13.6.08

CENTO E VINTE ANOS



Teria para aí uns quinze, dezasseis anos quando "descobri" Fernando Pessoa. Chegou-me nas fotocópias distribuídas pela professora de português onde constava o nome de Alberto Caeiro. O mais "humano" dos heterónimos, o "mestre" dos olhos azuis, escondia o resto. Aos poucos, Pessoa avançava pela sua própria voz e, sobretudo, pela do febril e heterodoxo "engenheiro de máquinas", Álvaro de Campos. Li-o num livrinho da Ática, de capa amarela, organizado por David Mourão-Ferreira, O Rosto e as Máscaras. Bernardo Soares viria muito mais tarde. A emergência de Pessoa equivale a um murro no estômago. Não é possível, a não ser por analfabetismo funcional, ficar indiferente ao mínimo verso do homem. Escrevo "homem" com esforço, apesar de sabermos que andou por Lisboa, que teve um emprego modesto, que privou com "amigos". Na realidade, Pessoa, como tal, pouco existiu, pelo menos naquele sentido frívolo que costumamos associar ao termo "viver". Mais cedo do que qualquer um de nós, no dia do seu nascimento que hoje se comemora, já Pessoa caminhava para o fim. "Viveu" sempre e só nesse lugar de abismo que era a letra dos seus versos, como um Wotan desapossado de amor e de liberdade, simultaneamente o mais humano dos deuses e o Deus mais cruel dos homens. Já fui mais "pessoano" do que sou hoje. E já fui mais tudo do que sou hoje. Tive o privilégio de falar uma tarde inteira, na sua casa na Calçada das Necessidades, com João Gaspar Simões por ocasião dos cinquenta anos da morte do poeta. Varri os livros de Jacinto Prado Coelho, Lind, Eduardo Lourenço, Saraiva, Lopes e Casais Monteiro. Muitas vezes pego na pequena edição da Aguilar e escolho ao acaso um verso. "Todo o cais é uma saudade de pedra", por exemplo. «Muitos homens tiveram saudades e viram cais, mas temos razões para chamar momento raro a esse em que uma consciência de poeta arrancou do mundo das palavras portuguesas esta espécie de inscrição de estela imortal, que depois dele todos temos guardado em algum sítio, todos, os que viajaram e os que só na alma viajam», escreveu Lourenço em 1952. «Pessoa limitou-se a sentir e a pensar o existente, bem ou mal não interessa, e a compreender que uma consciência está sempre aquém e além de todas as coisas, jamais coincidente com a existência delas. E mesmo com a existência em geral. Fê-lo como nunca ninguém o tinha feito. Nem Antero. Mas com isso o extraordinário poeta do "lado ausente de todas as coisas" não "serviu" ninguém. Serviu a sua inviolável solidão e pediu aos outros que cercassem a deles de altos mutos. Não cremos (Pessoa é muito complexo) que a sua poesia seja alheia a outros gestos igualmente últimos do homem: o apelo da fraternidade, da esperança, do amor. Se assim for, significa que é limitado e nada mais. Há homens (houve sempre e pessoalmente desejamos que a sua raça estéril e altiva nunca mais acabe) que não são capazes de olhar até ao fim o espectáculo do mundo e da história tendo aí a palavra "esperança". Homens do Inferno, se acreditarmos em Dante. Fernando Pessoa talvez tivesse sido um deles. E porque não devia sê-lo?» Pessoa é o nosso maior cometa trágico, o rei-astro morto da nossa falsa e desesperançada Baviera.

12 comentários:

João Melo disse...

lindissimo post João

Anónimo disse...

numa terra de machistas que habitualmente nasceram sem tomates foi a única voz que em 1935 se insurgiu contra a ilegalização do grande oriente.esta escumalha agradece ignorando-o. não admira, muitos maçons confundem Hiram com Irâo

joshua disse...

Pessoa a si próprio se fitou Medusa para que eu, lendo-o, reencarnasse cada seu Poema de Carne Intelectual. «Nunca conheci quem levasse porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes vil...»

Não se é mais ou menos pessoano, depois de o descobrir, como tu algures na tua história lente. Com sorte, é Pessoa quem poderá ser-nos ao fecundar-nos dos seus Vários silente.


PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

Bom texto. Gostei de ler.

Anónimo disse...

Por uma vez, acho que concordo inteiramente consigo, homem, e lhe cumprimento este naco de prosa.

Anónimo disse...

Muito bom!
Num dia de evocações chochas e alguma palhaçada hip-hop é bom ler algo de interessante sobre Fernando Pessoa.

www.patrimonios.blog.com

Anónimo disse...

Parabéns, gostei muito deste post.

cristina ribeiro disse...

O melhor que li sobre Pessoa, na blogosfera.

Anónimo disse...

Tenho-o criticado e corrigido,caro J.Gonçalves,mas neste caso resta-me tirar o chapéu (que não uso,apesar das recomendações do seu querido Dr.António)a este magnifico texto.

ana v. disse...

Excelente texto. "O nosso cometa trágico" é uma descrição perfeita de Pessoa e daquilo que foi a sua vida.

Anónimo disse...

Uma autêntica homenagem a Pessoa. Parabéns pelo post

Teresa disse...

Gostei muito, muito, muito. O seu texto emocionou-me.

Lembro-me bem (não, não é "do seu olhar", desta vez) desse O Rosto e as Máscaras, também quando tinha dezasseis anos. Mas o grande, o inesquecível encontro com Pessoa só se daria mais tarde, todo numa longa noite de S. Silvestre que atravessei primeiro com Álvaro de Campos, lido de fio a pavio, muitas vezes as lágrimas a dificultarem-me a leitura, a seguir com Alberto Caeiro, o grande bálsamo.

«Mais cedo do que qualquer um de nós, no dia do seu nascimento que hoje se comemora, já Pessoa caminhava para o fim.» — não posso concordar mais consigo, tudo o que julgo saber sobre Fernando Pessoa confirma as suas palavras. Nunca deixo de me condoer com a vida tão estranha e tão triste do homem apagado que estava destinado à eternidade. E às vezes pergunto-me, eu que o considero um dos homens da minha vida, se teria sabido ler nas entrelinhas, caso o tivesse conhecido... E julgo que não, o que é atroz. Provavelmente achar-lhe ia o ar insignificante, repararia no colarinho e nos punhos puídos, no fato coçado, nos dedos amarelos do cigarro constante...

Lembro-me, na carta de adeus a Ofélia, depois de palavras que ainda sei de cor ("Fiquemos, um perante o outro", etc.) da sua clarividência. Fernando Pessoa sabe que a sua verdadeira vida não se cumprirá senão depois de morto. Obedece a outros mestres.

E não, não é só "aniversariamente lembrado duas vezes por ano". Anda sempre comigo. JUlgo que também consigo. Julgo que com muita gente.