30.9.03

A AMBIGUIDADE LUMINOSA

Via cidadão livre, apreendo que Eduardo Prado Coelho já escreve num blogue. Trata-se de uma iniciativa do PS/Lisboa, aparentemente para "malhar" no Presidente da Câmara de Lisboa, para já. Prado Coelho, cuja obra ensaística muito aprecio, não é propriamente um "modelo" no comentário dito mais "político". Não que isso tenha a ver exclusivamente com questões de "coerência" (quase todos os governantes do mundo, quase todos os "intelectuais", mais cedo, ou mais tarde, são "incoerentes"), mas sobretudo porque Prado Coelho, farejando "poder" ou uma sua aparência, é capaz de entrar inesperadamente numa espécie de ambiguidade luminosa, relativamente bem calculada. Isso tem-se passado em relação a Santana Lopes. É que não se sabe - nem Prado Coelho - o que é que o futuro e o Deus de Lopes lhe reservam. Uma coisa é certa, e isto em relação ao referido blogue: quanto mais se "bate" em Santana Lopes, mais alguém "gosta" dele. Mas essa é uma outra história, talvez de luminosidade ambígua.
O CÉU QUE NOS PROTEGE

Anuncia-se a fusão entre a Air France e a KLM, a que se juntam naturalmente as respectivas companhias associadas. No actual estado da discussão iniciática acerca da famosa "constituição europeia", este exemplo "federalista" é muito interessante. Mais do que falar da Europa nos forae ou de ter medo dela em casa, esta perspectiva de um "céu único" , através da primeira companhia aérea "europeia", ajuda a perceber a lógica da coisa. Também ajuda a entender o papel insubstituível e fundamental que, na Europa a vinte e tais, desempenham determinados países. Eu sei que não é politicamente correcto dizer isto, mas eu simpatizo com a "velha europa". Não me incomoda rigorosamente nada. Prefiro a solidez de uma Europa comandada por "ela" a uma Europa de "bordas" meramente esforçadas e de "patos-bravos" tagarelas. Alguém verdadeiramente acha que, entre nós, se vai alguma vez perceber o que é isso da "constituição europeia" ou o "federalismo"? O que é que isso interessa ao português da "vida videirinha", muito cioso das suas "coisinhas"? Nada. Nunca irá entender nada deste "céu" que nos protege.

29.9.03

ANTIGOS

Depois da apólice de seguro que o Dr. Barroso ofereceu ao Dr. Portas, sem aparente prazo de validade, nada como buscar o conforto nos mais modernos, os antigos. Bem anda Pacheco Pereira que nos induz ao convívio com Píndaro, por exemplo. Um homem dos tempos em que o gozo da competição era apenas isso, um puro gozo. E em que a "vitória" era apenas celebrada simbolicamente com uns ramos na cabeça, sem compensações materiais, como mera "honra". A glória daquele desaparecido mundo pagão residia nessa felicidade arrancada ao quotidiano, partilhada por homens esbeltos e de forte alma, eternizados nus em estátuas conhecidas. Tem razão a Professora Maria Helena da Rocha Pereira a quem pertence a tradução dos versos que se seguem. É bem melhor viver com os antigos.

Uma só é raça dos homens e dos deuses.
Ambas respiramos, vindas da mesma mãe.
Porém, um poder bem distinto nos separa.
Uma nada é: e o brônzeo céu, esse permanece
sempre seguro.
No entanto, algo nos aproxima dos imortais,
ou o espírito sublime
ou o corpo, apesar de não sabermos que caminho,
de dia ou de noite,
o destino traçou para nós percorrermos.


Referência: Sete Odes de Píndaro, selecção, apresentação, tradução do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Porto Editora, 2003.
PELA SAÍDA

O sorriso idiota do Sr. Blair ameaça emudecer. Para além das características pessoais que o tornam irritante, tem por esposa uma senhora advogada que verdadeiramente nunca conseguiu descolar daquela imagem de há seis anos, no dia seguinte à eleição do marido, em que apareceu à porta de casa com ar estremunhado e em "chemise de chambre", a aceitar umas florzinhas. Blair, a esplendorosa encarnação da "terceira via", que comoveu tanta "esquerda caviar" por esse mundo de Cristo, parece que já não convence nem os seus próprios correlegionários. É que andar de braço dado com Clinton, era uma coisa, e passar a vida a correr para o rancheiro do Texas, é outra. As mentirolas acerca da "ameaça" que constituía o armamento do Sr. Saddam, começam a pagar-se caras. E o exercício iraquiano é o sucesso que se conhece. Blair vai tentar uma saída para ficar. O melhor mesmo seria ficar-se pela saída.
REMOVER OS ESTILHAÇOS

No dia 8 de Agosto, com o país em labaredas, e perante uma extraordinária conferência de imprensa do presidente do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, Leal Martins, e sem saber que era só a primeira "fase" da combustão, escrevi isto:

No meio da catástrofe, aparece, via tv´s, o presidente do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil. O senhor garantiu que os fogos que estão ainda por aí, são já os "normais para a época". E acrescentou que fez uma visita a vários locais sinistrados, falou com muitas velhinhas e pediu à comunicação social que não mostrasse imagens dos incêndios no seu esplendor de morte - as palavras são minhas -, mas antes desse imagens de um bombeiro ou outro, de uma mangueira, enfim, uma versão "música do coração" do combate aos fogos. Eu ouvi e espero que seja repetido várias vezes, para que se acredite. Num País a sério, ou mesmo em África, este cavalheiro já estaria na rua. Aqui, não só ainda mexe, como dá conferências de imprensa palonças. Será que a culpa é só dele?

Eis que, no entanto e nestes últimos dias, o Dr. Figueiredo Lopes andou bem. No caso do (já cansativo) helicóptero e, agora, ao "aceitar" a demissão de Leal Martins. Este era só o topo da coisa, mas ainda há mais uns quantos lugares-tenentes para o seguirem. É bom que se comece a remover os estilhaços.
TEMPORADAS

Esta semana começam algumas temporadas "musicais". Leio nos jornais e no crítico musical. Aliás, neste até leio mais qualquer coisa:

Temporada Gulbenkian a começar 4 de Outubro, Festival de Mafra a abrir as portas.
Apenas a Temporada do S. Carlos a faltar, mas atendendo ao que se lá tem passado talvez seja melhor fechar as portas e passarmos todos a ir a Espanha, sempre se poupam uns dois milhões de contos ao erário público, o que para não se fazer nada é realmente muito dinheiro... creio que é uma solução ao gosto liberal. Voltarei ao tema do S. Carlos, o Portugal dos pequeninos não perde pela demora, terá em breve, aqui um comentário que, em tão boa hora solicitou.


Enquanto aguardo o prometido comentário, faço eu uns quantos:

1. Como sócio de "Os Amigos do SãoCarlos", recebi um folheto a explicar a mini-temporada que se inicia quarta-feira no S. Luiz. Esta mini-temporada é um bom pretexto para escutar a excelente Orquestra Sinfónica Portuguesa, um dos corpos artísticos do Teatro, tanta vez desaproveitada e mal coordenada, ao lado do Coro, sobre o qual deixo ao crí­tico quaisquer apreciações mais "técnicas", sobretudo acerca da sua discutida e discutível direcção musical. No primeiro concerto, canta a soprano Elisabete Matos, a quem já dediquei umas prosas (ver aqui os posts O Anel da Cultura II e III, e aqui , o post Cantar Cá Dentro).

2. No referido folheto de "Os Amigos de São Carlos" há um lapso que importa corrigir. A temporada lírica não se inicia em Janeiro de 2004 por haver obras no palco do Teatro. O mais perto do palco que estará qualquer coisa, é apenas do fosso da orquestra, cujo soalho deverá ser levantado, limpo e convenientemente desinfectado. Nada mais. Essa ideia de ligar o fecho do Teatro, até Janeiro, a obras no palco, é puramente mitómana, e pode induzir os incautos a pensar que se está a proceder a uma grande remodelação, como se nos tempos que correm se pudesse fazer o que quer que fosse de vulto. Sei isto porque fui eu, à altura no Conselho Directivo, com a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, quem planeou, com o dinheiro que havia, estas intervenções.

3. O dia 1 de Outubro, data do início da tal mini-temporada, é o Dia Mundial da Música. Ignoro se a entrada é livre, mas suspeito que não, a não ser para a longa lista dos convidados da direcção do Teatro e da nomenklatura. Eu, pelo sim, pelo não, comprei bilhetes no S. Luiz (sim, vendem-se alguns bilhetes...) uma vez que, por causa da minha carta de demissão, o Sr. director considerou que o tinha "traído" (sic) e que, como tal, mesmo tendo sido membro do conselho directivo, não tinha direito a ser convidado. Para um director que, em dois anos e meio de mandato, já viu passar cinco vogais na sua direcção, trata-se de uma estranha inversão de conceitos. Como há mais de 20 anos que vou ao TNSC, sem nunca ter sonhado em fazer parte da sua direcção, comprando quase sempre o meu honrado bilhete, é para o lado que durmo melhor. Aliás, dada a muito significativa e especial apetência que, pelo menos, dois dos membros do actual conselho directivo têm pela chamadas "relações públicas", temo pelo esvaziamento, a prazo curtí­ssimo, do magnífico desempenho, em prol dos interesses do Teatro, da efectiva titular das "relações públicas", ainda recentemente agraciada, por causa desse mesmo desempenho, por Jorge Sampaio.

4. O site do São Carlos, para além de ter custado o que custou e de valer o que vale, tem a informação "parada" no final da temporada 2002-2003. O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita...

