22.6.03

FAZ DE CONTA

Depois de Mário Cesariny, lembrei-me de que Vasco Pulido Valente já não escreve as suas três notas semanais no Diário de Notícias há umas semanas e temo que isso esteja a acontecer por motivos pessoais desagradáveis. Pulido Valente é um escritor exímio e polémico. Tem , graças a Deus, um genuíno mau feitio que, neste País beato e hipócrita, lhe deve pesar como chumbo. Eu tenho saudades dos seus textos e acho que não estou isolado. Por isso, recupero uma antiga crónica sua e aqui a deixo reproduzida na íntegra, no dia seguinte à saída de mais uma aventura do "herói" do nosso tempo, o menino mágico Potter que tantos arrebatamentos intelectuais (?) produz por esse mundo fora. E que volte depressa.


Dumas

Quando eu era pequeno e andava no liceu, não havia televisão e não me lembro de ouvir telefonia, a título de entretenimento, um hábito comum à classe média, que detestava o nacional-cançonetismo então reinante. Fora uns jogos de futebol nas traseiras da casa onde morava, o único divertimento era o cinema ao sábado, se por acaso durante a semana não tinha aparecido uma «nota negativa» e eu não tinha atraído um castigo paternal por qualquer asneira maior. Restava ler: capa-e-espada, Emílio Salgari (a série de Sandokan e do português Gastão) e, muito mais tarde, a colecção Vampiro. Mas no meio dessa tralha sem grande qualidade ou consequência, estava um monumento: Alexandre Dumas. Comecei, evidentemente, pel'Os Três Mosqueteiros e pelas sequelas, Vinte Anos depois _ um reencontro apaixonado _ e O Visconde de Bragelonne, filho de Athos e desgraçado pretendente à mão da primeira favorita de Luís XIV, Luísa de La Valière. A seguir veio, como não podia deixar de ser, O Conde de Monte Cristo, que reli, pelo menos, vinte vezes (e não, palavra de honra, por um especial amor à vingança). Entretanto, lá pelos doze ou treze anos, já sabia o francês suficiente para chegar à Reine Margot, ao admirável Le Collier da Reine e também a obras relativamente obscuras como La Fille du régent e La Dame de Monsoreau. Sem querer, e com prazer, aprendi alguma coisa sobre a história de França: sobre o fim da dinastia Valois e as guerras de religião, sobre os reinados de Luís XIII e Luís XIV e até sobre a sociedade da monarquia restaurada em 1814. Alexandre Dumas foi ontem solenemente trasladado para o Panteão. O que, para mim, é um desafio oficial do tempo em que as crianças liam à terrível vacuidade da televisão e do jogo electrónico. A nós não nos tiraram à nascença metade do cérebro.

por VASCO PULIDO VALENTE

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