31.3.05

O PATHOS DA CULTURA

Não foi só nas chamadas "áreas nobres" da governação que alguns hesitaram e, por fim, recusaram, assumir determinadas funções. Também na Cultura houve quem não abdicasse do seu "conforto" e da sua rotina por um projecto mais ousado e politicamente mais sustentado para o sector. É o que dá "fazer contas" ou, melhor, ter medo de as de ter de fazer. É, como dizia o outro, a vida. Lembrei-me disto quando li este texto de Eduardo Prado Coelho (anda a aparecer muito por aqui talvez porque voltou a estar em grande forma), "Uma situação difícil". Depois não se queixem.

UM LIVRO

Hoje, 31 de Março, às 19 horas, na Biblioteca Municipal do Palácio Galveias, no Campo Pequeno, em Lisboa, é lançado o segundo volume de "Tradição e Revolução", de José Adelino Maltez, abrangendo o período que vai de 1910 a 2005. A apresentação do livro será feita por Marcelo Rebelo de Sousa (informação via Paulo Gorjão).

30.3.05

RECENSEAR SARTRE



Para quem não saiba, a França - e algum "mundo" intelectualmente vivo e sério - prepara-se para comemorar os cem anos de Jean-Paul Sartre. Os franceses não costumam brincar nestas coisas e levam a sério a memória dos seus maiores. Foi assim, por exemplo, com Malraux em 1996. Havia Malraux por todo o lado, nas ruas, nas livrarias e no metro de Paris nesse Novembro frio. Chirac colocou-o no Panteão. Em Junho chega a vez de Sartre. Eu embirro profundamente com a deriva estalinista do homem e com o seu esquerdismo tantas vezes insuportável. A sua figura também não era propriamente do mais agradável à vista. Nada disto porém me importa perante a grandeza da sua obra e perante o deslumbramento em que consiste a sua escrita. De longe, prefiro a sua ensaística - filosófica e literário-filosófica ao resto - a que junto esse livrinho extraordinário que é Les Mots. Estou curioso para ver o que é que os nossos jovens escribas "liberais" e outra intectualidade "orgânica" da direita e da esquerda irão escrever acerca de Sartre. Para já, Eduardo Prado Coelho, no Público, dedicou dois "fios do horizonte" a Sartre. Com a amigável vénia, e para que se não percam na voragem virtual do site do jornal, aqui os deixo, antecipando de alguma forma o mais que seguramente me apetecerá escrever ou colocar no blogue sobre Sartre até Junho.


O intelectual dos intelectuais (1)


por Eduardo Prado Coelho


Estava na praia, em São Martinho do Porto. Tinha 16 ou 17 anos. Todas as manhãs chegava ao café por volta das nove e meia, com jornais e um livro. Alguns desses livros eram volumosos. Por exemplo, O Ser e o Nada e, mais tarde, a Crítica da Razão Dialéctica, ambos de Sartre. Antes de ir para praia por volta do meio-dia, lia páginas sucessivas, procurando compreender, o que nem sempre era fácil.Mais tarde, a Europa-América convidou-me a traduzir um dos livros de ensaios, Situações. O que fiz com o prazer de descobrir uma escrita vertiginosa, um sentido da estética da linguagem, embora Sartre visasse mais a transmissão da mensagem do que o prazer do significante. Mas Situações vinha-me explicar que um escritor está sempre no meio da história, confrontado com o conflito essencial da sua época: para ele, a oposição entre socialismo (que em dada altura desastradamente identificou com a URSS) e capitalismo (fundamentalmente, os EUA). Sartre escreve admiravelmente, mas não é com a escrita que se preocupa. Um famoso debate perguntava: "Que é a literatura?" E acima de tudo nós íamos aqui encontrar uma dessas noções que tiveram a sua época: o compromisso - ou, se preferirem, l"engagement. Mais do que o homem da liberdade, o homem em que o para-si fazia sentido libertando-se do em-si, Sartre foi para nós, envolvidos na ideia de esquerda, o homem do compromisso. E nesse sentido foi o intelectual - ou melhor, o intelectual dos intelectuais. O modo siderante como argumentava (e as suas polémicas com Camus, Merleau-Ponty, Aron, ficaram famosas) parecia não ter equivalente. Os livros de filosofia que escrevia pareciam totalizar a cultura e história do seu tempo. A política era nele uma paixão permanente. Nas manhãs de praia, ouvindo o ruído das ondas, tinha a sensação de que ele pensara tudo e de que ele dera um sentido a tudo.Depois, vieram os tempos das estruturas, isto é, aqueles em que o sujeito não imaginava os possíveis da história, mas aparecia como um efeito de superfície de um processo obscuro em que as marcas do sentido iam operando como se fossem máquinas. Não se falava em sujeitos que desejam, mas em máquinas desejantes. Até que um dia Derrida escreveu sobre Sartre em Les Temps Modernes. E antes Deleuze tinha escrito sobre ele. Michel Foucault tinha declarado numa entrevista de 66 a Madeleine Chapsal: "Fizemos a experiência da geração de Sartre como sendo uma geração certamente corajosa e generosa, que tinha a paixão da vida, da política, da existência. Mas para nós descobrimos outra coisa, uma outra paixão: a paixão do conceito e do que eu chamaria "o sistema"."O que é interessante, e resume a segunda metade do século XX, é que Sartre e Deleuze, e ainda Foucault e por fim Derrida pareçam hoje encontrar-se na figura do intelectual. Mas Sartre foi certamente o intelectual dos intelectuais.


Sartre (2)


Gilles Deleuze escreveu nos seus "Dialogues" com Claire Parnet: "Na Libertação permanecíamos bizarramente apanhados na história da filosofia. Simplesmente entrava-se através de Hegel, de Husserl e de Heidegger. Precipitávamo-nos como cães enraivecidos numa escolástica pior do que a da Idade Média. Felizmente havia Sartre. Sartre era o nosso Exterior, era verdadeiramente a corrente de ar do pátio (e era pouco importante saber precisamente quais eram as suas relações com Heidegger do ponto de vista de uma história por vir). Entre todas as possibilidades da Sorbonne, era ele a combinação única que nos dava a força para suportar a nova ordem restabelecida. E Sartre nunca deixou de ser, não um modelo, um método ou um exemplo, mas um pouco de ar puro, uma corrente de ar que o acompanhava quando vinha do Flore, um intelectual que mudou singularmente a situação do intelectual. É estúpido perguntarmos se Sartre é o princípio ou o fim de alguma coisa. Como todas as coisas e pessoas criadoras, ele está no meio, cresce pelo meio."Aqueles que viram o filme que passou no Instituto Franco-Português e também, numa versão diferente, na Fundação Calouste Gulbenkian (com salas à cunha, o que prova que Sartre não está esquecido) terão visto sobretudo quartos despojados, como se Sartre fosse um monge com a Plêiade ao fundo. Quase não havia livros. Uma secretária simples, reduzida a uma tábua de madeira, um divã austero, uma forma reduzida e displicente de vestir. Sartre vai à rua e procura comprar jornais, seja qual for. Percebe-se que é um fanático da informação - e isto num tempo em que apenas havia rádio, e se aguardava por esse magia insólita que é a televisão. Estava longe de ser bonito ou sedutor. E contudo ele foi um desses homens rodeados de mulheres, a começar pela "sartreuse", como se poderia chamar marialvamente a Simone de Beauvoir. Esta tinha um pensamento duro, e uma escrita rude e sem recortes. Mas ela e Sartre constituíram um desses casais míticos do século XX. Cada um tinha amantes, e, no caso de Simone, havia homens e mulheres. É famoso o seu caso com o romancista americano Nelson Algren (com quem amainou o seu feminismo e teve mesmo atitudes de inesperada condescendência). Às vezes Sartre e Simone trocavam amantes. Mas tiveram um princípio que suscitou o espanto e admiração de várias gerações: defenderam uma relação fundada numa transparência absoluta. Porque não há em Sartre espaço para o inconsciente. Num dos seus textos, com dimensão autobiográfica, Sartre escreveu: "As nossas relações pareciam superiores em valor, em carácter essencial, a todas as que eu tinha tido com outros homens e outras mulheres, na mesma época. É claro que era machista, mas, quando encontrei Simone de Beauvoir, tive a impressão de ter as melhores relações que se pode ter com alguém. As relações mais completas. Não falo da vida sexual e da vida íntima. Falo também da conversa ou da discussão a propósito de uma decisão importante da vida."