28.9.03

UMA FOTO

Neste blogue discutem-se de vez em quando, e quase sempre criticamente, as posições do Dr. Portas. Nada de pessoal. Fomos colegas na universidade, em jornais e, há cinco anos, não me desagradou a ideia da "AD" de Marcelo. Portas estragou tudo em 45 minutos, numa entrevista assassina a Margarida Marante. Também já aqui escrevi que sou adepto de um PSD maioritário, sem acólitos. Como julgo que será útil ao PS pensar da mesma maneira, para o futuro. A perspectiva de 2010, com este PP às cavalitas, é assaz desagradável. Como escrevi anteontem, o congresso do CDS foi uma espécie de celebração eucarística destinada a ungir e a quase beatificar o líder. Têm razão. Se estão no poder, a ele o devem. Em suma, Portas é o que ele é, na melhor tradição shakespeariana. Dito isto, julgo, porém, que não merecia a maldade da foto da página 2 da edição impressa de hoje do Público. Nela vemos um líder hirto, tenso, olhar determinado, com as massas por detrás, meio desfocadas... e com o braço direito estendido, naquela conhecida maneira dos anos 30. Portas estava seguramente a pedir aos congressistas para não aplaudirem, mas a maldade ficou feita. E, a meu ver, não tem graça nenhuma. A foto não sabe "dizer" aquilo que dá a "ver". Ou então quer "dizer" mais do que o que dá a "ver", o que é bem pior. Há fotógrafos que deviam ler "A Câmara Clara", de Roland Barthes.
MODERNOS

XENÓFANES

Dito de Cólofon, terá vivido cerca de 570 - 470 a.C. Filósofo pré-socrático, pensador, poeta e rapsodo, andou por toda a Grécia a declamar a sua poesia. Foi expulso de Cólofon aos 25 anos, passando desde então a levar uma vida de errância, fugindo persistentemente ao domínio persa. Toda a sua obra foi composta em verso. Xenófanes terá sido o primeiro pensador a evidenciar a "unidade" como o "princípio (arché) da realidade" (physis). Segundo o entendimento de Xenófanes, a "verdade" acerca das coisas é inatingível aos homens. Para ele, o que se constrói acerca da realidade é somente aparência e opinião. Em suma, um filósofo para ler e meditar nestes nossos complexos dias. Deixo aqui um seu poema, traduzido por Maria Helena da Rocha Pereir.

Elogio da Sabedoria

Mas se alguém alcançar a vitória com a velocidade
dos pés, ou do pentatlo, - onde fica o santuário de Zeus,
junto das águas de Pisa, em Olímpia - ou na luta,
ou porque sabe a arte dolorosa do pugilato,
ou ainda num concurso terrível, chamado o pancrácio,
será mais ilustre à vista dos seus concidadãos,
terá o lugar de honra mais aparatoso nos jogos
e alimentação a expensas públicas
da sua cidade, e uma dádiva, que será para ele um tesouro.
E, se ganhar com cavalos, tudo isto ele obterá,
sem ser digno como eu. Pois melhor do que a força
de homens e corcéis é a nossa sabedoria.
É isso um modo de pensar leviano, e não é justo
preferir a força à notável sabedoria.
Pois bem que viesse entre o povo um valente pugilista,
ou um homem hábil no pentatlo ou na luta,
ou na corrida, que tem ainda a preferência,
e tantos actos de força demonstrasse no combate,
nem por isso a cidade estaria em melhor ordem.
Pequeno prazer seria para a urbe
que alguém vencesse nas provas das margens do Pisa.
Pois não é isso que enche os cofres da cidade.

27.9.03

A MARCHA

Sobre a "marcha branca" da Dona Catalina, do Dr. Strecht e das fantásticas associações das "famílias numerosas", está tudo dito pelo Pacheco.
CÂNDIDA

A procuradora geral adjunta Cândida de Almeida, por quem tenho grande estima, mostrou-se "chocada" com o resultado final do mega-processo das FP-25 em que interveio com principal protagonista pelo lado da acusação. O Estado, através de Ministério Público, tinha então contado com a colaboração dos chamados "arrependidos", peças fundamentais no desmantelamento e prisão dos principais responsáveis da organização. À nossa melhor maneira, depois de todas as peripécias por que passou o processo, foram os "arrependidos" quem acabaram condenados. O Estado, via Procuradoria Geral da República, deixou entretanto passar o prazo para recurso, tornando definitiva a condenação que obriga os "arrependidos" a pagar indemnizações às vítimas dos atentados terroristas das FP-25. Isto quando tinha assumido o compromisso "de honra" de diligenciar para obter uma isenção de pena para estas criaturas. Cândida, que candidamente tinha dado a cara por esta promessa e que é da "casa", ficou naturalmente interdita. Nós, os que vemos de fora, também ficámos. A PGR supostamente vela pelo interesse público, pelos desvalidos e desprotegidos e pela realização do famigerado direito. O facto de muitos magistrados, quer do MP, quer judiciais, viverem na estratosfera e de lhes escapar o tal "sentimento jurídico colectivo", não pode servir de desculpa a este miserável desfecho. Convinha que o Sr. PGR tomasse uma posição, de preferência sentado à secretária. Não é aceitável que a PGR se faça de "cândida" quando, na realidade, o não é.
UM OLHAR FRIO

Fez 35 anos que Marcello Caetano substituiu Salazar na chefia do Governo. Depois de trinta e tal anos como Presidente do Conselho, o regime, apardalado e sem saber o que fazer com o espectro humano que restava de António de Oliveira Salazar, depois da estadia na Cruz Vermelha, alimentou-lhe a ficção até à sua morte, em Julho de 1970. Salazar julgava-se ainda Presidente e o seu pequeno conforto caseiro de São Bento não lhe foi sonegado. Marcello vivia na sua casa. Quatro anos passados, era Marcello que caía, não de uma cadeira, mas apeado pelos jovens oficiais do Exército, cansados de despromoções e da guerra. Para o bem e para o mal, o século XX português e político, foi o século de Salazar. A estupidez revolucionária de apagar vestígios em pontes, estátuas e ruas, não abalou a evidência. Muito do que é hoje o chamado "país profundo", é obra dele. Nos traços de carácter, nos rostos endurecidos, no "viver tranquilo", na desconfiança do Outro, na simplicidade perversa e no analfabetismo insolente das "nossas gentes", impenetráveis a Europas cosmopolitas, recorta-se, ainda e sempre, o olhar frio de Salazar.

26.9.03

BREVES

1. Ser e estar. Ontem à noite o lí­der do CDS/PP esteve na RTP. Neste fim de semana, junta o seu pequeno exército em congresso. É mais uma missa de acção pela sua graça do que propriamente um congresso. Para além da insistência obscena em ligar o desemprego com a questão da imigração, Portas é agora uma sombra do interessante "anarquista de direita" que foi. O brilho oratório foi substituído pelo calculismo sentimental e pela dissimulação retórica baça. E aquele ar inseguramente composto não cola definitivamente ao personagem. Estava ali toda a diferença entre o ministro de estado que "está" e o estadista que nunca chegará a "ser".

2. Ser e estar II. Trata-se de outro preocupante equívoco. Ninguém, ou muito pouca gente, presta atenção ao que diz o Dr. Ferro. É grave para um pretendente sério a São Bento. O aparelho jura-lhe fidelidade quotidiana e, na sombra, com Sócrates e outros, prepara-lhe o tapete. Ele também não ajuda. Falta-lhe em rasgo e audácia o que lhe sobra em teimosia e em seriedade. As "circunstâncias ocorrentes" não lhe foram propícias. "Está" secretário-geral, mas, malgré lui, não "é" uma alternativa.

3. Um direito e o Direito. Os quatro acordãos do Tribunal Constitucional acerca de recursos no processo Casa Pia devolveram alguma tranquilidade ao chamado "sentimento jurí­dico colectivo". Obrigam o juiz de 1ª instância a trabalhar com outra cautela, estando em causa a situação de arguidos presos. E garantem o elementar direito ao recurso e a apreciação superior das decisões jurisdicionais nos termos constitucionais. É quanto basta para se falar em Estado de direito.

4. Um helicóptero. O objecto devia ajudar a combater incêndios, na zona de Lamego, mas acolitava turistas. A irresponsabilidade inconsequente e leviana não tem limites neste País. A falta de vergonha também não. Desta vez o ministro não perdeu tempo e pôs os meliantes com dono. Quantas mais tontarias deste género haverá por este Portugal de pequeninos?

25.9.03

QUANDO TUDO CAI

Um estudo qualquer veio demonstrar que há umas boas dezenas de pontes prontas para cair a qualquer momento. Julgo que o distrito mais penalizado por esta eventualidade é Viana do Castelo. A célebre vaga do betão não pôde, pelos vistos, acudir a tudo. Mesmo as preciosas auto-estradas, os itinerários principais, as vias de circulação internas e externas ou as circulares, estão quase sempre em permanentes alargamentos ou encolhimentos. Até uma obscura rua de uma qualquer nossa cidade, não escapa ao esventramento. A paisagem assemelha-se muitas vezes a um estaleiro. Infelizmente nada disto chega para prevenir o pior. Fica-se com a sensação de que nada se planeia e que tudo é fruto do improviso e da adivinhação. Entretanto, as estruturas envelhecidas e em apodrecimento irreversível, vão cedendo. Como bons parolos, vivemos à superfície armados em "modernos". Só quando tudo cai é que se vê, que, por baixo, não há nada.
QUANDO TUDO ARDE II

Um outro sinal de reconhecimento externo de algumas coisas nossas veio da Roménia. Os seus "colegas" escritores decidiram atribuir o denominado Prémio Ovídio a António Lobo Antunes, cronista e romancista publicado pela D. Quixote. Para não irmos mais longe, recomendo o "Auto dos Danados", "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura" e as "Crónicas", que são dois livros. Por falar em livros, saiu em português, desse complexo escritor ironista que é Vladimir Nabokov, o primeiro volume dos seus "Contos Completos", editados simultaneamente pelo Círculo de Leitores e pela Teorema. Só falo nisto pela razão simples de que, a ler, nunca perdemos tempo.

