13.10.10

«LAMENTO DE UM PAI DE FAMÍLIA»


Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta neste tempo de filhos só de puta ou só de putas
sem filhos ? Neste espernegar de canalhas, como pode ser ?
Antes ser gigolô para machos e ou fêmeas, ser pederasta
profissional que optou pelo riso enternecido dos virtuosos
que se revêem nele e o decepcionado dos polícias que com ele
não fazem chantage porque não vale a pena. Antes ser denunciante
de amigos e inimigos para ganhar a estima dos poderosos ou
dos partidos políticos que nos chamarão seus génios . Antes
ser corneador de maridos mansos com as mulheres deles fáceis .
Antes reunir conferências de S. Vicente de Paula para roçar
o cu da virtude pelas distracções das sacristias escuras e
ter o prazer de acudir com camisolinhas aos pobres entre os quais
às vezes aparece um ou uma que dá gosto ver assim tão pobre por
por se lhe verem os pêlos pelos rasgões da camisa ou algo
de mais impressionante para o subconsciente que sempre está nos olhos
que docemente se comovem com a miséria . Antes ir para as guerras
da civilização cristã ou da outra , matar os inimigos da conta
[corrente

e das fábricas de celofânicas bombas. Antes ser militar.
Ou marafona de circo . Ou santo. Ou demónio doméstico
torcendo as orelhas dos filhos à falta de torcê-las aos filhos
da puta. Ou gato. Ou cão. Ou piolho. Antes correr os riscos do
DDT, das carroças que os municípios têm para os cães suspeitos
de raivosos como todos os cães que se vê não lamberem as partes
das donas ou mesmo dos donos. Antes tudo isso que assistir a tudo,
sofrer de tudo e tudo , e ainda por cima ter de aturar o amor
paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo
que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta
e elas quiseram ir. Antes morrer.
Mas que adianta morrer ? Quem nos garante que a morte
não existe só para os filhos da puta ? Quem me garante que
não fico lá, assistindo a tudo, e sem sequer poder chamar-lhes
filhos da puta, com o devido respeito a essas senhoras que
[precisamente
se distinguem das outras por não terem filhos nem desses nem
[dos outros ?

Mas mesmo isso não consola nada. A quantidade , a variedade
gastaram a força dos insultos. E não se pode passar a vida ,
esta miséria que me dão e querem dar a meus filhos, a chamar nomes
feios a sujeitos mais feios do que os nomes. Como pode um homem
sequer estar vivo no meio disto , sem que o matem?
E o pior é que o matam, sim, e sem saberem primeiro quem,

para não se inquietarem com o problema de terem morto por engano
um irmão , desfalcando assim a família humana de algum ornamento
que a tornava menos humana e mais puta.

8 comentários:

MINA disse...

Uma notável meditação poética de Jorge de Sena, tão actual agora como na data em que foi escrita. Nada mudou. Ou antes, tudo ou quase mudou para pior.

Sena é realmente uma das mais lúcidas figuras portuguesas do século XX.

joshua disse...

Poema demasiado actual para mim: «Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta?!»

Insurrecto Meditativo disse...

Muito bom.

Anónimo disse...

Sena actual e terrível e a denunciar esta lixeira, que era a do seu tempo como é agora nossa; mas sempre amargo, de coração ferido e infeliz por não ser chamado de volta e reconhecido. Este era o único sítio capaz de o reconhecer. Não aconteceu.

APC disse...

Olá JG - que bom ter publicdo este poema sobre o qual falámos há uns meses, não foi amigo ?

Anónimo disse...

A amargura que nos consome todos os dias. E o palhaço «fica». E sorri com dentes de alarve.

Anónimo disse...

Um poema extraordinário. Na proporção inversa da esterqueira do jardim da Europa à beira mar plantado. Muito obrigado pela partilha.

Merkwürdigliebe

Daniel Gonçalves disse...

Só agora estou a ter conhecer a obra de Jorge de Sena. Há uns tempos atrás tentei arranjar num alfarrabista o livro "Maquiavel e Outros Estudos" de Sena, editado em meados dos anos 70, mas o mesmo já tinha sido vendido e não o consegui, pelas mesmas razões, noutros alfarrabistas, portanto agradeço ao Dr. João Gonçalves todos estes excertos da obra de Jorge de Sena aqui publicados no blog.