CARRILHO

O PS anunciou os seus candidatos às principais câmaras. Não sei se Assis é uma boa escolha para o Porto. Não sou de lá. Para a minha cidade, no entanto, foi indicado o candidato certo, Manuel Maria Carrilho. Num artigo da semana passada disse sucintamente o que pensava sobre o assunto e sobre o ainda não certo candidato. Retiro a parte "datada" e recordo o que ali escrevi:


"(...) Carrilho não é um político sensaborão, "fácil", acomodado a rotinas partidárias ou conformado com as suas ortodoxias e rituais. Tem a seu crédito uma acção política minimamente estruturada num sector quase sempre politicamente adormecido - a Cultura - e legitima a sua ambição num propósito igualmente mobilizador para a cidade de Lisboa. A sua altiva e "rara" palavra, embora límpida e objectiva, dificilmente colhe no terreno partidário básico, pouco dado a sofisticações, e tantas vezes imerso num autismo contentinho e falsamente solidário. E tem sobre muita gente a vantagem de pensar, o que, para a "aparelhistica" mais primária, raramente serve. Não será, por isso, "popular". Eu, contudo, julgo que que ele poderia protagonizar uma candidatura inovadora, com apoios diversificados, para fazer de Lisboa um espaço vivível, inteligente e cosmopolita. Para já, e à distância destes seis meses, ele é seguramente o melhor candidato. Pelo menos, é o meu."


Ignoro - e porventura ignora ainda o PS - se esta candidatura se apresentará "solitária" ou "solidária", com entidades partidárias ou outras à sua "esquerda". Cabe a Carrilho sozinho, porém, apresentar a sua "plataforma" e o seu programa. Quem quiser que o siga.

AVANTE...

...camarada! Força!...

LER OS OUTROS

Como eu sei que o JPP também gosta do Durrell, esta sua "forma particular deserto" diz do mesmo por outras palavras.

UMA FORMA PARTICULAR DE DESERTO cresce nestes dias. A normalidade? O fim dos problemas? O governo finalmente ideal? A graça do estado de graça? Os noticiários televisivos dedicam-se às doenças, entre o alarmismo e o caso humano. Uma lontra nasce em directo. Volta-se ao circo, agora a sério, pelo pitoresco. Os ecologistas assumem o primeiro plano dos grandes problemas nacionais: os animais do circo são maltratados? Três golfinhos apareceram mortos numa praia. Crime ou petróleo? Lá para o Norte fazem-se os folares, lá para o Sul a chuva acabou com a seca. O futebol continua sempre com o mesmo interesse, parece que também normalizado.Pobres daqueles que duvidam de tanta fartura. Deviam era estar contentes e fazer férias longe, esquecer o fim do Pacto de Estabilidade, esquecer a "tenebrosa" directiva Bolkestein, esquecer as estranhas manobras à volta da Alta Autoridade para a Comunicação Social acerca da compra do grupo Lusomundo, entregar o país ao humor e às “celebridades”. O reino do bem voltou. Mostrem-se agradecidos e dediquem-se às lontras bebés.

O REINO FLUTUANTE

Apeteceu-me este título velhinho do Eduardo Prado Coelho, lembrando-me que era aí, num hipotético e virtual "reino flutuante", que eu queria estar. Preferencialmente rodeado das personagens-fracasso de Lawrence Durrell construídas no seu Quarteto de Alexandria. Não me comovem excessivamente os bem sucedidos e os contentinhos da vida. Desprezo a superficialidade banana do "homem médio" e a alegria pateta dos que esperam ardentemente pela sexta-feira para um jantar frívolo entre "casais". Do que eu realmente gosto é da nobreza do fracasso e da erosão do falhanço. No último livro do Quarteto, Clea, a dada altura Justine, que tinha desaparecido logo no primeiro livro, diz qualquer coisa como isto: "vontade de engolir o mundo". É isso que eu sinto. A maior literatura não é feliz e, como diria Pessoa, tem a tremenda consciência disso. Não perceber isto - é a vida que verdadeiramente imita a arte e não o contrário - é andar por cá a ver passar os comboios. Talvez por isso Camus tivesse escrito que o suicídio era a única questão filosófica. Terminado o circo da nossa vida pública, tendemos a voltar-nos para o espelho. Eu não gosto minimamente do que vejo. Tenta e fracassa. Tenta outra vez e fracassa melhor, mandava o Beckett. Eu concordo com ele. Tento e fracasso. Tento outra vez e fracasso sempre melhor.

27.3.05

EM PAZ

Deve andar por perto o congresso do PSD. As coisas chegaram a um ponto tal que, apenas três anos volvidos sobre o poder "absoluto" de Barroso, o Pombal - parece que é aí que tem lugar o conclave - recebe um ex-fulgurante Santana Lopes e duas figuras menores da nomenclatura partidária para disputar a liderança. Aquele que ainda há um ano era o partido do poder, chega ao Pombal envergonhado e reduzido praticamente a escombros às mãos de uma combinação entre dois "amigos de Peniche", Santana e Barroso. É difícil ter sido tudo tão mau em tão pouco tempo. Agora, na tentativa infantil de "dar uma volta a isto", os "intelectuais orgânicos" da direita querem "refundá-la". Já apareceu o inevitável mito Borges, acompanhado por uma rapaziada comprometida com todos os passados verosímeis e inverosímeis do PPD/PSD. Os "comentadores" tecnocratas e os tais intelectuais orgânicos conseguem ver em Borges o que ele manifestamente não tem: densidade política. E empurram o vazio que ele representa para a frente como se dali viesse, agora ou daqui a uns anitos, a salvação. O que se salva é que aparentemente Borges tem a noção daquilo que vale e deixa a coisa para "profissionais", leia-se Marques Mendes. Ele, modesto, limita-se a "marcar posição" com o seu pequeno rebanho de "zés-sempre-em-pé". No meio desta trapalhada "refundadora", os inimigos de estimação de Cavaco Silva - a tal "intelectualidade orgânica" - persistem em arrastá-lo para esta lama. Volta não volta, enchem a boca com o seu nome, ora na defesa hipócrita da sua candidatura presidencial, ora contra ela. Se alguém terá de se arrastar atrás da candidatura de Cavaco é esta indigência política e nunca o contrário. Cavaco já voa por cima desta miséria há muito tempo e jamais se comprometerá com ela. Não esperem de Cavaco qualquer gesto "federador" de desgraças alheias. Podem esperar sentados os que pensam que a risível "refundação" da direita virá do palácio de Belém. Cavaco terá legitimamente mais que fazer e suspeito que não lhe desagradará a parelha com Sócrates. Borges e tutti quanti podem continuar entretidos com os jogos florais que animarão o PPD/PSD nos próximos tempos. O PP nem sequer entra nesses jogos, desfeito no incómodo de partido unipessoal. Em suma, Sócrates, para nosso bem, pode governar em paz.

26.3.05

SE CONDUZIR, NÃO CONDUZA

Com tantas restrições, com tantas proibições e com a exigência de ornamentos coloridos para exibir no automóvel, será que o novo Código da Estrada nos deixa conduzir ?

ASSIM NA PAZ COMO NA GUERRA

O texto que se segue foi publicado por Mario Vargas Llosa no "Diario Las Americas" a 6 de Março passado, em homenagem ao amigo e escritor entretanto desaparecido, Guillermo Cabrera Infante. Apareceu ontem traduzido no suplemento DNA do Diário de Notícias.