24.9.03

QUANDO TUDO ARDE

Vi ontem, na SIC Notícias, uma reportagem com um rapaz que vai entrar este ano na universidade. Tinha estado numas olimpíadas de matemática, na Argentina, se bem entendi, e trouxe de lá uma medalha de prata. Teve 20 na disciplina e parece-me que entra no IST com média de 19. Disse à  jornalista que gosta de jogar jogos de computador, que não tem namorada e que não pratica desporto. Tem, como mundo suficiente, a matemática. Nota-se-lhe a discreta ambição no gozo com que desfaz uma equação ou explica uma fórmula. A notí­cia passou praticamente despercebida, como é natural. Um País que passa o tempo a dar ouvidos e voz a tagarelas imbecis, não pode prestar atenção à felicidade deste rapaz. Provavelmente, e se for esperto, a seu tempo irá lá para fora. O que é que ele fica cá a fazer quando tudo arde ?
PERSIGNAÇÕES

O Mundo e o País do "respeitinho" têm novas causas. Recomendo três exemplos:

-no Portugal e Arredores, um post que me dá conta de que a igreja católica, o mundo de incenso, disciplina e trevas em que cresci e em que fui mais ou menos educado - sem aparentes grandes resultados - se prepara para castrar a alegria de algumas das suas celebrações eucarísticas e de manifestações externas de religiosidade, privilegiando o soturno, a segregação e a circunspecção balofa;

-no Pulha - que imensa injustiça a desta auto-flagelação toponímica - está um post sobre "comportamentos sociais", digamos assim, nas primeiras classes dos nossos comboios, uma excelente observação de um pequeno mundo de pequenos privilegiados;

- na Administração Pública, que não é um blogue, mas que podia ser, desenvolve-se paulatinamente a doutrina do "atento, venerando e obrigado" de outras ocasiões, sob a capa da modernidade e da recuperação de valores "empresariais" (o que é isto?). O "mundo cão" que já era, vai tornar-se muito melhor por causa da anunciada caça à "excelência". Enquanto o "mérito" for estar sentado a horas e sair a horas, mesmo que haja um imenso vazio nesse intervalo, prenhe de "respeitinho" e de "espertinhos", o que é que interessa o "produto final"?

Amen.
A MERDA E O ESTADO

Nos idos de 75, a expressão "merda", na versão "bardamerda", foi introduzida no léxico do Estado pelo então primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo. Alguns grupos folclóricos da época, acusavam-no de "fascista" e ele, no seu estilo desbragado e sincero, mandou-os "à parte". Naquela altura, era só mais um fait divers. Em 2003, na comemoração dos cento e muitos anos da veneranda instituição que dá pelo nome de Supremo Tribunal de Justiça, onde têm assento umas obscuras e subtis figuras que, em última análise, podem decidir radicalmente as nossas vidas, o termo foi inesperadamente recuperado. Andava a pobre da Sofia Pinto Coelho, da SIC, a saltitar de magistrado em magistrado para saber se era jubilado, conselheiro ou outra coisa qualquer de suma importância, quando passou por ela o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Sofia tentou perguntar-lhe qualquer coisa, mas a criatura atalhou "que não queria dizer nada". E, virando-se para a câmara, foi dizendo, ameaçando, que "ainda partia aquela merda toda". Eu ouvi e está no video da reportagem. Este cavalheiro é um magistrado judicial, presidente de um tribunal superior e um órgão de soberania do Estado português. Não é um vulgar acosssado, daqueles que enchem os noticiários das televisões, a quem se quer, a todo o custo, arrancar uma declaração. Convinha, por consequência, que cuidasse da língua. E que não fosse tão lesto a confundir o Estado com a merda, apesar de tudo.

23.9.03

EMPADÃO

O Dr. Santana Lopes tem na SIC, às terças-feiras, uma bancada solitária para exibir o seu esplendor oratório. Acontece que Lopes, exímio gladiador no debate e no combate, em versão a solo, parece um empadão. Para além disso, concorre com Miguel Sousa Tavares, na TVI, que possui a mais-valia de ter a língua completamente solta e uma audiência relativamente fiel. Por mais que se esforce, seja por uma alfinetada discreta ao Governo, seja por uma posição supostamente menos ortodoxa, aqui ou ali, Lopes só pode cumprir mediaticamente a velha máxima de Salazar: "decididos até onde ir, não devemos ir mais além". Tolhido pela chefia de um executivo camarário como o de Lisboa e pela primeira vice-presidência do PSD, Santana Lopes verdadeiramente não comenta. Limita-se a mostrar-se. O que para ele, já deve chegar.
FRACASSOS

Nas Nações Unidas, em Nova Iorque, o grande timoneiro globalizado, George. W. Bush, vai reconhecer, perante o Mundo, Chirac e outros, que a sua estratégia para o Iraque falhou. Como esta se cruza com o mais vasto e obsessivo combate contra o terrorismo, pode juntar-lhe outro fracasso. De facto, passados dois anos, o Sr. Bin Laden continua vivo e protagonista de videos naturistas, em enquadramentos escarpados e aparentemente tranquilos. Os seus amigos talibans, ao que se julga, reorganizam-se serenamente. O Sr. Saddam, mais dado à actividade radiofónica, anda a monte. No Iraque, os pobres soldados americanos e a ONU são diariamente imolados pelas balas e pelas bombas. Finalmente, os últimos dados revelados pela Organização Mundial de Saúde e debatidos na Assembleia que antecedeu a Geral que hoje arranca, demonstram que um em cada dez africanos está infectado pelo vírus da SIDA. O que vai fazer-se em seguida para atalhar este drama, apenas cobrirá 5% dos potenciais infectados, o que representa estar a falar de cerca de seis milhões de seres humanos desse continente maldito e esquecido cá por cima. Tudo isto nos devia deixar preocupados. São demasiados fracassos num século que ainda mal começou.
TIRO DE PARTIDA

O Dr. Mário Soares, de Estrasburgo, disse que estava "radiante" pela circunstância de o Dr. António Vitorino não ter sido escolhido para secretário-geral da NATO. Esclareceu que o espera - ao Dr. Vitorino - "um destino e uma missão" muito importantes em Portugal. Não sei se, ao dizer isto, Soares já está a "arrumar" o "braço de ferro" e a sugerir outro rosto para liderar a inevitável alternativa ao Dr. Barroso. Uma coisa é certa. Vitorino está praticamente imaculado no partido e no País. Tem vindo progressivamente a esbater aquela imagem de irrequieto político que gosta de dizer umas graçolas, sem que, com isso, tenha perdido o sentido de humor, que é coisa bem diferente. A passagem europeia serenou-o e credibilizou-o. O Dr. Barroso ironicamente também põs a mão por baixo. Mais dia, menos dia, com a preciosa ajuda das televisões, vamos estar fartos dos mesmos, dos "sempre-em-pé" dos partidos que interessam. Ora para mandar, interessam o PSD e o PS. Desconheço o que passa pela cabeça de Vitorino, uma bela cabeça, aliás. Eu, que não concebo predestinados, aprecio preparados. Suspeito que, sem se mexer muito, Vitorino já começou involuntariamente a sua "maratona". Soares, o pai da Pátria, limitou-se a dar o tiro de partida.

22.9.03

ÓPERA NÃO BUFA II

...até os anjos se preocupam com o São Carlos. Aguardamos uma opinião crítica, sempre bem vinda.
ÓPERA NÃO BUFA

Depois de assistir ao concerto de abertura do Festival de Órgão de Lisboa, numa noite da semana passada, fui, com uns amigos ligados à cultura, à música e à ópera, cear algures perto da Sé. As conversas foram, pois, em torno da cultura, da música e da ópera. Quando digo ópera, digo Teatro Nacional de São Carlos. Pelo meio, alguém lembrou um texto de 1998, em que o Teatro era referido. Corria então na Gulbenkian um seminário sobre a "Europa e a Cultura". Maria Filomena Mónica perorou acerca do "Estado e a Cultura". Eu estava lá e ouvi muito bem. Fui à minha estante consultar as actas do Seminário, publicadas pela Fundação Gulbenkian e encontrei o texto. Tem cinco anos, mas julgo oportuno, no contexto do início da temporada minimalista do Teatro de ópera nacional, e ainda dentro do "ciclo" de posts que decidi dedicar à matéria, reproduzir aqui a parte da comunicação de Filomena Mónica sobre o dito. Antes, porém, uns comentários prévios:

