Afinal era num tribunal. Ao saber que a filha fica "confiada" ao pai, Gena Rowlands colapsa sem qualquer colapso. Deita-se apenas no chão. Pura impotência. Mais adiante - revi o filme graças à amizade e à habilidade "tecnológica" do Zé Maria e do Nuno Fonseca - Rowlands está no psiquiatra (em 1984 dificilmente estaria com um psicólogo) e ambos fumam (vejam lá). Rowlands explica que o amor é uma corrente ("love streams") e, como tal, é contínuo. Não pára. Tudo o que lhe acontece - a família esfarelada, a vida absurda - resulta de essa corrente poder ser interrompida, o que ela recusa. Aí entra o psiquiatra. Diz-lhe que, contrariamente ao que ela pensa, o amor pára ("it stops"). E pára mesmo. Se calhar, o papel do psiquiatra é precisamente o de nos dizer que o amor pára. Ele é necessário porque não existe qualquer corrente de amor em regime de continuidade. É ele que devolve "realismo" ao absurdo gerado pela não compreensão do fim da corrente. Talvez o essencial se resuma, afinal, ao meu querer que haja uma corrente infinita e ela não estar lá. Nunca. Daí o álcool, os comprimidos, os amantes furtivos. Deus? A Duras tinha uma "fórmula" cruel para dizer isto. O álcool tomou o papel de Deus. Substituiu-O. Será verdade? Os personagens de Cassavetes começam a beber logo de manhã. E porquê este arrazoado? No 2º volume de Tudo o que não escrevi, Eduardo Prado Coelho está a dada altura numa retrospectiva de filmes de John Cassavetes em Paris. E acerta. «Cassavetes filma o dentro dela, com as suas convulsões e precipitações, as suas cores afectivas, filma o medo da respiração, filma o prazer, o espasmo, a angústia, o último reduto do corpo (...). Tem a capacidade de mostrar a degradação, sem se atribuir, ou nos atribuir, um lugar de arrogância, filma tudo, filma-se em tudo (...). Cassavetes embate contra os muros, investe, insiste, relança-se, fere-se na ressaca das imagens, esfrangalha-se contra a sua própria impotência, e vence, em última instância, por um lance improvável.» O cinema de Cassavetes - a corrente, "love streams" - «é sempre o grito interminável da solidão». Ámen.
1 comentário:
Brilhante este texto. Brilhante!
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