Así en la paz como en la guerra

por Mario Vargas Llosa

El día que Guillermo Cabrera Infante murió yo estaba en el sur de Chile, afiebrado, aturdido por los antibióticos, y la bronquitis me había dejado afónico de manera que ni siquiera pude hacer una declaración a la prensa en homenaje a su memoria. Pero esa noche las imágenes de más de cuarenta años de amistad me mantuvieron en un duermevela angustiado. Recordaba cuando lo conocí, en París, todavía un diplomático al servicio de la Revolución, traspasado de dudas y de conflictos interiores; la broma que me gastó, cuando le dimos el Premio Biblioteca Breve a Tres Tristes Tigres (que en manuscrito se llamaba Vista del amanecer desde el trópico) haciéndose pasar por ¨un tal Onelio Jorge Cardoso¨ que me llamó a la Radio-Televisión Francesa para hablarme pestes de Cabrera Infante, y la increíble casualidad de que al exiliarse en esa ciudad de tantos millones de habitantes que es Londres viniera a vivir en un sótano que estaba apenas a un centenar de metros de mi casa, en Earl´s Court. Pasó unos años muy difíciles entonces, convertido en un apestado integral, al que, al mismo tiempo que la España franquista le negaba la residencia por sus antiguas vinculaciones con el régimen de Fidel Castro, toda la progresía hispana y latinoamericana volvía la espalda o escarnecía. La satanización de su persona y de su obra fue tan dura que estuvo a punto de perder el equilibrio mental. Lo salvaron la literatura y Miriam Gómez, esa extraordinaria mujer sin la cual Guillermo no hubiera resistido las cuatro décadas de exilio, el acoso y las infamias de sus colegas, ni hubiera vuelto a escribir una línea desde que terminó Tres Tristes Tigres, su obra maestra. Nadie lo hubiera dicho en aquellos años sesenta, los del swinging London, donde él parecía vivir a sus anchas, moviéndose como pez en el agua en ese mundo de locuras psicodélicas, música pop, brumas de marihuana y ácido lisérgico, happenings, viajes artificiales y cine experimental, que él documentaba en crónicas espléndidas, chisporroteantes de humor, imaginación y retruécanos. Era una de las venas de su personalidad literaria, la joyciana, la del juego y la prestidigitación lingüística, que en los años siguientes se exacerbaría hasta extremos a veces delirantes. Una vena que ocultó y acabó por borrar la otra, la del escritor realista y comprometido de su primer libro, la colección de cuentos de Así en la paz como en la guerra, que yo leí con admiración que mi memoria conserva intacta, por el poder de síntesis y la precisión matemática del estilo, el aliento entre heroico y trágico que transpiraban las historias y las viñetas que las intercalaban, un mundo que recordaba al mejor Hemingway, de milicianos austeros e idealistas románticos, de una gesta popular todavía no envilecida por la ideología ni el poder. Por razones obvias, Cabrera Infante prefirió olvidar estos relatos de su primera época, que ahora, sin duda, se reincorporarán de todo derecho al conjunto de una obra, la que, algo que ignoran sus más jóvenes admiradores, consta también de una rica vertiente realista y comprometida. Al mismo tiempo que era el cronista incomparable del Londres de los Beattles, Cabrera Infante recreaba la Habana prerrevolucionaria, la de los casinos, la música tropical, la alegría, la miseria, los millonarios y los gángsters y una desalada sensualidad, con tanta nostalgia, fantasía y tan fuerte impronta personal, que, más que recrearla, terminó por inventar una ciudad. Esa Habana es ahora tan suya como la Dublín de Joyce, el Trieste de Svevo, la Comala de Rulfo o el Macondo de García Márquez. Esa ciudad que bañan los cálidos rumores del mar y la estruendosa voz del personaje de Ella cantaba boleros, donde realiza su desenfrenado aprendizaje sexual el protagonista de La Habana para un infante difunto y donde transcurren los hilarantes episodios de Vista del amanecer desde el trópico debe más a la invención, a la melancolía, a la literatura y a la destreza narrativa de Cabrera Infante que a la realidad histórica, aunque, como ocurre siempre con las grandes creaciones literarias, esa ciudad hecha de sueño y de palabras terminará por imponerse a las futuras generaciones de lectores como la única que existió. Esa Habana que él fabricó con su talento, en sus cuentos, novelas y crónicas nadie podrá quitársela ya a Cabrera Infante, como le quitaron la otra, la real, un despojo al que nunca se resignó, que abrió en su vida una herida que nunca dejó de supurar, una ausencia que a la vez que alimentaba su vocación y le sugería imágenes, personajes, diatribas, evocaciones, recuerdos y ensoñaciones a menudo deslumbrantes, lo fue matando a pocos de nostalgia, de amargura y de frustración a lo largo de todo su exilio. Decir que amaba entrañable, enfermizamente a su país, a la ciudad en la que no había nacido pero que adoptó, no sería suficiente, pues ese verbo, usado así, inevitablemente se malea y sugiere las cursilerías patrioteras del nacionalismo. Era algo mucho más visceral y personal que el patriotismo, era una temperatura, la densidad del aire, ciertos colores del cielo y, sobre todo, una música verbal, el calor de unos cuerpos y el entramado laberíntico de anécdotas, personajes, bromas y tragedias que habían hecho de Guillermo lo que era y lo que en ningún caso aceptó dejar de ser, aquello de lo que el exilio lo privó, dejándolo atrozmente mutilado. Él, que sabía idiomas, que podía escribir en inglés con tanta gracia como en español -lo dijeron los críticos anglosajones al aparecer Holy Smoke- no lo hubiera admitido jamás, y, más bien, en las conversaciones y las entrevistas se jactaba de ser el ciudadano del mundo que en apariencia era. Pero bastaba oírlo, o leer todo lo que escribió, para advertir que, por debajo del cosmopolita, del polígrafo bilingüe, del londinense de los mil juegos de palabras, se agazapaba un exiliado inconforme con su forzado desarraigo, un ser herido al que desesperaba cada día más la sensación de que nunca recuperaría la tierra que perdió. Los últimos años fueron los peores, por la salud deteriorada, las operaciones, las estancias en los hospitales, en Londres, una ciudad que multiplica la soledad más que ninguna otra en el mundo, y la tortura mental que debió ser para Guillermo saber que se moría dejando a Miriam sola y a Cuba todavía en poder de Fidel Castro. La última vez que lo ví, en su piso de Gloucester Road, atestado de libros y videos de películas, me mostró, riéndose, un montaje hecho por él con las últimas apariciones del dictador cubano en la televisión, en las que eran visibles los síntomas de envejecimiento y decadencia. Bromeaba que, a juzgar por las imágenes, aquella pesadilla se iba por fin acabando, pero debajo de esas bromas había algo muy serio, una ilusión, una esperanza que probablemente debió acompañarlo hasta sus últimos instantes de lucidez. Cuando Cuba sea por fin libre los cubanos deberán siempre recordar que nadie fue más consecuente, constante y radical en su rechazo de la tiranía que asola la isla hace 46 años, como Cabrera Infante. Nunca hizo la menor concesión, nunca optó por callar, siempre que tuvo ocasión se jugó entero para hacer saber al mundo la realidad totalitaria, el envilecimiento de las ideas y de los valores y la mentira sustancial sobre la que se sostiene el régimen de Fidel Castro, y para denunciar los sufrimientos, los atropellos y los abusos de que es víctima el pueblo cubano. Eso, ahora, luego de la caída del muro de Berlín y el naufragio universal del comunismo, es muy fácil, se ha convertido casi en un cliché en boca de politicastros. Pero durante muchos años, atreverse a sostenerlo era ir contra la corriente y condenarse a la cuarentena literaria e intelectual, porque en ningún otro ámbito -más aún que en el político- la falsificación de la realidad cubana y la mitificación tramposa de lo que ocurría en Cuba fue tan poderosa como entre los escritores y supuestos pensadores. Dicho esto, conviene precisar que Guillermo Cabrera Infante no fue un político, ni siquiera un intelectual interesado en el debate de ideas sobre asuntos sociales. Contrariamente a una efigie que han levantado de él sus pronunciamientos, polémicas, condenas y diatribas contra la dictadura, Cabrera Infante fue un escritor para el que la literatura y el cine ocupaban gran parte de la vida, y acaso la hubieran colmado totalmente si los dioses no hubieran condenado a su país a albergar la más longeva dictadura de la historia de América Latina. Su rechazo del castrismo fue moral antes que político y por eso nunca quiso identificarse con ninguna de las corrientes o tendencias de la oposición a la dictadura cubana. Hay que recordar que, muchas veces, criticó con severidad a distintas formaciones de exiliados por su pequeñez de miras, sus disputas cainitas, y por perder el tiempo en operaciones de política de campanario, descuidando el objetivo primordial. Las críticas de cine son una parte inseparable de la literatura de creación de Cabrera Infante. Llamarlas ¨críticas¨ es ya desnaturalizarlas, porque ese membrete da la idea de unos textos cuya finalidad es analizar e interpretar unas obras a fin de hacerlas más accesibles al espectador. En realidad, todas las críticas de cine de Guillermo, pero sobre todo las reunidas en esa otra maravilla de libro que es Un oficio del siglo veinte, son creaciones literarias, verdaderas ficciones, elaboradas utilizando la materia prima de unas películas que, al pasar a esos textos, se vuelven narraciones literarias, relatos tan sorprendentes, amenos y brillantes por su humor, sus juegos retóricos y sus hallazgos, como los cuentos y novelas que escribió. Como Manuel Puig, otro escritor que hizo literatura con el cine, Cabrera Infante se servía de las imágenes de las películas como otros escritores se sirven de sus recuerdos familiares o de los hechos históricos para construir una realidad que era autosuficiente, que existía y persuadía a los lectores de su verdad en función de sí misma. Era fascinante oírlo hablar de las películas, que conocía con una minucia de detalles asombrosa, evocar diálogos, recordar imágenes, oírlo contar anécdotas de los actores, en sus roles profesionales o en sus vidas privadas, y comprobar que en esas expansiones se zambullía de veras en la ilusión en cuerpo y alma, como lo hacen los niños. Había sido un periodista excepcional y algo de ese oficio de improvisados y repentinos le quedó siempre, pues le bastaban tres o cuatro frases para poner a sus oyentes en situación y capturar su atención y deleitarlos con una salida inesperada o una ocurrencia genial. Aunque, debido a los golpes y a las traiciones, se había vuelto algo desconfiado y receloso, una vez vencida su inicial resistencia, podía ser la persona más cálida y afectuosa, que abría su casa y su corazón a todo el mundo, secundado en esto infaliblemente por Miriam, que se las arregló siempre, aun en las épocas más difíciles y ófricas de Londres, para mantener en ese rincón de Kensington el enclave tropical donde uno, nada más entrar, se sentía en casa, aceptado, querido y mimado por esa pareja excepcional. Londres, y en especial algunos lugares como la ¨Bombay Brasserie¨, ya no será lo mismo para mí sin Guillermo Cabrera Infante, ni para nadie que lo tratara, visitara y quedara prendado de su sabrosa plática, de sus desconcertantes salidas, de su generosa humanidad. Queda su obra, por supuesto, que está allí para durar, y seguir ganando lectores y divertir, hechizar, y también enojar, a mucha gente, una obra que expresa como pocas lo que fueron los años del boom, una antigualla ya en estos tiempos tan distintos a los de entonces, en los que Europa y la propia América Latina descubrían que el continente de los dictadores y los mambos era capaz también de producir literatura, y los escritores de por allá venían a Europa a conocerse entre ellos y a asumir su condición de escritores latinoamericanos, unos años de ilusiones, amistad y también fuertes dosis de irrealidad, que no durarían mucho. Pero mientras duraron enriquecieron la vida de todos nosotros. Adiós, vecino.