1. A autora é bem mais radical do que eu quanto ao assunto. No entanto, já há cinco anos, alguém bem mais notório, notável e interessante do que eu, achava que o Teatro devia parar para pensar, como sugeri na minha carta de demissão deste ano.
2. A autora é muito crítica em relação a Manuel Maria Carrilho, à altura, o ministro da Cultura. Eu nem tanto. Teve pelo menos o mérito de acabar com a terrível Fundação de São Carlos, um embuste destinado a sorver dinheiros públicos sobre a capa respeitável da figura jurídica da "fundação".
3. A relação custo/benefí­cio num teatro de ópera, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, é qualquer coisa de complicado. Os problemas do São Carlos começaram muito cedo. Na década de 70 do século XIX, por exemplo, e para não irmos mais para trás, houve quem pensasse em entregar a exploração do Teatro a uma concessionária privada, mediante concurso. Meu caro A. M. Seabra, a famosa "sub-orçamentação" já vem de longe, como muito bem recorda. A questão dos famosos não-pagantes, "nomenklatura" e respectivos serventuários e amigos, mantêm-se quase inalterada, o que se justifica por ser porventura a única maneira de, a maior parte deles, ir, por uma vez, à ópera. O estudo de Carlos Barros referido no texto deverá, em breve, ser "actualizado, já que o autor pediu, enquanto eu estava no Teatro, dados recentes.
4. A formação de novos públicos e a ligação do Teatro com a escola, está na lei como letra-morta. Seja por causa dos dinheiros, seja por causa da absoluta ausência de um pensamento integrado e estratégico para o Teatro, ou seja, sobretudo, porque este tipo de investimento não pesa no curricula dos directores, nem dos maestros titulares, nem nas críticas amáveis, bem podem os espectadores ir morrendo de velhinhos...
5. O Teatro, agora, praticamente não"monta" uma produção e, sobretudo nos últimos anos, tem apostado em algumas co-produções. Mesmo em períodos anteriores aos referidos no texto de Filomena Mónica, designadamente com José Ribeiro da Fonte, isso já acontecia.

Dito isto, segue a citação.

(...) Durante anos, com base na tese de que uma sociedade civilizada teria de oferecer aos seus cidadãos um local onde se pudesse encenar ópera, argumentei que, independentemente dos custos, não se poderia fechar o Teatro Nacional de São Carlos. Não porque o frequentasse, mas porque, apesar de tudo, ali tinha assistido a algumas interpretações notáveis. A ópera, quando bem tocada, cantada e representada, é um prazer de tal forma sofisticado que gostaria de o tornar acessível a todos. Mas o projecto não se revelou de fácil execução. Por um lado, o São Carlos teima em fechar-se sobre si, e, por outro, a televisão não se interessa por divulgar o que ali é apresentado. Mais importante, a população não tem preparação para apreciar o que ali é cantado.
Um dia, em 1994, fiz as minhas contas. Previa que, num teatro de tão reduzida dimensão o custo por bilhete fosse elevado, mas nunca pensara que ascendesse a 31.740$00. Como, em média, os bilhetes da plateia andavam à volta de onze contos, isto significava que, de cada vez que eu assistia a um espectáculo, o Estado me dava um bónus de cerca de vinte contos. Mesmo assim continuei a defender a intervenção pública. Não em nome dos ricos - que se podem deslocar com facilidade a qualquer capital europeia - mas em nome da comunidade. Pensava que, com mais e melhor educação, os filhos da classe operária seriam, um dia, tão capazes de apreciar a "Tosca" quanto os filhos da burguesia. O montante do subsídio não me chocava, desde que o Estado se empenhasse em ensinar os meninos, todos os meninos, a ler uma pauta de música. Portugal não era suficientemente rico para que do seu solo brotassem mecenas capazes de organizar "Glyndebournes". Teria de ser o estado a colmatar a lacuna.
Mas as coisas foram-se complicando. Em primeiro lugar, o Estado não dava mostras de mudar fosse o que fosse no que à aprendizagem musical dizia respeito. Em segundo lugar, descobri algo de escabroso. Na base das estatísticas relativas aos bilhetes do São Carlos, entre 1989 e 1994, um professor do ISEG, Carlos Barros, concluiu que, nos trinta e seis espectáculos que o São Carlos organizara, das setecentas e quarenta e três pessoas que, em média, a eles tinha assistido, um terço, digo bem, um terço, não tinha comprado bilhete. Esta estranha fauna, composta pelos amigos dos ministros e pelos amigos dos amigos dos ministros, tinha recebido gratuitamente os bilhetes.
Eis senão quando verifico que o custo real de um bilhete do São Carlos é hoje (1997) de noventa e cinco contos. Sentindo talvez que o montante poderia chocar, o actual minsitro decidiu acrescentar o seguinte, após aquela revelação: "Temos que subsidiar o povo que vai à ópera". O povo?! Será que Manuel Maria Carrilho não reparou que, nem mesmo na geral, jamais se sentou um representante das classes populares? Hoje, penso que, enquanto as escolas portuguesas não tiverem professores de música, o São Carlos deve ser encerrado. Não quero que os meus impostos sejam utilizados para que a "nomenklatura" assista gratuitamente a récitas no São Carlos.
Sei que o problema não ficará resolvido. Continuo a pensar que uma comunidade precisa de uma sala onde possa ouvir ópera. Mas, para o fazer, convêm saber amá-la. E, sem estar educado, é impossível. A melhor forma de justificar uma companhia nacional seria através da sua capacidade para, em simultâneo, servir de escola para jovens intérrpretes, papel que o SãoCarlos nunca desempenhou. Aliás, terão todos os países, mesmo os mais pequenos e pobres, de possuir uma companhia lírica própria? Não se poderia, por exemplo, montar co-produções, que sucessivamente se apresentariam nas capitais europeias?

21.9.03

FLORILÉGIO DOMINGUEIRO

1º O que é que comunica a comunicação social? Perguntava, há uns anos, o José Pacheco Pereira. Dele têm vindo algumas reflexões críticas sobre o poder dos media e dos jornalistas, face à política, à sociedade, aos costumes. Porém, ele sabe bem como explorar o filão. Eu acompanho. É a sua forma, aliás intelectualmente estimulante, de "fazer política". Sem ter que se ajoelhar ou berrar.

2º Regressado. É o António Barreto, às crónicas de domingo no Público. Deve-se-lhe - é bom não esquecer - o melhor retrato feito nos últimos anos ao Engº António Guterres. Tem, por vezes, um desempenho de sibila, muito british, o que em nada diminui a qualidade das prosas e das análises. E começa bem. Sugere a remodelação do Governo e a remoção do Dr. Ferro.

3º Sexo, mentiras e videos. É a melhor síntese que consigo encontrar para as peripécias "Casa Pia" e respectivas adjacências. Alguns ilustres "colegas bloguistas" andam indignadíssimos como o "tal" blogue. Que me perdoem, mas eu não consigo enxergar grande diferença entre "ele", os rostos tapados e as vozes distorcidas que praticam quase diariamente assassinatos de carácter em directo nas televisões, e nos jornais, sem que ninguém se importe particularmente com o exercício. Trata-se apenas de formas diversas de explorar o anonimato cobarde. Quanto ao "processo" propriamente dito, prossegue ao ritmo de telenovela mexicana: hoje um recurso, amanhã, um video, depois de amanhã, uma carta, para a semana, um comunicado, etc. etc. Mas, descansai, está tudo em segredo de justiça.

4º VI Festival Internacional de Órgão de Lisboa. Estive no concerto de abertura, na Sé. Continua por lá, por Mafra, São Vicente de Fora, Basílica da Estrela, Mártires, Igrela Evangélica Alemã e Igreja de São Luis dos Franceses. A entrada é livre, e decorre até ao dia 6 de Outubro. Para quem, como Cioran, ache que sem Bach, Deus seria uma entidade de terceira categoria, pode ir hoje comprová-lo às 16.30, à Sé Patriarcal de Lisboa.
O PÁSSARO GLORIOSO

Em condições normais, suas, Vasco Pulido Valente deveria ver hoje publicada mais uma crónica no Diário de Notícias. Infelizmente, e sobretudo para ele, tal não tem sido possível. Gore Vidal, num ensaio célebre que dedicou a Tenessee Williams, chamou-lhe "the glorious bird", o pássaro glorioso. A mim agrada-me pensar que, à sua impenitente maneira, Pulido Valente é o nosso pássaro glorioso. Alguém que pensa nisto e que, por entre um aparente desdém sobranceiro e cínico, paira por sobre um "país em diminutivo", com uma secreta, teimosa e revoltada esperança de que, um dia, qualquer coisa mude. Uma vez mais, aqui fica uma sua crónica passada, e o meu, nosso, desejo de o ver voar de novo no seu esplendor certeiro e mordaz, o único que vale a pena.

