçamos mais ou menos todos uns pelos outros, a identificação pode ter o efeito perverso de conotar o autor com posições política ou outra "coisamente" incorrectas, que lhe podem causar dissabores, num País onde a inveja e o ressentimento andam quase sempre de mão dada com a falta de sentido de humor e a pura ignorância;

2. Por outro lado, é saudável, visto do lado liberal, democrático e ironista em que me coloco, dar um "nome à  coisa", dar o "meu" nome à  coisa escrita, sem subterfúgios, não por vontade de exibição gratuita ou de crí­tica dirigida, mas porque assim posso testar - se bem que não esteja aqui para testar o que quer que seja - a maturidade cívica e intelectual dos meus putativos interlocutores, mesmo que eu nunca venha a saber quem eles são;

3. Na perspectiva em que sempre me coloco, nesta "blogomania" podem conviver saberes partilhados com ou sem nomes, em que alguns de entre eles me ajudam a "redescrever" o meu próprio vocabulário e as minhas próprias convicções, sendo que todos representam, de alguma forma, a apoteose da contingência, no sentido que Richard Rorty atribui a estas designações;

4. Finalmente, agrada-me a ideia de poder falar aqui livremente do que me interessa ou interessou: um livro, um discurso, um poema, uma reportagem, uma opinião, uma pessoa, uma situação, para poder dizer, se me apetecer e quando me apetecer, como no magnífico e já longínquo filme de Antonioni, " A identificação de uma mulher", "tu não és a minha norma".

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