Guillermo Cabrera Infante (1929-2005)

"OS PANELEIROS "HÁDEM" MORRER TODOS"

Há sítios e cabeças onde o "choque tecnológico" nunca há-de chegar.

UMA BOA NOTÍCIA

... se se verificar: Maria José Morgado à frente da Inspecção Geral da Administração Interna.

LER OS OUTROS

1. No Mar Salgado, "A vantagem de ser burro" : Conta-nos Heródoto ( Livro IV, 129:1-3) que porque os Citas não conheciam burros nem (obviamente) mulas, o acampamento de Dario detinha uma enorme vantagem. Os Citas, atacando montados em cavalos, desesperavam com a recusa destes em continuarem, assustados que ficavam com zurrar dos burros existentes no acampamento dos persas.


2. Aqui é mais "deixar de ler os outros". O País Relativo - não o nosso - mas o blogue, acabou. Aos poucos a boa blogosfera vai-se sumindo. Estes dois anos de "combate" foram demasiado intensos para que se passe de repente para os lugares-comuns e para a banalidade. A "normalidade" convida a olhar mais para a "vida" e menos para a "cidade". Afortunados os que não têm propriamente "uma vida" certinha. Podem -podemos - sempre continuar.

23.3.05

A FONTE

Marcel Duchamp,1917 : podemos ver aqui uma representação simbólica e moderna do Estado, um híbrido de fontanário com mictório.

CHEGA PARA ALGUNS

Aqui é ligeiramente ao contrário mas igualmente "tropical". Se eu não tratar das minhas coisinhas, quem é que trata?

CHEGA PARA TODOS

Segundo o Diário de Notícias, o Governo tutela mais de 500 organismos públicos. Multiplique-se isto por cargos de alta e intermédia direcção dentro dos 500 organismos, "amanhe-se" ou invente-se uma biografia - uma modalidade "tropical" de sucesso garantido - e, depois, é só marcar várias vezes os números certos de telemóvel. Chega para (quase) todos.

LER OS OUTROS

na Grande Loja, "Os limites da vida e da decência".

22.3.05

O SEXO...

... é o consolo de uma pessoa quando lhe falta o amor.

(G.G.Márquez)

PRIORIDADES

Depois do panorama realista traçado ontem pelo ministro das finanças, quer para a consolidação orçamental, quer para o crescimento da economia, está-se mesmo a ver que a realização de um referendo sobre o aborto daqui a três meses é mesmo o que nos está a fazer mais falta, não é?

21.3.05

MELHOR É IMPOSSÍVEL, VERSÃO 2005



MELVIN:
That's not true. Some of us have great stories... pretty stories that take place at lakes with boats and friends and noodle salad. Just not anybody in this car. But lots of people -- that's their story -- good times and noodle salad... and that's what makes it hard. Not that you had it bad but being that pissed that so many had it good.


(diálogo do filme As Good as It Gets (Melhor é Impossível , de James Brooks, 1997, com Jack Nicholson e Helen Hunt)

Detesto o Inverno. Esperei pacientemente por este dia "um" da nova estação. Um desastre. (...) Como hoje é dia de poesia e de primavera, eu tinha pensado em não fugir ao cliché de aqui colocar poema. Porém, em dois ou três parágrafos de Miller redescobri mais poesia do que em estafadas rimas pobres para consumo fácil. Como eu, a vida e os deuses andamos de costas uns para os outros, como o mundo se insinua volátil e violento, como o "outro" já não é o que era e a entrada da primavera ainda menos, ficamos com as palavras de Miller, um escritor a que nunca nos devemos cansar de voltar. Melhor é impossível.

A alegria é como um rio: corre incessantemente. Parece-me ser esta a mensagem que o palhaço procura transmitir-nos: deveríamos participar no fluxo e movimento contínuos, não pararmos para reflectir, comparar, analisar, dominar, mas continuarmos a fluir, sempre e sempre como a música. Tal é o dom da renúncia, que o palhaço realiza simbolicamente. A nós compete-nos torná-lo real.
Em nenhuma época da história da humanidade esteve o mundo tão cheio de sofrimento e de angústia [esta prosa é de 1948, mas podia ser de hoje...]. Contudo, aqui e além, encontramos indivíduos que não estão contaminados, manchados pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos emancipados. Para eles, o mundo não é que nos parece. Vêem-no com outros olhos, dizemos que morreram para o mundo. Vivem, no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um perpétuo hino de alegria.(...) Todas estas abençoadas almas que me fizeram companhia, testemunharam a terna realidade da sua visão. Será nosso, um dia, o seu mundo quotidiano. De facto já é nosso - simplesmente, estamos demasiado empobrecidos para lhe reivindicar a propriedade.


Explicação: Há um ano atrás, precisamente neste mesmo dia primeiro da Primavera, eu escrevi este "post" do qual retirei este excerto. Expurguei-o da contingência daquele domingo - era um domingo, em 2004 - e, ao lê-lo agora, verifico que, se alguma coisa mudou em mim, foi seguramente para pior. Na altura dei-lhe o título do filme ao qual fui buscar a epígrafe. E a citação de Henry Miller continua a fazer todo e um mesmo sentido. Um ano depois, e apesar de continuar fiel ao propósito "I am not my own subject", não posso deixar de me questionar, como Jack Nicholson no filme: "what if this is as good as it gets?"