DESAPARECER?

por Vasco Pulido Valente


António Barreto acha «errado e nefasto» acreditar que os países não desaparecem e previne que Portugal pode desaparecer num futuro próximo, por efeito conjunto da globalização, da União Europeia e do peso da Espanha. Excepto no seu sentido corrente, a palavra «país» está longe de ser precisa. Significa simultaneamente «região», «província», «território», «terra», «terra onde se nasceu» e por aí fora. Como também Estado, nação e Estado-nação. Se António Barreto quer dizer que Portugal pode desaparecer como Estado, claro que sim. Perante a indiferença _ e o aplauso _ de quase toda a gente, o que dantes se chamava a «soberania» portuguesa é dia a dia absorvido pela «Europa», pela NATO e por uma multidão de organizações de beneficência duvidosa, que mandam cá dentro como em sua casa. Pior ainda: se a soberania exige (e não há dúvida que exige) um suporte económico com alguma independência, Portugal já desapareceu ou não tardará muito a desaparecer, coisa que eu não considero necessariamente uma desgraça. Mas, por baixo disto, fica sempre a nação: uma língua, uma cultura (e não falo aqui da cultura «erudita») e uma história. E o desaparecimento desse Portugal implica que os portugueses deixem de existir ou, pelo menos, que deixem de existir enquanto portugueses. O que não me parece provável. As nações da Europa moderna foram construídas pela força do Estado, que eliminou as diferenças locais para construir uma entidade única e uma única fidelidade patriótica. De resto, em certos casos, só superficialmente, como na Itália ou em Espanha. Hoje, os tempos não favorecem essa espécie de exercício. O risco é Portugal continuar marginal, vegetativo e pobre, e até com a ficção de um Estado, sem maneira de influenciar ou decidir o seu destino

20.9.03

CARTÃO DE APRESENTAÇÃO

Ficou-se a saber que o Sr. Rumsfeld, amigo íntimo do Dr. Portas, achou que o Dr. Vitorino, para além de ser objectivamente brilhante e inteligente, era "europeísta". Como tal, não serve os desígnios dos EUA na NATO. É natural esta reacção do secretário da Defesa norte-americana. Ele está habituado ao convívio com seres como George W. Bush, cujas aptidões intelectuais são mundialmente conhecidas. Nada, pois, como baixar o nível de QI para chegar ao "melhor" nível. Não consta que o nosso "eurocalmo" de serviço tenha intercedido a favor do brilhantismo do Dr. Vitorino. Se calhar devia tê-lo feito. É que, mais dia, menos dia, Vitorino largará a Comissão Europeia. E, à falta de melhor, pode tentar-se a voltar às lides partidárias. O Dr. Costa já deu esta semana o tom, ao zurzir um dos pilares mais frágeis da actual maioria, a recuperação económica. A pior coisa que pode acontecer ao Dr. Barroso é ter um "desejado" pela frente. E segundo Rumsfeld, brilhante e europeísta. É um belo cartão de apresentação para os próximos tempos.
LER

Já há uns tempos que não evoco aqui leituras. Sem prejuízo de, a um ou a outro, vir a dedicar um post brevemente, deixo três escolhas. A primeira, é um texto muito interessante de Martin Amis, em torno da figura de Staline e das atrocidades do totalitarismo, com o seu pai, o autor Kingsley Amis, do grupo dos "angry young men",pelo meio, e que foi comunista nos seus "early days" . Está traduzido pela Teorema como Koba, O Terrível. A segunda refere-se ao último ensaio de Susan Sontag, publicado pela Gótica, Olhando o Sofrimento dos Outros, uma reflexão em torno do poder da imagem essencialmente sobre a violência, retomada vinte e tal anos após os seus Ensaios sobre Fotografia (On Photography), então editados - e esgotados (atenção Nelson) - pela D. Quixote. Finalmente a minha última escolha vai para um livro de bolso em espanhol (Ed. Punto de Lectura), de Mario Vargas Llosa, La Verdad de las Mentiras, que reúne um conjunto de ensaios do autor peruano acerca de obras literárias do século XX.

19.9.03

O EUROCALMO

Quase uma semana depois do Dr. Portas ter feito aquelas declarações sui generis sobre imigração, no seu comício caseiro, parece que houve finalmente algum sobressalto no partido maioritário e no Governo relativamente ao assunto. E parece que houve quem não tivesse apreciado, embora, como vem sendo costume, não se retirem quaisquer consequências mais sérias do episódio. Este fenómeno da "anestesia" cívica que começou com Guterres, está para durar, ao que tudo indica. Agora, na sua moção ao congresso do PP, Portas diz-se "eurocalmo". Podia ser uma marca de indutor do sono, um sabonete ou um creme depilador. Não, nada disso: é mesmo o adjectivo escolhido pelo líder para caracterizar a postura do "braço direito" em relação às eleições europeias do próximo ano. Portas quer coligação, mas vai dizendo que não se importa de ir singularmente a votos. Daí o "eurocalmo", para que a eventual parceria não pareça demasiado escandalosa. Para quem é adepto da "política democrática" no sentido que lhe tenho atribuído neste blogue, ou para quem adopte uma perspectiva "republicana" e "europeia" do exercício das funções públicas, ter o Dr. Portas por companhia, naquelas eleições, mesmo em versão "calma", não é seguramente muito recomendável. O melhor mesmo será o "braço direito" ir oportunamente à sua vida.
UM PONTO FINAL

Vamos lá tentar concluir o raciocínio do post de ontem sobre o Teatro de São Carlos. De caminho, pode servir para outros, designadamente o D. Maria. O ministério da Cultura dispunha, desde 1997/1998, de um corpo legislativo razoavelmente harmónico, de um conjunto de diplomas orgânicos razoavelmente bem feitos e adequados aos propósitos dos organismos. Depois, havia uma base também razoável de sustentação orçamental para aquilo tudo. E, finalmente, dado nada dispiciendo, havia o ministro, Manuel Maria Carrilho. Os governantes têm, quase todos, a irreprimível tendência para deixar a sua marca, e o caminho mais fácil, num país de "jurisabundância", é fazer mais leis. Para os teatros, as tutelas, em vez de se preocuparem com o problema orçamental, só pensam em alterar os respectivos estatutos. O resultado está à vista: um túmulo no Rossio, uma trapalhada no Chiado. Do que se sabe, pretende-se que sejam geridos por conselhos de administração chorudamente pagos, deixando fora destes as direcções artísticas, como os treinadores nas famosas "sad's". Presume-se que o director artístico também venha a ser bem pago, como é já o caso do Teatro São Carlos, cuja lei orgânica foi alterada exclusivamente para permitir a entrada do actual titular. Acho isto tudo um razoável disparate. Não só não vejo necessidade, depois do péssimo exemplo da defunta Fundação São Carlos, e no actual contexto orçamental, de presumíveis prebendas despropositadas para gerir os teatros, como entendo que os directores artísticos, sem prejuízo de poderem integrar o órgão de gestão, não devem ser os presidentes ou directores dos teatros. O que vi e conheci no São Carlos bastou-me para, se tinha quaisquer dúvidas, ficar sem elas, nesta matéria. O D. Maria repousa, para já, num quase eterno descanso. O São Carlos vive um frenesim vazio, virado para dentro, e sem que nada de verdadeiramente estimulante lá se passe, como vimos ontem. Como tudo isto custa dinheiro aos contribuintes e paciência aos trabalhadores, conviria pôr-lhe um digno ponto final.

18.9.03

UM BAILE DE MÁSCARAS

Um rápido relance aos jornais e vejo que o Ministério da Cultura, nas excelentes pessoas do ministro e do secretário de Estado, se associou à apresentação da "temporada de Outono" do único teatro de ópera português, o São Carlos. Óperas propriamente ditas, verdadeiramente só a partir de Janeiro. Agora o teatro está fechado para obras de manutenção, particularmente na zona de apoio - não na zona pública, nem no palco - as quais, grossomodo, foram ainda planeadas por mim, quando fazia parte do conselho directivo da casa. Quando me demiti dali em Abril, expliquei que o fazia por duas ou três razões fundamentais que, pelo que vejo, se mantêm: um orçamento desproporcionado, para baixo, em relação às necessidades de programação, uma organização interna cheia de vícios corporativos e praticamente inamovível e uma direcção errática, mais virada para o seu próprio umbigo do que para a instituição que dirige. O Ministério da Cultura podia ter-se poupado ao exercício algo patético ontem proporcionado pelo conselho directivo do TNSC e hoje, de alguma forma, denunciado pelos artigos dos jornais: "a conta-gotas" ou "onde está a temporada de ópera?". Tudo tem um princípio, um meio e um fim. Será que os actuais titulares da Cultura ainda não entenderam que está na hora de agradecer ao director artístico do São Carlos a prestação dos últimos anos e de partir para outra? Até quando se irá manter este funesto "baile de máscaras"?

17.9.03

TOYS'R'US

Comecei por ficar muito satisfeito por nos saber ao lado e acima de muitos dos nossos "colegas" da OCDE em matéria de investimento no ensino básico. Segundo aquela organização, Portugal é um dos países que mais dinheiro tem colocado naquele segmento da nossa população escolar. Depois veio o resto. Ao investimento realizado, não tem correspondido um resultado satisfatório no que concerne ao "rendimento" dos meninos. Eu, como decerto têm reparado, ando aqui há cerca de três meses a esforçar-me por encontrar coisas nossas, boas, e em bom. Verdadeiramente não tenho culpa de que haja quase sempre muito pouco que mereça ser puxado para cima. Julgo, enfim, que deve haver qualquer problema com esta raça. Eu ainda hoje me admiro como é que foi possível a aventura militar e tecnológica do desembarque de 1415 em Ceuta. Ou mesmo o que se seguiu por esses mares e terras em que, certamente por engano, ancoraram portugueses. Mais uns anitos, e as criancinhas básicas do básico ouvirão vagamente falar de tudo isto, como se de uma aventura à Potter se tratasse. Para eles, como para os mais crescidos, de muitos anos já feitos, será apenas mais uma brincadeira deste original "toys'r'us".
SAUDAÇÃO....
.... a mais um cidadão do mundo, que me parece livre (não confundir com "liberal", esse poço bcbg em que toda a gente adora mergulhar)

16.9.03

CREIO NO INFERNO, É PORTANTO AÍ QUE ESTOU...

