Com a alegria que posso ter - é cada vez menor, acreditem - reproduzo, sem lhe pedir licença, o artigo de Constança Cunha e Sá publicado hoje no Público. Precisamos de bravos como ela e não de falsos mansos complacentes como a maioria.
«Há pequenos incidentes que, na sua aparente insignificância, valem pelo mundo que revelam. Não é necessário chegar aos excessos do ministro Mário Lino, onde o advérbio francês "jamais" compete efusivamente com "desertos" a preservar a todo o custo e com a irresponsabilidade das decisões governamentais. Às vezes basta a auto-satisfação miúda com que um ministro alardeia o "pluralismo" do PS e a generosidade de um governo que se dá ao luxo de "permitir" que um militante socialista se apresente numa televisão privada a criticar as políticas apadrinhadas pelo primeiro-ministro e chefe supremo do partido. Perante um exemplo tão magnífico como este, o dr. Santos Silva não se conteve: desafiando adversários e dois ou três socialistas que primam pela ingratidão e pela excentricidade, o ministro, sempre atento a qualquer tipo de desvio na informação, pegou numa pequena entrevista na SIC-Notícias, dada por Manuel Alegre, para cúmulo, em "horário nobre" e não madrugada dentro, como seria de esperar, e fez deste simples episódio uma prova irrefutável do "pluralismo" que floresce na maioria que nos governa. Manuel Alegre? Na SIC-Notícias? Com direito a horário nobre? E, ainda por cima, a exigir a demissão do ministro da Saúde? Como se comprova pelo esfusiante arrazoado do ministro, é nestes pequenos nadas, nestes inesperados episódios que o "pluralismo" socialista se revela em todo o seu esplendor. O dr. Menezes, que preside, agora, com mestria à desagregação do PSD, devia seguir estes exemplos de democracia e de liberdade interna, em vez de andar, por aí, com o dr. Santana Lopes, a insultar os seus opositores, ameaçando-os com as próximas listas de deputados - que, ainda no último congresso, no início do descalabro, iam ser feitas pelas "bases" do partido: esse mito do aparelho que preserva os seus interesses e promove a menoridade dos seus caciques. No PS, como se depreende das declarações do ministro Santos Silva, o "pluralismo" resplandece sempre que uma voz desalinhada irrompe num canal de televisão onde, aproveitando o pequeno espaço que lhe é dado, sacode umas opiniões incómodas, perante a satisfação do Governo e a impassibilidade das sondagens. Como é óbvio, se a "prova" apresentada pelo dr. Santos Silva fosse um facto banal, como é em todas as democracias, o alarido do ministro não só não se justificava como o levava (quem sabe?) a reflectir sobre o rumo do Governo e o papel do PS. É o carácter excepcional da entrevista, a inexistência de espírito crítico num partido que, hoje em dia, se caracteriza pelo conformismo e pela unanimidade cada vez mais forçada que permite a apresentação desta "prova" como sinal de um pluralismo - que se existisse não se deixava obviamente apresentar como prova! Só o autismo de um ministro, que vive na sombra do eng. Sócrates, é capaz de transformar uma crítica interna num mero trunfo de propaganda. Porque parte de um princípio contrário a qualquer tipo de pluralismo: ou seja, que toda a crítica é inócua a partir do momento em que se considera que a única alternativa à política do eng. Sócrates é o próprio eng. Sócrates, independentemente do fracasso da sua política e das suas promessas por cumprir. Afastada, durante seis meses, da política nacional, por motivos pessoais, seguindo à distância as inúmeras celebrações do Governo, os vários "escândalos" nacionais, as desgraças da oposição, os novos fundamentalismos que, por aí pululam, as previsões económicas para 2008 e o invariável falhanço das reformas anunciadas, fui vendo como o país se fazia e refazia, diariamente, ao sabor das últimas notícias, perante a fragilidade de uma opinião pública que se indigna com facilidade e se esquece com rapidez do que é, de facto, essencial. Ao fim de pouco tempo, tudo se mistura e se esvai numa amálgama de factos nivelados pela falta de memória, donde nada sobressai: da eleição do dr. Menezes que, num momento alto de patriotismo, garantiu que só correria, em território nacional, nomeadamente na Avenida dos Aliados e na Avenida da Liberdade, ao optimismo do Governo perante o quadro desanimador da economia, da miséria das reformas ao aumento do desemprego, da Ota e do que lá se gastou inutilmente à nova polícia dos costumes, da intromissão do Estado na vida privada dos cidadãos aos negócios obscuros que, mais uma vez, serão investigados "doa a quem doer", da contínua degradação da Justiça à farsa que se vive na Educação, do referendo ao Tratado de Lisboa que não se vai fazer à amena cavaqueira sobre as promessas dos políticos que ficam por cumprir, da agonia pública do Banco Comercial Português (BCP) à sua transformação numa espécie de delegação governamental, da reacção do PSD que, em nome de uma justa repartição de lugares, exigiu que um militante seu ficasse à frente da caixa Geral de Depósitos (CGD) à vontade expressa do dr. Armando Vara querer ir para o BCP, permanecendo, ao mesmo tempo, nos quadros da CGD, ficou apenas uma impressão difusa, subjugada pelo desejo permanente de novidade e pela forma esmagadora como ela nos cai em cima. De um dia para o outro, a fragilidade do capitalismo português, a dependência dos grupos económicos do Estado, a promiscuidade entre o sector público e o sector privado e todos os grandes negócios que ficam por explicar são substituídos por umas intrigas no PSD e pelo rapto da Marilu. »
*Por Constança Cunha e Sá, editado na edição do Público de 24.1.07