POSE

O dr. Portas, agora na modesta qualidade de deputado da nação, abandonou o seu ar empertigado de homenzinho de Estado, para voltar a dar lugar ao truculento Paulo Portas doutros tempos. Lançou uma diatribe contra o ministro dos negócios estrangeiros que o deixou manifestamente contentinho. O "tom" a que recorreu representa a sua verdadeira "pose". A outra, a dos últimos três anos, muito lhe deve ter custado a aguentar. Como diria o "nosso" Pacheco Pereira, quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré.

QUEM MANDA

Se eu puder partir do princípio - de que efectivamente parto - que o registo discursivo utilizado pelo primeiro-ministro na apresentação do programa do governo não resulta de um mero exercíco de retórica, então tenho que aplaudir o propósito de "chatear", com substância, alguns interesses corporativos. É bom que, de vez em quando, o poder político democrático mostre quem manda. É para isso que serve a autoridade democrática, uma coisa que nos últimos três anos andou algo abalada. Por exemplo, a redução das férias judiciais para o mês do comum dos mortais é algo que vai nesse sentido.

20.3.05

MEMÓRIA DAS MINHAS PUTAS TRISTES

Que nome extraordinário para um blogue! Um livro onde se medita sobre a vida, o amor, o sexo e a morte com os dois únicos ingredientes que valem realmente a pena, o desprezo e a ironia.
(Gabriel Garcia Márquez, Memória das minhas putas tristes, Publicações Dom Quixote,2005)

OS BONS SENTIMENTOS DA QUARESMA - 4

Mote: "A "Festa" do nosso desapontamento", de Augusto. M.Seabra, no Público. Perante o evidente desgaste e o razoável fracasso da gestão Fraústo da Silva à frente do CCB, estou para ver como é que o "eixo" Ministério da Cultura/São Bento/Belém, agora politicamente em sintonia e sem espaço, tempo ou desculpas para o habitual "pacote" panhonha das "soluções-agradar-a-todos", se desembrulha desta.

OS BONS SENTIMENTOS DA QUARESMA - 3

Ler os outros: Vasco Pulido Valente, no Público, "O regresso do Zorro". Serve de intróito ao congresso de Abril do PSD.

OS BONS SENTIMENTOS DA QUARESMA - 2

Por que é que os nossos agentes policiais continuam a ser abatidos como tordos nas ruas dos arredores de Lisboa? Por que é tão difícil encontrar, em democracia, um patamar de equilíbrio cívico que simultaneamente evite a deriva securitária e o garantismo suicidário? António Costa já tem "T.P.C" para as férias da Páscoa. E esta é, evidentemente, a "sua" polícia.

19.3.05

OS BONS SENTIMENTOS DA QUARESMA - 1

SEMPRE QUE NOS ESQUECEMOS O QUE SÃO OS HOMENS, CAÍMOS NA FACILIDADE DE LHES QUERER BEM


Henri Michaux

18.3.05

LER OS OUTROS

Miguel Sousa Tavares, no Público: "Aos seus lugares".

17.3.05

MEU PAÍS TROPICAL

A aparição da D. Fátima Felgueiras num canal televisivo, em directo, tem, ao contrário do que se possa apressadamente concluir, um efeito profiláctico. De facto, para os que ainda pensavam que viviam num país "europeu", "moderno" e "civilizado", a D. Fátima - e mais umas quantas dezenas de "D. Fátimas" que nunca chegaram a sair de cá - faz-nos ciclicamente o favor de lembrar a condição essencialmente tropical da pátria. Nos interstícios da nossa pacóvia modernidade, movem-se estes entes estranhos, muitos dos quais paridos pela própria democracia, e cujo contributo maior consiste precisamente em diminuir - por actos, palavras e omissões - a qualidade dessa mesma democracia que os pariu. Jamais me esquecerei, num outro contexto igualmente "tropical", das sábias palavras de Vale e Azevedo num debate entre candidatos à presidência do Benfica, já lá vão uns anitos. De vez em quando atirava-lhes com um "temos que ser sérios", "temos que ser sérios". Tinha razão. Esta singela expressão contém toda uma "sabedoria". Tropical, é certo, mas uma esclarecedora sabedoria. Por isso, quando a D. Fátima emerge no ecrã da televisão, a escarnecer a justiça portuguesa e a fazer dos seus concidadãos um bando de passivos imbecis, eu não posso deixar de me lembrar daquela velha canção brasileira: meu país, meu país tropical.

16.3.05

CULTURA E ESTRATÉGIA DE LISBOA

Por Vasco Graça Moura

Na sexta-feira passada, Eurico de Barros publicou no DN um panorama bastante completo e bastante deprimente das questões que esperam a nova ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, e, pode agora acrescentar-se, o seu secretário de Estado, Mário Vieira de Carvalho.Todas essas questões vão bater no mesmo ponto a falta de verba e outra vez a falta de verba. Os cofres da Cultura estão vazios e por isso as estruturas que dependem do ministério têm pouquíssimo espaço de manobra. Como não se vislumbra grande solução financeira para o problema, e isto mesmo que o Ministério das Finanças descative as verbas orçamentadas, os novos responsáveis políticos vão ter de encontrar soluções de outra natureza, isto, claro está, sem prejuízo de conseguirem a disponibilidade efectiva do que é já devido ao sector, porque orçamentado. Com efeito, uma coisa é conseguir regularizar este aspecto e tornar possível o funcionamento regular de estruturas como, por exemplo, o Teatro Nacional de S. Carlos e o IA, ou fazer com que o Estado cumpra as obrigações que entretanto assumiu, e outra coisa é desenhar políticas consequentes para o período da legislatura.É certo que ainda não foi apresentado o programa de Governo e, portanto, ainda não conhecemos o pensamento ministerial nessa matéria. Mas, se o programa for rigoroso, manter-se-á inevitavelmente o tempo das vacas magras. O que significa que o tempo de muitos subsídios chegará ao fim mais depressa do que se pensava e que a escassez de meios vai ter de atender cada vez mais a prioridades devidamente estabelecidas. Da nova equipa ministerial espera-se um desenho realista dessas prioridades e uma vontade política de fazê-las consagrar na prática governativa. As coisas não parecem assim tão difíceis se se considerar que o Estado tem, aí, duas missões fundamentais e apenas duas garantir a conservação, valorização e divulgação daquilo a que podemos chamar a "herança cultural", dando um sentido dinâmico e multidisciplinar ao termo "património", quer no plano material quer no plano imaterial, e assegurar o acesso a essa herança cultural por parte dos cidadãos ou, pelo menos, do maior número possível de cidadãos em cada momento. Mas agora a estratégia de Lisboa, que a Comissão Europeia, o Conselho e os Governos têm de abordar em bases mais sérias e consistentes do que as anteriores, implicará inflexões importantes no tocante ao peso desses grandes objectivos, quer no plano da Educação quer no plano da Cultura. Tive recentemente ocasião de abordar estes aspectos no Parlamento Europeu.Com efeito, o desenvolvimento sustentado, a partir de uma economia baseada no conhecimento, supõe uma educação altamente qualificada. Simplesmente, uma educação altamente qualificada tem de assentar num percurso escolar também de grande qualidade desde os primeiros anos de escolaridade! Sendo conhecidas muitas deficiências dos ensinos básico e secundário na maioria dos países e, muito em especial, no nosso, este aspecto terá de ser examinado por forma a ser encontrada com urgência uma solução para ele.Por outro lado, é evidente a necessidade de mobilizar o público europeu, de modo a persuadi-lo das vantagens da estratégia de Lisboa e a fazê-lo aderir a elas. Esse será o campo por excelência das políticas da cultura, quer a nível europeu quer a nível nacional.A interiorização, por parte de cada cidadão europeu, da necessidade e das vantagens da estratégia de Lisboa supõe, antes de mais, uma atitude cultural. A cultura não é apenas uma dimensão essencial da democracia. É também o quadro que permite medir a distância que vai do insucesso ao êxito numa estratégia como a de Lisboa, sobretudo se se quer preservar o modelo social europeu. Tomar decisões que vão nesse sentido implica uma grande coragem política. Nem todos aceitarão facilmente uma opção por políticas estruturantes, entre elas a de uma articulação muito mais significativa entre a escola e a cultura, em detrimento de vários interesses clientelares, onerosos e imediatos.