....a frase é de Arthur Rimbaud, vista no Almocreve, mas é também por aí que eu ando. Daí ou daqui ( o Inferno é estar sentado no deserto, por exemplo), saúdo o regresso de Ulisses à Pátria, e saúdo ainda os papéis velhos e a gente viva do Abrupto. Os outros, os mortos-vivos prenhes de neurónios de que fala, podem, delicadamente, deslizar.
A RECEITA E O BARÓMETRO

Houve para aí uma pequena agitação doméstica por causa da receita. Não se trata de nada verdadeiramente novo. A execução orçamental é, em regra, e desde há anos, razoavelmente medíocre no que concerne à receita. Seja pela exiguidade do universo efectivamente tributado - isto é, notórios contribuintes e notórios pagantes -, seja pela correspondente evasão fiscal jamais erradicada ou diminuída, seja pelo nível da fiscalidade que convida a essa mesma elisão ou fuga, seja, ainda, pela erosão da máquina fiscal, o certo é que as nossas famosas contas hão-de andar sempre assim, coxinhas. Por outro lado, o ministro da economia, que de vez em quando desce à Terra, descobriu uma coisa extraordinária: que isto, afinal, não é tão mau, que nós não somos maus, só produzimos é pouco... Pois é. Esperemos para ver o que dá até 2010, diz o Dr. Barroso. Até lá, mais conversa sobre "produtividade" e "competitividade". E um "barómetro" para medir os putativos sucessos. A receita não medra, os nossos empresários também não crescem de " geração expontânea", a longa manus do Estado é o que se vê, e as famílias, que adoram gastar, vão começar a não achar graça nenhuma ao resultado. Mas também aqui não há qualquer problema. Na realidade, ninguém sabe onde é que isto vai parar. Nem julgo que verdadeiramente alguém se importe. Para quê?
BIG BROTHER EM CASA

A inefável TVI fez uma sondagem sobre os vícios privados dos adolescentes portugueses, entre os 14 e os 17 anos, mais ou menos. Chegaram à conclusão de que o futuro radioso de Portugal está nas mãos de umas meninas e de uns meninos que fumam loucamente - e não são propriamente cigarros -, que bebem o que podem e o que não podem, que passam as noites em farras e que, para perpétuo desgosto do Prof. César das Neves, fornicam que se fartam, e desde muito cedinho. Aliás, e em primeira mão, uma moçinha de 15 anos revelou a sua "primeira" a Manuela Moura Guedes que, apesar de tudo, reprimiu-se com muita dificuldade a explorar os detalhes sórdidos. As convidadas de Manuela - não sei por que não houve "convidados" - tinham todas um ar muito "beto", de quem vai à missa com a família aos domingos, de quem frequenta colégios privados e bentos, e de quem não parte um prato. Em tudo contrastam com as concorrentes do Big Brother, mais velhinhas, mais pobres, mas, pelos vistos, mais honestas. Quando a TVI explora, em cartazes espalhados pelo País, os rostos e os corpos destes rapazes e raparigas, quase todos oriundos de classes socialmente mais baixas do que as das meninas ontem inquiridas, e faz o que faz com eles dentro da "casa", está a promover junto dos telespectadores das classes média e alta (as que, de facto, não perdem o "espectáculo") um circo tantas vezes humilhante, aproveitando a legítima ambição de tentar ganhar facilmente uns cobres. É que aqueles, a avaliar pela "sondagem", não precisam do Big Brother para nada. Basta-lhes não sair de casa.

15.9.03

O NARCISO DOS LEITÕES

Não sei se repararam que a homilia dominical do Prof. Marcelo, desta feita, terminou de forma diferente. Antes de prosseguir, esclareço que mantenho pela figura grande estima pessoal e política, para além de sermos intermitentes companheiros de banhos no Guincho, preferencialmente fora das épocas habituais. Como dizia, Marcelo, em vez de sugerir as habituais leituras (por onde, aliás, tinha começado), no fim da prédica puxou de uma caixa que continha um leitão e ofereceu-a ao incrédulo jornalista de serviço, advertindo-o de que só não tinha trazido o vinho espumante que normalmente acompanha aquela iguaria, porque seria "pornográfico" (sic). Pelo meio discorreu sobre o 11 de Setembro, a remodelação que Barroso deve fazer, mas só para o ano, lá para o meio (que maldade!) e elogiou o discurso do "braço direito", como qualquer coisa muito bem feita, muito bem estruturada, mas muito longa e fora de tempo político (o Dr. Barroso, the number one, já tinha esgotado a sessão, uma segunda maldade). Tudo visto e ponderado, o melhor da prestação marcelista foi mesmo o leitãozinho. Teve o seu quê de felliniano, mas conseguiu dar uma excelente imagem do estado larvado a que tudo isto chegou ou está a chegar. Porém, quem é que entre o Governo, o PS, o déficit ou o Sr. Bush, não prefere um naco de leitão do Sr. Narciso, acompanhado por umas batatinhas fritas e um sedoso espumante? Grande Marcelo....
COSMOPOLITISMO

1. Nas breves palavras do JPP: escrevo este texto num cibercafé, sem acentos, nem tempo, sentindo-me, como muitas vezes me acontece, contente por ser "cosmopolita" e com heimatlos. À minha volta está um grupo de trabalhadores do leste, ucranianos, se é que ainda consigo distinguir as diferenças, de Lvov. A Internet faz de telefone e escrevem, escrevem , escrevem. Tem saudades, cuidam da casa, da mulher, dos filhos, da mae, pela rede. Ao lado deles, os blogues parecem inúteis, moinhos de palavras. Prossigamos.

2. Num encontro, em Rabat, perto do hotel em que pernoitava. Passou por mim um latoeiro - não sei se é este o termo - com uma bicicleta, carregada de pequenos objectos de trabalho. Sorrimos e eu tentei perceber o que é que aquele homem, com ar humilde, com a roupa suja do trabalho e do pó, fazia e de onde vinha. Nem ele sabia uma palavra de francês, nem eu sabia uma palavra de árabe. Não sei como, nem porquê, encostámo-nos ao ancoradouro que dava para o "rio" que atravessa Rabat, e estivemos para ali a "falar", por entre gestos e desenhos no ar, uma boa meia hora. Quando ele partiu na sua bicicleta mal amanhada, com o seu ar farrusco e com um sorriso infinito, acenando sempre, eu voltei para o hotel jeitoso e ocidentalizado, remoendo o meu nomadismo frustrado.

14.9.03

ATÉ QUANDO?

Como não tenho paciência para acompanhar as repetições enfadonhas do discurso de ontem do Dr. Portas, nas televisões, acabei por não "apanhar" a essência da bravata. Nem tão pouco a tenho para ler as reportagens nos jornais. Basta-me, no entanto, o que leio no cidadão livre, em quem confio. Ditas umas banalidades sobre "competitividade" - a maioria dos nossos políticos acha que vive no norte da Europa -, o "braço direito" largou umas vulgaridades parvas e inquietantes sobre a imigração, que caem sempre bem no doméstico ouvido pequeno-burguês, normalmente bronco. Emprego, é para portugueses, e fronteiras, é para ir fechando suavemente. Podia recomendar Kant ou Jacques Derrida a Portas. Podia lembrar-lhe o civismo clarividente da malograda Anne Lindh. Podia lembrar-lhe que fazemos parte da União Europeia. Etc. Etc. Infelizmente só me ocorre que Portas é membro do meu Governo, em 2003. Até quando?
COMENTADORES

Depois de escrito o post anterior, encontro, no blogue do Nelson de Matos, uma boa notícia "literária" para Novembro (mais Philip Roth- The Human Stain- em português, sempre na D.Quixote, que já nos tinha dado a Pastoral Americana, O Teatro de Sabbath e Casei com um Comunista) e um oportuno post, que reproduzo, sobre a anunciada época Outono/Inverno de comentadores nas tv's:

Cá estamos na rentrée. Os políticos no activo e com altas responsabilidades partidárias, vão regressar às televisões disfarçados de simples comentadores. Mesmo aqueles que, antes, deploravam esta promiscuidade. Nisto estou com o Miguel Sousa Tavares, há que fazer opções, não é sério, não é leal com os telespectadores. A não ser que exijam que o seu nome passe em baixo, sempre, acompanhado da indicação do partido que representam. Porque não me venham dizer que estão lá apenas a título pessoal, a desonestidade ainda seria maior. Até nos debates sobre futebol a gente sabe quem representam aqueles “individuais”.
CONCORRÊNCIA

Constato que estas certezas começam a ser alcançadas por estas dúvidas, em matéria de "vistas", segundo os respectivos contadores. Proponham- se, pois, as dúvidas para comentador num canal de televisão. Era, de facto, mais um, só que eventualmente diferente. É que para o peditório dos "outros", já estamos um bocadinho saturados de dar.
ISTO

Estive a pôr parte da leitura de jornais em dia. Ao longe, chegava-me o vozeirão épico do nosso estimado Dr. Portas, em directo, em comício de "reentrada". Estranho desígnio este, o dele, que nunca chegou verdadeiramente a sair... Estava muito contente com a subida a secretária de Estado de uma sua amiga e ex-secretária dele no Caldas. Pediu palmas para a Dra. Celeste e disse mais umas coisas que me escaparam por inteiro. Nestas mini-férias, estive a ler o primeiro volume da biografia de Mitterrand, por Jean Lacouture. Termina em Maio de 1981, com a chegada do dito ao Eliseu, à terceira tentativa e com 65 anos. Pela história de Mitterrand passam grandes nomes da história política e cultural francesa do século XX, uns seus amigos, outros notórios adversários. Mesmo os mais aparentemente insignificantes, eram bons, muito bons. Tudo aquilo "mexia" e tinha densidade, pensamento, ideal, combate. Quando ouço o Dr. Portas, quando leio os jornais, quando vejo os comentários por sobre o já demasiada e irrelevantemente dito e escrito, e apesar de não ser aquela a "minha " história, doi-me - é uma pena cosmopolita e nada provinciana - sermos isto.

