2.10.09

PESSOA ELE MESMO


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!


Fernando Pessoa

1 comentário:

Anónimo disse...

"...a tua alegre inconsciência e a consciência disso" serviu-me há muitos anos para pensar e escrever umas coisas que hoje pouco interessam. Os seus "momentos musicais" e agora tambem poéticos sâo,desculpe a franqueza, o que de melhor tem o seu blogue. Mas,acrescento,e não para o envaidecer,do melhor que aparece na blogosfera que conheço. Prossiga.