19.10.09

OS PEQUENOS


Depois do "ciclo eleitoral", do seu resultado e dos deploráveis espectáculos do "diálogo-quem-quer-casar-com-a-carochinha" e da abertura circense do parlamento, César da Neves sintetiza brilhantemente a coisa e o resto da coisa. Vai para catorze anos que não saímos disto.


«Terminado o longo período eleitoral, salta à vista a má qualidade do discurso político. Perante a gravidade da situação e desânimo reinante, o tom geral das intervenções foi claramente incapaz. Não houve rasgo, chama. O povo está tão desiludido como estava. Qual o motivo? Que esteve ausente do esforço tribunício dos últimos meses? Não faltaram planos, propostas, projectos. Nos milhares de páginas de programas e centenas de horas de oratória é forçoso achar ideias, algumas até boas. Também não faltou sonho. Há muita emoção, paixão, fervor na vida pública nacional. Alguns são frustrados e até pesadelos, mas existem sonhos na nossa política partidária. O que desapareceu da intervenção dos nossos responsáveis é algo mais denso e determinante: visão estratégica, orientação de fundo, linha de rumo. Não se ouviu um propósito inspirador e empolgante que motivasse os portugueses. Ninguém diz o que quer e para onde vamos. O que tinham Sá Carneiro, Mário Soares e Cavaco Silva, e até Spínola, Vasco Gonçalves e Melo Antunes, desapareceu desde Guterres. Temos meios e vontade mas está omisso o destino. Em 1852, Victor Hugo escreveu um livrinho, Napoléon le Petit, comparando o imperador da época ao grande antecessor. Hoje também temos políticos pequeninos. Há 15 anos que não existe um verdadeiro objectivo nacional, uma finalidade grande que arrebate e mobilize o País. Vivemos de fins intermédios, interesses particulares, promessas próximas. Os sucessos e debates recentes centram-se em oferecer portáteis ou brincar aos comboios rápidos. A vida política não sobe acima das adições orçamentais. Como se caiu nesta triste apatia? A resposta é simples porque existe um ingrediente indispensável ao destino, a fé. Os nossos responsáveis perderam a fé que tinham nos primeiros anos da democracia. Claro que há muita fé na vida privada, mas há década e meia que anda quase ausente da vida pública. Isto não se aplica à fé religiosa. Essa há muito que não tem presença na nossa política. Por acordo tácito geral, a vida democrática é formalmente alheia aos temas espirituais. Em sistemas como o americano, italiano e tantos outros o assunto é comum. Até em França a cartada é jogada. Mas Portugal, por feridas antigas, não se atreve a falar disso. O que estiolou com os tempos foi a fé ideológica, patriótica. Os anos revolucionários incendiaram-se de fervor. Acabado o tumulto, o ideal de um Portugal europeu e progressivo guiou-nos nos tempos difíceis da adesão à Comunidade. Normalizada a situação, na estabilidade do euro e fragor da globalização, abandonaram--se os grandes propósitos. A vida pública centrou-se em finalidades imediatas, grupos instalados, razões operacionais abandonando os grandes desígnios dos tempos heróicos. O que nos ocupa e preocupa é emprego, conforto, segurança. Até temas globais, como regionalização e aborto, são conduzidos por preocupações tácticas. Os dois grandes partidos são pragmáticos, abrangentes. Gerindo conveniências, não se podem dar ao luxo de ideologias ou destinos ambiciosos. O CDS já teve várias fés e não se sabe bem a que tem hoje. O BE esconde a falta de fé criticando a infidelidade dos outros. Apenas o PCP e os pequenos ainda acreditam em algo, que mais ninguém leva a sério. O resultado é a pasmaceira agnóstica e interesseira. Não admira o pessimismo dominante. A solução disto é fácil, porque o sentido da vida está na vida, não na política. O erro foi pedirmos aos partidos que nos fornecessem a fé. O destino não está em programas, instituições, sistemas, mas na família, trabalho, comunidade. O País salva-se se deixar de procurar nos líderes aquilo que só encontra em si mesmo. Não é Portugal que se condena com a desorientação, apenas os dirigentes. Como em situações antigas de desnorte, cabe à sociedade e à economia encontrar na sua actividade quotidiana a força e as razões que faltam às elites. A fé privada tem de superar a vacuidade pública. Se acreditarmos num destino maior, Portugal avança. Depois os pequenos políticos correm atrás. »


4 comentários:

Anónimo disse...

Em linha com o post mais abaixo, obsessões, e com um recorrente e pertinente chamada de atençao do João Gonçalves, chama-se a atenção para a seguinte prédica da "jornalista": http://jugular.blogs.sapo.pt/1235129.html

Ilustrativa do tempo que vivemos, da força de discursos jacobinos estritamente sustentados na liderança da seita, que apesar da mediocridade dessa gente não deixa, a história ensina umas coisas, de justificar a frase de uma série de posts que já aqui foi publicada: «tenham medo, tenham muito medo».
Repare-se em particular na terminologia, dirigida aos apaniguados, no referido post: «nós o povo...» (se não fosse sério dava vontade de rir, mas é a sério e a líder da seita tem «poder», independentemente da pobreza intelectual e da evidência dos seus "nobres motivos", como em regra aqueles que julgam como «nós o povo»).

João Paulo Mota

Anónimo disse...

É pá ...
Há gente em cima da jogada!
E o "líder", mesmo desfalcado, lá manda o seu recadinho, pela sua .../f.
Em "off", pela porta do cavalo, mas para avisar a malta que está "on". E que nos lê. Lê, lê ...
Estamos todos "on" Doña .../f.!
E não há medo, nem medos!
Medo de quê? De si? Dos outros?
Já passei por tudo, por todos e aturei de tudo e todos. Até o "copinho de água" punha em cima da telefonia. Sem ser preciso.
Qual poder, João Paulo?
Volta Salazar! Estás perdoado.
Pessoalmente, nunca lhe tive que pedir desculpa. A mim, nunca me fez mal, nem atrasou a vida.
Estes, sim. Atrasam a vida e fazem mal a tantos ...
Desculpem lá, ser tão modesto nas palavras.
O pior fica para mim ... E nem imaginam!
Poderia pôr o nome, por ora, vai anónimo.

Nuno Castelo-Branco disse...

O victor Hugo foi injusto com o Napoleão III. De facto, foi um bom homem de estado, introduziu reformas importantíssimas, modernizou o país na indústria, no comércio, na educação. Incomparavelmente mais benigno que o dito Napoleão, "o Grande".

Anónimo disse...

Extraordinária análise que espelha bem e, com toda a clareza, os males da nossa sociedade, as omissões dos nossos políticos,olhando apenas para os seus interesses pessoais ou de grupos, e por arrasto, a intranquilidade das pessoas, no seu dia-a-dia, nos seus empregos, aqueles que ainda os têm, enfim, um retrato fiel do estado do nosso país.
Cps

S. Guimarães