(Diário de Notícias, edição de 16 de Março de 2005)

15.3.05

FARSA

Pedro Santana Lopes parece que trata os seus colaboradores como meros lacaios. O grave é que parece que eles gostam. E, para não perder tempo, começa logo nos mais próximos. Constava que Carmona Rodrigues tinha conseguido devolver alguma dignidade à função presidencial camarária. Discreto e aparentemente competente, Carmona não despertou animosidade nas oposições e mobilizou minimamente a anquilosada máquina da Câmara. Mesmo que o faça em nome da amizade, a farsa em que se deixou envolver nos últimos dias, por causa do "volta-não-volta" de Santana, é imperdoável. O respeito por si próprio e pela forma como exerceu o seu curto mandato não são compatíveis com a não-posição que tomou. Era preferível ter saído de rosto erguido a ter ficado, ainda que tenha "poderes reforçados". Se tão pouco lhe basta como consolo, este gesto pusilânime coloca-o à altura do seu mentor. Por isso, nem um, nem sobretudo o outro, merecem continuar depois de Outubro.

O "PATHOS" DA CULTURA

Eu esperava que o ministério da Cultura obtivesse "outra" visibilidade política com este governo. Os sinais recolhidos nas "Novas Fronteiras" apontavam para aí. E julgava que a experiência dos últimos anos já tinha sido suficientemente esclarecedora. Pelos vistos não foi. É pena.

LER OS OUTROS

O Fio do Horizonte de Eduardo Prado Coelho, no Público: "Porto/Lisboa".

O ESPECTADOR COMPROMETIDO

Raymond Aron

Passou ontem, dia 14, o centenário do nascimento de Raymond Aron. Os nossos liberalóides de serviço - os da blogosfera e os outros - estavam demasiado preocupados com o destino dos medicamentos e das farmácias da paróquia para se lembrarem dele. Definiu-se como o "espectador comprometido". Suficientemente perto e prudentemente longe da política, Aron atravessou o século passado dando testemunho de um pensamento livre e iconoclasta bem expresso nas Memórias editadas no ano da sua morte. Foi vigoroso no combate aos totalitarismos que alguns dos seus contemporâneos adularam e pode hoje ser considerado como uma "referência" do "politicamente incorrecto". Não se considerava propriamente de "direita", mas nunca mostrou qualquer tipo de veneração ou de temor reverencial pela "esquerda". Citado por Jorge Almeida Fernandes no Público de ontem, Aron considerava que "o intelectual não recusa comprometer-se e, no dia em que participa na acção, aceita a sua dureza. Mas esforça-se por nunca esquecer nem os argumentos do adversário, nem a incerteza do futuro, nem os erros dos amigos, nem a fraternidade secreta dos seus combatentes." Já não se "fabrica" disto.

14.3.05

UM LIVRO

CANSAÇO

O Pedro perdeu e automaticamente perdeu-se. O Pedro está cansado e nós estamos terrivelmente cansados dele. O Pedro verdadeiramente já só representa cansaço. Um imenso cansaço.

EM OUTUBRO...

... nas eleições autárquicas em Lisboa, só existem dois candidatos verosímeis: Manuel Maria Carrilho ou o voto em branco.

13.3.05

UMA DAS...

... qualidades que reconheço em José Sócrates é o seu delicioso mau-feitio. Depois dos "bonzinhos" e dos "melosos", sabe bem este lance enxuto. "Cavaquista", por assim dizer.

SEXO E A CIDADE

1. O primeiro-ministro começou bem. Em vez das habituais vacuidades proclamatórias, Sócrates foi aconselhado a deixar logo "preto no branco" duas "medidas". Uma - a dos medicamentos - irritou sumariamente a corporação farmacêutica. Um bom sinal. A outra - coincidência do referendo à constituição europeia com as autárquicas - é, no mínimo, sensata, isto se o "regime" não quiser passar por mais um vexame. Também a "forma" ajudou. A rapidez e a discrição da posse parecem indiciar um novo estilo anti-espectáculo o qual, nem por isso, deixa de ser menos mediático.
2. Até Jorge Sampaio se conteve, contrariamente ao que tinha acontecido no "dia internacional da mulher". De facto, soube pelo País Relativo que Sua Excelência disse esta coisa extraordinária: "não é justo nem razoável que persistam enviesamentos masculinocêntricos tão acentuados na selecção das questões políticas agendáveis". Esta "tirada" deve ter caído no goto das "mulheres socialistas", raivosas com o desprezo a que Sócrates as votou na constituição do governo. Sócrates decidiu não considerar as "mulheres" como uma "questão política agendável" e demonstrou um preocupante "enviesamento masculinocêntrico". Ou seja, não foi "politicamente correcto". Também aqui esteve bem. A política não deve ter sexo. Alguém que a ela é chamado não o deve ser por ser homem, mulher ou hermafrodita. Deve-o ser apenas porque serve ou não serve, porque é competente ou não é e porque tem alguma densidade ou não tem. Nem a piloca nem as maminhas são para aqui chamadas. Só mesmo a cabeça.

HORIZONTE TÂNGER

Quando preciso de me esquecer do absurdo da minha vida, "viajo" para Marrocos pela mão de Paul Bowles. Imagino uma casa em Tânger onde o meu olhar possa cruzar o mar, o porto e as montanhas de Espanha. Fujo da "marginal" povoada por prédios incaracterísticos e "modernos" e não largo o bulício anónimo das ruas e dos cafés da velha cidade. Há um cheiro de essências e de pó que nos acompanha permanentemente em Marrocos. Existe uma cor ocre por todo o lado e a gentileza curiosa dos muçulmanos faz com que se sinta que nunca deixámos de ali estar. É fundamental perdermo-nos nessa deliciosa confusão. Perdermo-nos e não voltarmos nunca mais.

Paul Bowles no deserto:"Lá não há nada além do vazio e é isso a beleza, o vazio."

"A vida para mim é solidão. Não conheço ninguém."

"Uma pessoa está sempre a mudar e nunca chega a parte nenhuma. Mas chegar a algum lado também não é necessário. Morrer, sim. Tudo o que é inevitável é necessário."

12.3.05

PATRIMÓNIO II

Apesar do que possam pensar os habituais "caçadores de cabeças", os intriguistas e os invejosos sempre de serviço, eu estou exactamente no mesmo sítio onde estava quando comecei a "blogar" há cerca de quase dois anos. Possuo exactamente a mesma cabeça e as "mesmas fronteiras".

PATRIMÓNIO

1. Hesitei entre terminar hoje o blogue ou em mudar nele qualquer coisa. Na realidade, esta aventura surgiu do acaso da minha fortuita desocupação "intelectual" quando abandonei as funções que exercia no Teatro Nacional de São Carlos, em 2003. Para evitar a inevitável sensação de privação que o abandono voluntário de um lugar e de pessoas que me eram queridas - por causa de outros lugares e de outras pessoas menores - sempre provoca, dediquei-me a isto. O regresso a funções menos estimulantes também ajudou. A dado passo, o Portugal dos Pequeninos partiu numa direcção inesperada. Os apontamentos quotidianos, muito por força do "exterior", chegaram demasiado depressa à "política", depois de uma fase inicial muito marcada pelo "trauma" cultural. Dei por mim a ser um dos mais ferozes "combatentes" do imenso equívoco que foi a liderança do governo por Durão Barroso, primeiro, e por Santana Lopes, depois. Tentei modestamente denunciar a "secagem" cívica e cultural que estes dois percursos complementares representaram. Simultaneamente empenhei-me numa alternativa que acabou por surgir mais cedo e a qual eu apoiei.
2. No espaço e no tempo deste blogue, tornei-me "independente" de partidos - valha isto o que valer - sendo certo que sempre o fui intimamente, aceitando pagar por isso quase sempre uma pesada factura pessoal. Pelo caminho, perdi inevitavelmente "amigos". A propósito, ocorre-me uma frase que muito aprecio tirada do "prefácio" de Truman Capote ao seu livro Música para Camaleões: "quando Deus nos concede um dom, dá-nos também um chicote; e esse chicote destina-se unicamente à autoflagelação".
3. Por recurso a um outro autor meu muito estimado, Philip Roth, decidi mudar a designação deste blogue para Património. As não-sei-quantas centenas de postas que ficam para trás são isso mesmo, um património. Pequeno e irrelevante, mas meu. Isto não significa que eu entenda que o essencial do "Portugal dos Pequeninos" que nós somos venha a mudar significativamente depois do dia de hoje ou que o "respeitinho" do O'Neill desapareça como que por magia. Não, nada disso. Aliás, nem o endereço de acesso ao blogue é alterado e nem a epígrafe do poeta se modifica. Acontece que a posse do novo governo de maioria absoluta é, para mim que o defendi, muito mais um ponto de chegada do que um ponto de partida. Não conheço o que vem aí mas já disse o que tinha a dizer sobre o que ficou para trás.
4. Suportando-me nas palavras de Sartre, este meu "património" representará daqui em diante o mesmo "instante" de sempre, um "instante" que significa o envolvimento recíproco e contraditório do que passou pelo que se segue, naquilo que vamos deixar de ser, sendo já o que seremos.