13.9.03

RETRATO DO TURISTA ENQUANTO CÃO

Estive uns dias dias de férias num país dito do terceiro mundo. Juro que não fui "para fora cá dentro"! O que maça nestas deslocações é a vaga sensação de não se ter saído verdadeiramente disto. Via televisão-cabo, de aqui só me chegaram imagens sobre a pedofilia e a RTP, e dos regressados fogos. Entretanto pairam uma névoa e um cheiro a queimado no ar que incomodam, em Lisboa. Eu costumo viajar sozinho. Das poucas vezes em que me ocorreu a sublime ideia de ir acompanhado, percebi que estava, dessas vezes, completamente só, apesar da presença de uma criatura conhecida por perto. Nessas alturas, descobrimos que, afinal, a criatura nunca foi assim tão conhecida. Só que já é tarde... Assim, viajo eu, levando na bagagem os meus pesadelos e os meus fantasmas. É uma ilusão pensar que estes ficaram em casa, de férias. Lá surgem a meio de um dia, ou numa insónia inesperada, disfarçada com uma leitura noite adentro. Por isso, consumo daqueles "pacotes" que me obrigam a partilhar viagens com famílias, casais, amigos e amigas que, sem se conhecerem de lado nenhum, passada uma hora, julga-se que andaram todos na escola uns com os outros. Movem-se nos aviões, de conversata parva em conversata parva, numa obscena intimidade de uma semana feita. Trazem autênticos carregamentos de inutilidades e de futilidades. Normalmente não perceberam nada, nem procuraram perceber nada da vida do "outro" que visitaram. Movem-se como tribo autista, sem abdicaram da língua pátria, quase sempre mal falada e sem abdicarem uns dos outros. É o Portugal dos Pequeninos "on the road"...

6.9.03

A GASOLINEIRA
...podia ser a nova designação da TVI, pela ligeireza com que lança, a módico preço, combustível para a fogueira.
OS PRÓXIMOS EPISÓDIOS

O processo Casa Pia continua a sua desdita. Houve uma fala do Tribunal da Relação, o Sr. Juiz de instrução criminal continua e os advogados continuam contra ele. E continuam as outras falas, num processo em que há "partes" que nunca mais acabam. Os jornais são parte, a Manuela Moura Guedes é parte, o Dr. Felix é parte, o Sr. Namora é parte, os moradores de Torres Vedras são parte, a Ordem dos Advogados é parte, uns patuscos sindicalistas magistrados são parte, e por aí fora. O Estado de Direito, uma obsolescência que aprendemos na faculdade, é alegremente posto de lado no meio desta insensata tagarelice . Não sei por que é que ainda ninguém se lembrou de fazer disto um talk show , moderado pela Teresa Guilherme e pelo meu amigo Rogério Alves. Praticamente como no Burundi, este processo concorre mediaticamente com o Big Brother. Enfim, temos de nos entreter com qualquer coisa. Não percam os próximos episódios.

5.9.03

UMA ESTAÇÃO NO INFERNO

As primeiras criaturas da GNR já estão a caminho do Iraque para experimentar os 50 graus à sombra. Vão dois ou três graduados, e depois segue a soldadesca. Eu, na linha de François Mitterrand, até acredito na força simbólica dos grandes gestos. Acontece que este gesto de mandar a GNR, e eventualmente mais tarde, a própria tropa para o Iraque, para um composto multinacional, nem é grande nem é simbólico. No actual "estado da arte" no Iraque, onde nem sequer reina a pax americana, nem a da ONU, praticamente tudo o que vem de fora é para abater, e no sentido literal do termo. Sejam xiitas, sejam sunitas, sejam saddamistas, ou sejam lá o que forem, os iraquianos olham com a maior (e bem armada) desconfiança e desprezo, o Outro. Ninguém- a começar pelos americanos e pelos ingleses - estava ou está minimamente preparado para o que se ia seguir à remoção do ditador. Os primeiros já acusam mais baixas nesta fase, no que na guerra propriamente dita. Falar de "administração do Iraque" nesta altura do campeonato, seria risível, se não fosse trágico. É, pois, neste contexto "paradisíaco" que uma centena e meia de portugueses vai aterrar. Espera-os uma estação no Inferno.
LA NAVE VA

Neste nosso doce País do respeitinho, onde é que um governante eleito dizia coisas destas?
THE LAST EMPIRE

Miguel Sousa Tavares - 1 José Pacheco Pereira - 0

4.9.03

NÃO TE METAS

1. Suetonius saw the world's history from 49 BC to AD 96 as the intimate narrative of twelve men wielding absolute power. With impressive curiosity he tracked down anecdotes, recording them dispassionately, despite a somewhat stylized reactionary bias. Like his fellow historians from Livy to the stuffy but interesting Dion Cassius, Suetonius was a political reactionary to whom the old Republic was the time of virtue and the Empire, implicitly, was not. But it is not for his political convictions that we read Suetonius. Rather, it is his gift for telling us what we want to know. I am delighted to read that Augustus was under five feet seven, blond, wore lifts in his sandals to appear taller, had seven birthmarks and weak eyes; that he softened the hairs of his legs with hot walnut shells, and liked to gamble. Or to learn that the droll Vespasian's last words were: 'Dear me, I must be turning into a god.' ('Dear me' being Graves for 'Vae') The stories, true or not, are entertaining, and when they deal with sex startling, even to a post-Kinseyan. Gibbon, in his stately way, mourned that of the twelve Caesars only Claudius was sexually 'regular.' From the sexual opportunism of Julius Caesar to the sadism of Nero to the doddering pederasty of Galba, the sexual lives of the Caesars encompassed every aspect of what our post-medieval time has termed 'sexual abnormality.' It would be wrong, however, to dismiss, as so many commentators have, the wide variety of Caesarean sensuality as simply the viciousness of twelve abnormal men. They were, after all, a fairly representative lot. They differed from us - and their contemporaries - only in the fact of power, which made it possible for each to act out his most recondite sexual fantasies. this is the psychological fascination of Suetonius. What will men so place do? The answer, apparently, is anything and everything. Alfred Whitehead once remarked that one got the essence of a culture not by those things which were said at the time but by those things which were not said, the underlying assumptions of the society, too obvious to be stated. Now it is an underlying assumption of twentieth-century America that human beings are either heterosexual or, through some arresting of normal psychic growth, homosexual, with very little traffic back and forth. To us, the norm is heterosexual; the family is central; all else is deviation, pleasing or not depending on one's own tastes and moral preoccupations. Suetonius reveals a very different world. His underlying assumption is that man is bisexual and that given complete freedom to love - or, perhaps more to the point in the case of the Caesars, to violate - others, he will do so, going blithely from male to female as fancy dictates. Nor is Suetonius alone in this assumption of man's variousness. From Plato to the rise of Pauline Christianity, which tried to put the lid on sex, it is explicit in classical writing. Yet to this day Christian, Freudian and Marxian commentators have all decreed or ignored this fact of nature in the interest each of a patented approach to the Kingdom of Heaven. It is an odd experience for both a contemporary to read of Nero's simultaneous passion for both a man and a woman. Something seems wrong. It must be one or the other, not both. And yet this sexual eclecticism recurs again and again. And though some of the Caesars quite obviously preferred women to me (Augustus had a particular penchant for Nabokovian nymphets), their sexual crisscrossing is extraordinary in its lack of pattern. And one suspects that despite the stern moral legislation of our own time human beings are no different. If nothing else, Dr. Kinsey revealed in his dogged, arithmetical way that we are all a good less predictable and bland than anyone had suspected. (...) Suetonius, in holding up a mirror to those Caesars of diverting legend, reflects not only them but ourselves: half-tempted creatures, whose great moral task it is to hold in balance the angel and the monster within - for we are both, and to ignore this duality is to invite disaster.

2. Este texto de Gore Vidal tem mais de 40 anos. Foi escrito a propósito da edição, por Robert Graves, do livro "Os Doze Césares", de Gaius Suetonius Tranquillus. O que ali se escreve mantêm a frescura e a oportunidade. Li no Diário de Notícias que o sucessor de Aznar na liderança do PP e candidato a Presidente do Governo nas próximas eleições, Mariano Rajoy, era "acusado de ser gay". A novela foi despoletada pelo insuspeito PSOE, num comício "macho" com mineiros, através de umas piadas de gosto duvidoso do Sr. Alfonso Guerra, dirigidas a Rajoy. Parece que o Sr. Zapatero, o chefe, que também lá estava, riu a bom rir com as grosserias do outro. Feitas as contas, os espanhóis não acharam graça nenhuma a isto. O PSOE desceu imediatamente nas sondagens e o PP passou-lhe 12 pontos à frente. A orientação sexual não faz uma política nem desfaz necessariamente um líder. Os nossos antigos césares, eminentes libertinos e maiores estrategas, não deixaram de saber mandar e de conduzir povos e nações pelo facto de, indistintamente, gostarem de mulheres e de rapazes. Hoje em dia, não faz sentido nenhum andar a discutir se o governante x é mais putanheiro do que o colega y, ou se prefere dormir com um homem ou com uma mulher, maiores de idade. Se há coisa que a vida nos ensina, é que, nesta matéria, não há padrões, nem há uma norma. O sexo não é do foro normativo, como alguns tolinhos, desde o princípio dos tempos, nos tentam fazer crer. Por causa deste incidente de mau-gosto com Mariano Rajoy, lembro-me sempre da frase com que termina o romance de Almada Negreiros, Nome de Guerra: "não te metas na vida alheia se não quiseres lá ficar".

