O ANEL DA CULTURA III
1. Falemos, pois, de cultura. Quando me demiti, em Abril último, da direcção do Teatro Nacional de São Carlos, prestei uns esclarecimentos acerca do modesto evento ao "Actual" do jornal "Expresso", nos quais, entre outras coisas, elogiava Manuel Maria Carrilho e criticava a displicência orçamental dos actuais ocupantes do Palácio da Ajuda que, aquando da discussão do Orçamento de Estado para 2003, aceitaram silenciosamente a queda, para valores anteriores a 1996, do orçamento do Ministério da Cultura, reduzindo-o a 0,5 do OE. Entretanto, com as famosas "cativações" a que o OE2003 tem vindo a ser sujeito desde Janeiro ( uma espécie de "valquírias" do deus "déficit público" ), aqueles míseros 0,5 já estão ainda mais limitados.
2. A isto - um orçamento depauperado - o Ministério da Cultura tem vindo a responder com o mesmo jargão: espera-se um bocadinho, fazem-se umas continhas e aplica-se a "gestão flexível", para não maçar o Ministério das Finanças. Uma das últimas "vítimas" desta abençoada gestão flexível está a ser o IPPAE e, em última análise, os concorrentes aos subsídios sem o quais praticamente nada podem fazer nas respectivas áreas, desde a música ao teatro. Agora parece que nem a gestão flexível resolve o problema que terá mesmo que passar por um reforço das Finanças à Cultura para se honrarem as homologações dos concursos do IPPAE. Deus sabe como sou contra a "subsídio-dependência", mas tenho a noção do País em que vivo e, por uma vez, acompanho o Secretário de Estado da Cultura: não há cultura sem subsídios, ao que eu acrescento, antes disso, que não há cultura sem orçamento digno.
3. O que está a acontecer no Ministério da Cultura é o resultado da total ausênncia, em mais de um ano, de um qualquer desígnio estratégico para o sector que não passe das tais continhas, de umas proto-fusões de institutos e de umas escolhas mais do que discutíveis de membros dos júris para os desgraçados concursos do IPPAE. Os teatros nacionais, à excepção do São João, onde foi preciso ir ao baú Carrilho para trazer Ricardo Pais de volta, estão na pasmaceira que se conhece, com destaque para a "menina dos olhos" de Amaral Lopes, o D. Maria, o famigerado "túmulo do Rossio", como um dia lhe chamou Vasco Pulido Valente. Por pudor, não devo falar do São Carlos que, apesar de tudo, lá levou a sua temporada lírica até ao fim, com os maiores solavancos financeiros que se possa imaginar, mas pressinto que a famosa "gestão flexível" vai pairar na temporada de Outono como um abutre, sem que o Governo saiba se quer manter o instituto público, se quer uma fundação ( mas que não se repita o desastre da Fundação de São Carlos) ou um qualquer produto híbrido original. Ignoro o que se esteja a fazer para preservar a rede de leitura pública e a política do livro, mas temo pelo pior. Dos museus nem vale a pena falar: não há dinheiro para os abrir quando devem estar abertos. Etc.Etc.
4. Julgo que contribui para a tal falta de uma ideia para o sector da cultura, para além do problema orçamental, a profusão de criaturas que supostamente mandam. Igualmente por pudor e por muita empatia pessoal, dispenso-me de mencionar quem manda menos. No gabinete do Secretário de Estado da Cultura, para além do próprio, que manda muito, há ainda a mencionar o seu chefe de gabinete, uma espécie de pequena eminência parda, com um estilo pesporrente directamente proporcional à sua insustentável leveza, completamente destituído de sensibilidade para a área, onde se compraz em triturar amizades. Julgo que o próximo será opróprio Amaral Lopes, se não se acautela. No gabinete do Primeiro Ministro - a quem é preciso explicar que a cultura e a qualificação são batalhas que vale a pena travar, até porque é muito dedicado ao assunto - está o seu assessor cultural, André Dourado, uma estimável, educada e bem informada criatura, que "faz a ponte" com o "guru" destas matérias dentro do PSD, Vasco Graça Moura. Finalmente, e para assegurar a continuidade do único programa do Ministério - a gestão flexível - , existe e resiste uma assessora do Ministro da Cultura que, no mínimo, numa fórmula legalmente original, é simultaneamente secretária geral adjunta do Ministério, sem deixar de funcionalmente prestar assessoria no Palácio da Ajuda.
5. Perante este cenário, não auguro nada de bom para os próximos tempos em relação à cultura. Digo-o com o à-vontade de quem foi apoiante desta solução governativa e de quem ocupou um lugar no ministério da Cultura por nomeação política. Gosto demasiado do assunto para não deixar de estar preocupado com tanta ligeireza e falta de densidade na sua abordagem. E também por achar que a Direita não tem que morrer sempre fatalmente estúpida.
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