O DIA DELE

11.3.05

AS "NOVAS FRONTEIRAS"

José Sócrates "materializou" a ideia das "novas fronteiras". Não quer ninguém, salvo os indispensáveis e os próprios, na posse do seu governo. Esta novidade deixa muita gente de cabeça perdida. Como é que os eternos "zés e marias sempre-em-pé" sobrevivem sem o espectáculo deprimente de uma posse pública? Como é que centenas de homens e mulheres "plasticina" da alta, média e ínfima administração pública, desde há muito desprovidos de coluna vertebral à força de tanto ter sido dobrada, conseguem passar sem se "mostrar"? E a rapaziada do "aparelho", que fica sem a hipótese de lançar um mero sorriso malicioso que seja ao "amigo" ministro ou secretário de Estado? Este estilo seco e inovador de José Sócrates vai dar muito que falar. Eu espero que sim e que seja sempre pelas melhores razões.

10.3.05

"O ERRO MUDOU?"

A este poema Fernando Pessoa deu o título de "Natal". Percebi-o melhor quando o vi citado num ensaio de Maria Alzira Seixo, há muitos anos. Podia perfeitamente servir de pórtico ao célebre livrinho de José Gil ou a qualquer meditação séria ou barata acerca de "Portugal, hoje". Não tenho pachorra para comentar o que não há para comentar e, muito menos, para "forjar" comentários. Vão bons os tempos para voltar, por exemplo, à filosofia ou à poesia. Os "blogues" também deviam apreender as virtudes do silêncio e da interrogação, tentando ser menos tagarelas. Já há para aí tanto comentador, ou não há? "O Erro mudou"?

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a fé vive o sonho do seu culto.
Um deus novo é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

Ana Gomes anda preocupada com as "amarras". O meu amigo Mário - também ele um transumante no eixo Lisboa-Bruxelas - fala em "desafios estruturantes". Que diabo quer ele dizer com isto? Que a blogosfera, esmagada pelo "absolutismo socrático", subitamente "boazinha" e chata, passe a espremer "postas" sociológicas?

UMA MULHER SEM AMARRAS

Saúda-se o regresso da azougada Ana Gomes - ainda se lembram dela...? - numa "posta" inconfundível publicada no Causa Nossa. Estou à vontade porque, indirectamente, votei nela nas "europeias". E gosto sempre de a ver assim, solta, muito fresca, "sem amarras". Bem lá ao longe.

9.3.05

LER OS OUTROS

Sobre a blogosfera portuguesa e correlativas indicações bibliográficas, ver este blogue/estudo.

A MINHA "MÚSICA"

É p'rá amanhã
Bem podias fazer hoje
Porque amanhã sei que voltas a adiar
E tu bem sabes como o tempo foge
Mas nada fazes para o agarrar

Foi mais um dia e tu nada fizeste
Um dia a mais tu pensas que não faz mal
Vem outro dia e tudo se repete
E vais deixando tudo igual

É p'rá amanhã
Bem podias viver hoje
Porque amanhã quem sabe se vais cá estar
Ai tu bem sabes como a vida foge
Mesmo que penses que estás p'ra durar

Foi mais um dia e tu nada viveste
Deixas passar os dias sempre iguais
Quando pensares no tempo que perdeste
Então tu queres mas é tarde demais

É p'rá amanhã
Deixa lá não faças hoje
Porque amanhã tudo se há-de arranjar
Ai tu bem sabes que o trabalho foge
Mesmo de quem diz que quer trabalhar

Eu sei que tu andas a procurar
Esse lugar que acerte bem contigo
Do que aparece tu não consegues gostar
E do que gostas já está preenchido


António Variações

CONFORME...

... previsto, andamos a perder "gás". A blogosfera cresceu à conta das contradições, das insuficiências e da mediocridade emergente nos dois/três últimos anos. Propensão mais do que clara para ser do "contra", temperada com "referências" vagamente culturais. Que fazer agora para manter a "graça" sem a "pressão", grace without pressure e já não under pressure? Já dizia Salazar - uma frase que me foi ensinada numa viagem de avião entre Bruxelas e Lisboa pelo José Medeiros Ferreira - que, uma vez decididos até onde ir, não devemos ir mais além. Para já, continuamos. Mais devagar.

8.3.05

A MELHOR NOTÍCIA DO DIA...

... está no Random Precision, "O Salão Erótico".

NÓS E O MUNDO

Parece que a não-notícia do dia é a vinda a Portugal do secretário-geral da ONU para "convencer" alguns ilustres nativos a aceitarem cargos internacionais. De acordo com essa não-notícia, à cabeça dos "desejados" estaria o dr. Vitorino (Refugiados), em segundo lugar o eng.º Guterres (idem, mas já como "segundos") e finalmente o ainda MNE, dr. Monteiro, a quem estaria reservado o cargo de "sub-secretário-geral" da ONU. Aparentemente nem o sr. Annan vem aí, nem nenhuma destas ilustres figuras deverá ir para lado nenhum. O dr. Vitorino quer à viva força manter-se como uma espécie de reserva sagrada do universo. Tomou o gosto do enjoo pela causa pública nacional - nem uma maioria absoluta do seu partido o curou - e faz-se vagamente caro perante outros desígnios, reais ou virtuais. Guterres, que andou por Bagdade a derramar melancolicamente lições de democracia - era o que estava a fazer mais falta àquela gente... - aparece nesta fantasia como uma segunda escolha face a Vitorino. Consta até que já é uma segunda escolha para outras coisas. Monteiro, por fim, não conta muito e deverá regressar à sua honrada carreira diplomática. À falta de "expos" e de "eventos desportivos" - um outro Monteiro, Tiago, ainda não passou de uma mera hipótese e os sucessos no atletismo passam depressa -, demos agora em revelar ao mundo a suposta "dimensão internacional" de alguns de entre nós. Durão Barroso foi o primeiro a "chegar-se à frente" e é o "sem rasgo" que conhecemos. Ora acontece que o mundo não deve propriamente suspirar pelo concurso de mais portugueses, sejam eles Vitorino, Guterres ou António Monteiro. Tem-se safado razoavelmente bem sem nós e - tudo o indica - assim deve continuar.

7.3.05

OS ESPERTOS

Na Adenda ao seu artigo no Expresso do passado sábado, José Luís Saldanha Sanches escreve: "o que não podemos ter é técnicos de contas ou revisores oficiais de contas que sejam funcionários da DGCI". O Estado tem destas coisas curiosas. Gente que faz do seu "prime time" um "part-time" e do "part-time" um género de "vida". Não valem nem mais nem menos do que os outros. Limitam-se a ser espertos o que, num país como o nosso, equivale a uma verdadeira profissão. Por isso, meu caro professor: tem a certeza que o problema da "exclusividade" e das "incompatibilidades" só atinge a DGCI ?

6.3.05

NOMADISMO


Hotel lobby, de Edward Hopper

O "lobby" de um hotel é um dos meus sítios favoritos e dos poucos de onde raramente me apetece sair. Os nómadas como eu sentem-se bem no seu anonimato confortável. É uma espécie de espaço de convívio egoísta: estar com outros sem ter que os conhecer ou aturar. Puro movimento circunstancial.