3.9.03

LER
....o grande equívoco, um belo e bem escrito post sobre os nossos romancistas, no Abram os Olhos. Eu acho que ele "vê" melhor porque está longe disto.
DA FRANÇA E DA ALEMANHA

Poucos dias antes de morrer, a 6 de Janeiro de 1996, François Mitterrand, no seu leito da Rua Frederic LePlay, em Paris, escrevia afanosamente e à mão o seu "testamento político", que viria a ser o livro, não terminado, "Da França e da Alemanha" (Ed. Círculo de Leitores). Mitterrand defendia uma União Europeia assente no "eixo" franco-alemão. Nada de extraordinário, já que a illha do Sr. Blair nunca pesou excessivamente nas contas dos então líderes do "eixo" que, relembremos, se davam muito bem com a Sra. Thatcher. Nas recentes peripécias iraquianas, o "eixo" honrou a memória de Mitterrand e não foi tomar o pequeno almoço com o Sr. Bush. Vem isto a propósito de um post do JPP. Ele queixa-se de que nós, pobres coitados, andamos neste aperto para cumprir o famigerado Pacto de Estabilidade e Crescimento - destinado, consta, a peneirar ainda mais os países do sul da União -, enquanto que a França e a Alemanha passam incólumes por sobre a meta fixada do déficit público, com a aparente tolerância de Bruxelas. JPP fala em humilhação se não tomarmos uma atitude de firmeza. Eu respeito imenso e quase sempre as posições de JPP, nestas e noutras matérias. Mas ele, bem melhor do que eu, sabe o que é que nós verdadeiramente pesamos nas contabilidades de Bruxelas e da União Europeia. Para bem ou para mal, a França e a Alemanha são grandes países e, como tal, têm desígnios e ambições que nos escapam por inteiro. Ou seja, mandam. A nossa indigência periférica não estará nunca à sua altura e jamais se ultrapassará por sermos muito certinhos nas contas, muito obedientes ao Pacto ou por nos mostrarmos "firmes e hirtos" nas reacções. Ninguém nos vai dar mais importância por isso.
AMIGOS

Li, numa notinha do Diário de Notícias, que o José Pacheco Pereira tinha escrito no Abrupto que o CDS/PP era uma entidade unipessoal, vergada (o termo é meu) ao Dr. Portas, confundindo-se os respectivos entes. O JPP é, no universo político (ou meta-político) nacional, das poucas pessoas que melhor conhece o líder do PP. Juntamente com ele e com Carlos Candal, disputou eleições em Aveiro, nos idos de 95. Por isso domina razoavelmente o "populismo" nada atípico de Portas, cuja propedêutica teve o seu melhor avatar justamente em Aveiro. Parece que o PSD se prepara para uma coligação formal nas eleições europeias de 2004, e que JPP já se dispôs a sair para não perturbar a estupenda mais-valia representada pelo partido de Portas. Quando Marcelo reinava efemeramente no PSD, achei que era boa ideia dar o braço ao CDS, já que Guterres ameaçava sorridentemente eternizar-se. O que se seguiu é conhecido. Nessa altura, Barroso não estava para se preocupar com o "pequeno partido" à sua direita, nem para andar com Portas "às cavalitas". Como escrevi ontem, na política, uma mão lava a outra, e o Dr. Portas está onde está, imaculado. À minha estima intelectual e política pelo JPP desagrada a sua eventual saída do PE por causa dos "amigos do CDS", na terminologia de Barroso. Ele é dos "nossos". O que sempre apreciei no PSD foi a sua vocação maioritária, "à Cavaco", como o JPP. Não me interessa para nada este tropismo de coligação, por causa de um homem ou de um punhado de "amigos". Oxalá não se revelem, para Barroso, "amigos da onça".

2.9.03

O MACACÃO

Numa longínqua Contra-Informação, dos tempos em que o já saudoso Dr. Jorge Coelho mandava, o respectivo boneco, a propósito de umas preocupações circunstanciais de "Toneca" Guterres, dizia para ele não se preocupar, "que se desse ao povo o que o povo gosta": umas bailarinas, um macaco (alusão o um macacão que aparecia num programa de João Baião) e futebol. Desaparecidas as bailarinas, ficou o futebol e eventualmente um macacão. Eu pecador me confesso, mas não ligo pevas à bola. A vizinhança bloguista, e muita da que consta da lista da direita, escreve que se farta sobre o curso do esférico nacional. Porém, como vejo tv, estou sempre a levar com a bola no focinho. Por estes dias, reparei que o Sr. Mourinho, que até tem bom aspecto, perorou com abundância. Se bem percebi, entre ele e o mundo, que começa logo nos jornalistas, existe uma sublime distância, encurtada aqui e ali quando a veneranda figura decide mostrar os seus talentos oratórios. Percebe-se que a criatura só sabe falar de si e para si, na melhor tradição Pinto da Costa. Depois de o ver e de o ouvir, pressenti que o macaco Adriano, o tal do João Baião, afinal, ainda não se tinha ido embora. Mudou apenas de fato, não canta, mas fala, e pôs gel na mona.
ESPERA III

Era com estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo,
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.


Joaquim Manuel Magalhães, Uma luz com um toldo vermelho
GUTERRES

Passando há pouco por um quiosque, reparei num título de um jornal. Dizia qualquer coisa como isto: o rendimento mínimo nacional, em 2002, retirou cerca de 13000 almas da miséria. No fim de semana, noutro jornal, o Sr. Sócrates jurava que o Eng.º Guterres era um bom candidato a Bélem. O Prof. Marcelo já o põe a disputar a coisa, ou com Cavaco, ou com Lopes. Lula da Silva, via ONU, vai contar com os ensinamentos de Guterres na área das reformas "sociais". Estes três ou quatro sinais demonstram que o homem, não só já saiu do pântano onde voluntariamente se tinha atolado, como já começou a passar-se por água para retirar as sujidades que possam ter ficado coladas ao corpo. Pelo sim, pelo não, é bom que esteja "limpo" para as eventualidades de 2006. O País de Guterres, entre 1996 e 2001, ou pelo menos até 1999, era um país satisfeito consigo mesmo, repleto de eventos light, despreocupado e com dinheiro para gastar. Até 2006, se a contabilidade da penúria não arrepiar caminho e se a economia não começar rapidamente a sorrir, muito boa gente pode vir a ter saudades daquele País e do seu rosto mais emblemático. Em política, como no amor, uma mão lava a outra, e está a andar.

1.9.03

A VER NAVIOS

Ainda a loucura do Euro 2004 está longe de estar pronta, e ainda mais longe está de estar paga, e já se anda a pensar em nova odisseia. Aproveitando a visita a Portugal do Presidente da Confederação Helvética, o Dr. Sampaio e o Dr. Barroso uniram as suas vozes no sentido de tentar trazer para cá uma tal American Cup, uma coisa que tem a ver com vela, que decorrerá em 2007, putativamente no idílico cenário marítimo que vai de Lisboa a Cascais. Como quem decide o local do evento é a Suiça, as operações de charme já começaram, para ver se se retira a organização a outros países também candidatos. O Dr. Barroso prometeu investimento público para a coisa e Jorge Sampaio acha magnífico o estuário do Tejo. O património deteriora-se, os museus não têm dinheiro para abrir, as bibliotecas morrem lentamente, os teatros nacionais são como túmulos, etc, etc. Mas, na verdade, o que é isso comparado com umas quantas velas desfraldadas ao sol de Lisboa para estrangeiro ver? É por estas e por outras do género que vamos andar sempre "a ver navios".
A LENTE E A ESCURIDÃO II

Este infeliz processo judicial, que dispensa apresentações, conheceu mais um episódio, confirmando o que eu tinha escrito no post anterior. A defesa, respondendo à errância decisória do Sr. Juiz de Instrução Criminal, promoveu o seu afastamento do processo, pelo que as diligências previstas e o circo anunciado, ficaram a aguardar melhores dias. Nas auscultações populares que se seguiram, nas rádios e nas tv's, a ignorância, que é sempre atrevida, lá lançou mais uns quantos dislates sobre o dinheiro dos advogados e o oculto poder dos "poderosos". Convinha talvez explicar a esta gentinha que os "poderosos" de hoje, podem ser eles mesmos amanhã. Eles querem lá saber o que é um "estado de direito".
A LENTE E A ESCURIDÃO

Julgo que a maior parte das pessoas ainda não se apercebeu de que, dentro de poucas horas, começa a ser "julgada" a justiça portuguesa. Da acusação, à defesa, dos magistrados aos advogados, dos arguidos às testemunhas, dos jornalistas aos polícias, dos responsáveis pelas instituições a ex-membros das mesmas, toda esta gente, consciente ou inconscientemente contribuiu para que, a propósito de um processo judicial, se instalasse um espectáculo. Como se isto não bastasse, as televisões preparam-se para o transmitir em tempo real. Aqui, porém, começa outro problema. A ausência de jornalistas nas audiências vai gerar uma complicada rede de informações e contra-informações, de meias-verdades e de meias-mentiras sobre o que realmente se está a passar, sem falar nos detalhes sórdidos a que seguramente não seremos poupados. Para quem trabalha diariamente com o direito, como promessa de realização da justiça, no sentido de inocentar os inocentes e de punir os culpados, mantendo vivo o sentido de "sociedade", este espectáculo anunciado apresenta tons demasiado escuros. Perguntava Clarice Lispector em um dos seus romances: "se eu olhar a escuridão com uma lente, não será que a amplio ainda mais"? É entre a lente e a escuridão que, por estes dias, a justiça portuguesa vai andar. A ver vamos.