22.9.03

ÓPERA NÃO BUFA

Depois de assistir ao concerto de abertura do Festival de Órgão de Lisboa, numa noite da semana passada, fui, com uns amigos ligados à cultura, à música e à ópera, cear algures perto da Sé. As conversas foram, pois, em torno da cultura, da música e da ópera. Quando digo ópera, digo Teatro Nacional de São Carlos. Pelo meio, alguém lembrou um texto de 1998, em que o Teatro era referido. Corria então na Gulbenkian um seminário sobre a "Europa e a Cultura". Maria Filomena Mónica perorou acerca do "Estado e a Cultura". Eu estava lá e ouvi muito bem. Fui à minha estante consultar as actas do Seminário, publicadas pela Fundação Gulbenkian e encontrei o texto. Tem cinco anos, mas julgo oportuno, no contexto do início da temporada minimalista do Teatro de ópera nacional, e ainda dentro do "ciclo" de posts que decidi dedicar à matéria, reproduzir aqui a parte da comunicação de Filomena Mónica sobre o dito. Antes, porém, uns comentários prévios:

1. A autora é bem mais radical do que eu quanto ao assunto. No entanto, já há cinco anos, alguém bem mais notório, notável e interessante do que eu, achava que o Teatro devia parar para pensar, como sugeri na minha carta de demissão deste ano.
2. A autora é muito crítica em relação a Manuel Maria Carrilho, à altura, o ministro da Cultura. Eu nem tanto. Teve pelo menos o mérito de acabar com a terrível Fundação de São Carlos, um embuste destinado a sorver dinheiros públicos sobre a capa respeitável da figura jurídica da "fundação".
3. A relação custo/benefí­cio num teatro de ópera, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, é qualquer coisa de complicado. Os problemas do São Carlos começaram muito cedo. Na década de 70 do século XIX, por exemplo, e para não irmos mais para trás, houve quem pensasse em entregar a exploração do Teatro a uma concessionária privada, mediante concurso. Meu caro A. M. Seabra, a famosa "sub-orçamentação" já vem de longe, como muito bem recorda. A questão dos famosos não-pagantes, "nomenklatura" e respectivos serventuários e amigos, mantêm-se quase inalterada, o que se justifica por ser porventura a única maneira de, a maior parte deles, ir, por uma vez, à ópera. O estudo de Carlos Barros referido no texto deverá, em breve, ser "actualizado, já que o autor pediu, enquanto eu estava no Teatro, dados recentes.
4. A formação de novos públicos e a ligação do Teatro com a escola, está na lei como letra-morta. Seja por causa dos dinheiros, seja por causa da absoluta ausência de um pensamento integrado e estratégico para o Teatro, ou seja, sobretudo, porque este tipo de investimento não pesa no curricula dos directores, nem dos maestros titulares, nem nas críticas amáveis, bem podem os espectadores ir morrendo de velhinhos...
5. O Teatro, agora, praticamente não"monta" uma produção e, sobretudo nos últimos anos, tem apostado em algumas co-produções. Mesmo em períodos anteriores aos referidos no texto de Filomena Mónica, designadamente com José Ribeiro da Fonte, isso já acontecia.

Dito isto, segue a citação.

(...) Durante anos, com base na tese de que uma sociedade civilizada teria de oferecer aos seus cidadãos um local onde se pudesse encenar ópera, argumentei que, independentemente dos custos, não se poderia fechar o Teatro Nacional de São Carlos. Não porque o frequentasse, mas porque, apesar de tudo, ali tinha assistido a algumas interpretações notáveis. A ópera, quando bem tocada, cantada e representada, é um prazer de tal forma sofisticado que gostaria de o tornar acessível a todos. Mas o projecto não se revelou de fácil execução. Por um lado, o São Carlos teima em fechar-se sobre si, e, por outro, a televisão não se interessa por divulgar o que ali é apresentado. Mais importante, a população não tem preparação para apreciar o que ali é cantado.
Um dia, em 1994, fiz as minhas contas. Previa que, num teatro de tão reduzida dimensão o custo por bilhete fosse elevado, mas nunca pensara que ascendesse a 31.740$00. Como, em média, os bilhetes da plateia andavam à volta de onze contos, isto significava que, de cada vez que eu assistia a um espectáculo, o Estado me dava um bónus de cerca de vinte contos. Mesmo assim continuei a defender a intervenção pública. Não em nome dos ricos - que se podem deslocar com facilidade a qualquer capital europeia - mas em nome da comunidade. Pensava que, com mais e melhor educação, os filhos da classe operária seriam, um dia, tão capazes de apreciar a "Tosca" quanto os filhos da burguesia. O montante do subsídio não me chocava, desde que o Estado se empenhasse em ensinar os meninos, todos os meninos, a ler uma pauta de música. Portugal não era suficientemente rico para que do seu solo brotassem mecenas capazes de organizar "Glyndebournes". Teria de ser o estado a colmatar a lacuna.
Mas as coisas foram-se complicando. Em primeiro lugar, o Estado não dava mostras de mudar fosse o que fosse no que à aprendizagem musical dizia respeito. Em segundo lugar, descobri algo de escabroso. Na base das estatísticas relativas aos bilhetes do São Carlos, entre 1989 e 1994, um professor do ISEG, Carlos Barros, concluiu que, nos trinta e seis espectáculos que o São Carlos organizara, das setecentas e quarenta e três pessoas que, em média, a eles tinha assistido, um terço, digo bem, um terço, não tinha comprado bilhete. Esta estranha fauna, composta pelos amigos dos ministros e pelos amigos dos amigos dos ministros, tinha recebido gratuitamente os bilhetes.
Eis senão quando verifico que o custo real de um bilhete do São Carlos é hoje (1997) de noventa e cinco contos. Sentindo talvez que o montante poderia chocar, o actual minsitro decidiu acrescentar o seguinte, após aquela revelação: "Temos que subsidiar o povo que vai à ópera". O povo?! Será que Manuel Maria Carrilho não reparou que, nem mesmo na geral, jamais se sentou um representante das classes populares? Hoje, penso que, enquanto as escolas portuguesas não tiverem professores de música, o São Carlos deve ser encerrado. Não quero que os meus impostos sejam utilizados para que a "nomenklatura" assista gratuitamente a récitas no São Carlos.
Sei que o problema não ficará resolvido. Continuo a pensar que uma comunidade precisa de uma sala onde possa ouvir ópera. Mas, para o fazer, convêm saber amá-la. E, sem estar educado, é impossível. A melhor forma de justificar uma companhia nacional seria através da sua capacidade para, em simultâneo, servir de escola para jovens intérrpretes, papel que o SãoCarlos nunca desempenhou. Aliás, terão todos os países, mesmo os mais pequenos e pobres, de possuir uma companhia lírica própria? Não se poderia, por exemplo, montar co-produções, que sucessivamente se apresentariam nas capitais europeias?

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