LER OS OUTROS

... no Blasfémias, de CAA, "Palhaçada". Não é necessário dizer mais nada.

Secretário-Geral do CDS vai enviar o retrato de Freitas do Amaral para o Largo do Rato.
Não é a primeira vez que esse partido tenta apagar parte da sua história. Mas este gesto, acima de todos os anteriores, revela uma irreprimível tendência para a confusão entre a actividade política e o comportamento circense.

O LIVRO



Ring magic is different from the magic of the theater, because the curtain never comes down - because the blood in the ring is real blood, and the broken noses and the broken hearts are real, and sometimes they are broken forever. Boxing is the magic of men in combat, the magic of will, and skill, and pain, and the risking of everything so you can respect yourself for the rest of your life. Almost sounds like writing.


(Million Dollar Baby, Stories from the Corner, de F. X. Toole)

O "KAIROS"

1. Os Gregos, na sua infinita sabedoria, usavam o termo kairos para designar a coincidência entre um "bom argumento" e a ocasião certa para o expôr. Em menos de vinte e quatro horas, dois quase ministros de José Sócrates, o das finanças e o dos negócios estrangeiros, apareceram em público "a falar", descurando o kairos. O que teve de avisado o silêncio do primeiro-ministro indigitado no processo de constituição do governo, faltou, na primeira oportunidade, a Campos Cunha e a Freitas do Amaral.
2. Mesmo que o pense e o venha inevitavelmente a pôr em prática, o propósito anunciado de aumento de impostos não foi seguramente a melhor maneira de Campos Cunha se "apresentar". Apesar de se tratar de uma competente escolha, Campos Cunha não é manifestamente um "político". Ao contrário do que muitos defendem, a pasta das finanças - como praticamente todas as pastas ministeriais - é um cargo eminentemente político e de gestão política. Para tratar da "intendência", os ministros - que definem a "estratégia" e a "política" dos seus sectores - devem depositar a confiança "técnica" nos seus secretários de Estado - também eles gestores "políticos", mas num nível distinto -, nos membros do seu gabinete e nos seus directores-gerais. O que um ministro faz primeiramente é "política" e não contas ou outra coisa qualquer. Ao colocar a hipótese de aumentar os impostos, banalizando numa entrevista radiofónica uma assunto sério (a consolidação orçamental), Campos Cunha revelou falta de "traquejo" político que, no curto e no médio prazo, lhe poderá ser fatal.
3. Já o caso de Diogo Freitas do Amaral é ligeiramente diferente. Pode dizer-se que Freitas estava "mortinho" para voltar ao protagonismo político, fosse ele qual fosse. Tal como na altura achei perfeitamente natural o seu apoio à maioria absoluta do PS e farisaicas as críticas que lhe dirigiram, da mesma forma encaro com tranquilidade a sua ascensão a ministro de Estado e a terceira figura do governo. Não obstante o papel que terá que desempenhar junto de um primeiro-ministro com uma "frente externa" ainda debilitada, Freitas verdadeiramente "não aquece nem arrefece", mau grado se ter em excessiva boa conta. De facto, pareceu-me perfeitamente deslocada a declaração sobranceira e paternalista que Freitas fez ao Expresso, segundo a qual terá "esperado" para ver qual seria a composição do governo e, só depois de concluír que era "boa", é que aceitou "dar a cara". O que pensará o chefe do governo desta "avaliação" do professor?
4. A melhor "cabeça" política que está no governo, imediatamente abaixo de José Sócrates, é António Costa. Contudo, sozinho não opera milagres. Estes dois exemplos de "anti-kairos" político, e o passado recente de má memória, recomendam que não se desvalorize a coordenação política do executivo. Sobretudo quando o governo praticamente não dispôe de nenhum período de "graça", algo que já se sabia e que, em menos de 48 horas depois do seu anúncio, se confirma amplamente. Não escondo a minha condição de apoiante deste executivo e, como tal, o meu direito a ser mais exigente com ele do que alguns dos seus apressados críticos. É um dever de consciência e de cidadania. Até para evitar que se entregue gratuitamente o kairos aos adversários mais atentos e aos inimigos de má-fé.

5.3.05

AS REACÇÕES...

... do PC e do BE ao novo governo são um bom sinal. Já Guilherme Silva ou o CDS limitaram-se a dar razão àquela máxima brasileira: mais vale estar calado e passar por parvo do que abrir a boca e acabar com as dúvidas.

DEPOIS DO DESVARIO

O governo anunciado é seguramente uma má notícia para a teoria da "esquerda 59%". Por isso mesmo, entre outras virtudes, é globalmente um bom governo. Aceita por igual socialistas e independentes. A maturidade política revelada por José Sócrates no processo da sua formação é, para já, um bálsamo depois do desvario. Daqui para diante, é fazer o que deve ser feito. Com alegria.

4.3.05

PEDRO SANTANA LOPES...

... pode regressar à Câmara Municipal de Lisboa? Pode e deve. Foi o cargo para o qual foi eleito e não apenas escolhido.

ATENÇÃO...

... blogosfera militante, "fontes próximas", PSD, dr. Soares, automobilistas estacionados na ponte 25 de Abril que ainda não pararam de buzinar desde 1994 e "esquerda dos 59%": hoje é dia de "bater no ceguinho".

3.3.05

PORTUGAL... EU... MARÇO DE 2005

Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais.

Clarice Lispector

2.3.05

SÓCRATES ESPANHOL

Um leitor enviou-me um mail com a foto comprovativa que é demasiado grande para reproduzir: "Na edição de 21-02-2005, no diário canadiano «La Presse» (Montreal), em legenda da foto que ilustra as eleições em Portugal, escreve-se: «Le Chef du Parti socialiste espagnol, José Socrates, affichait um air triumphant..." Depois de tantos "sucessos", e apesar de saber-se que a ignorância é atrevida, continuamos, nalguns círculos, a ser absolutamente insignificantes. Eu preferia que fossemos absolutamente iberistas. Já não havia tanta confusão e ficava tudo mais fácil.

LER OS OUTROS

.... As mulheres portuguesas são parvas, de Maria Filomena Mõnica, no Público.

O LADO "SPIN" DE DEUS (act.)

1. Algum PSD e alguma "imprensa" da "fonte próxima" querem à viva força Ferreira Leite na disputa pela liderança dos despojos "santanistas". Por tabela - e é só isso que lhes interessa verdadeiramente - querem trazer Cavaco para o bulício, arrastando-o para "dentro" do PSD. Não devem ter sorte nenhuma. Por outro lado - e pode ser que eu me engane - o candidato de Ferreira Leite para a "recomposição" dos despojos é, para já, Marques Mendes. Depois, lá mais para diante, logo se verá. Não juntem, no entanto, "barrosistas" com "cavaquistas". Assim a coisa fica demasiado evidente.
2. O melhor candidato à presidência do município de Lisboa, pelo lado da "nova maioria" - e pelo meu -, continua a ser Manuel Maria Carrilho. Parafraseando Marcelo, o resto é do domínio da pura imaginação e do aparelhismo doentio, sempre bem secundado pela tal "imprensa". O Paulo Gorjão é que é "especialista" em "detectar" isto, esta "imprensa" da "fonte próxima". O que eu aprendi na tropa acerca de informação e contra-informação basta-me para ver nestes dois distintos casos - Manuela/Cavaco e Carrilho - o lado spin de Deus, o Tal que não dorme.

1.3.05

DO CABARET PARA O CONVENTO

Um amigo enviou-me uma "sms". "Isto está mortiço", queixava-se ele. É verdade. O sossego "socrático" corresponde à "mudança" no registo geral da pátria. Foi como se, em uma semana apenas , tivéssemos passado "do cabaret para o convento". Como diz o outro, habituem-se.

IMPERDOÁVEL PERDER

Clint Eastwood

Não é por o filme aparentemente tratar de boxe que eu saí do cinema literalmente esmagado pelos inteligentes e sensíveis 74 anos de Clint Eastwood. O boxe é apenas uma metáfora recorrente neste filme fabuloso e perturbante. Eu vi-o como se estivesse a assistir a uma ópera. