27.3.11

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA POESIA PORTUGUESA DE UM PARA O OUTRO SÉCULO AO SOM DE CHOPIN TOCADO POR MARIA JOÃO PIRES



Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz, talvez.
Canta, e roussa. E a sua voz, cheia
De alegre e anónima liquidez

É branca como um grito de ave
Num ferro de Alcácer-Kibir,
E há résteas de luz e de adarve
No som que ela faz a se vir.

Ouvi-la, alegra e aborrece.
na sua voz há recidiva.
E roussa como se tivesse
Mais fodas a dar do que a vida.

Ah! Poder ser tu sendo eu!
Ter a tua alegre limalha
E todo o ouro dela! Ó céu
Ó campo, ó canção,

O homem pesa tanto e a matriz é tão leve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Meu ânus o vosso almocreve!
Depois, levando-me, passai.

Mário Cesariny


Elas passam, magras estudantes,
julgando-se felizes talvez,
passam e passam, as pernas e os dentes
mostram saúde e altivez.

Os jeans ao atravessarem a nave
maior do centro comercial
estreitam a cintura suave
numa falsa aparência virginal.

Vê-las alegra e entristece,
o seu corpo é uma matéria mais pura,
e cada uma, como se soubesse,
mostra-se obstinada e segura.

Passam e passam, são toda uma tarde,
sentinela que em mim sente
esta palha seca que arde,
que às vezes engana, mas não mente.

Poder tê-las sem qualquer dano
e à sua alegre inconsciência,
misturando nos dedos a pele, o pano,
os ossos, a transparência.

A tarde fez-se a hora do regresso,
o coração sussurra e quase cai
aos pés das raparigas a quem peço
‘de novo, levando-me, passai’

Pedro Mexia

3 comentários:

APC disse...

Isto é um novo trecho do Sonambulo Chupista do Luiz Pacheco? só que em vez do V. Ferreira e do F.Namora, os protagonistas são outros?..

joshua disse...

Um dos teus melhores posts, senão o melhor. Declamei os poemas à minha mulher, enquanto a música escorria, e ela disse: «Você lê mesmo muito bem!»

Anónimo disse...

Ò Gonçalves: muito gostava eu de saber porque é que "um anus.. almocreve" - no poema do Cesariny -há-de logo ser elevado a arte? Porque raio é que a perversão - repito, a perversão - há-de tornar uns sujeitos artisticamente superiores? Uns espíritos sublimes enquanto vão comemorando "festas de anûs"? O Eça, ao menos, era chefe de família. Você não é, pois não?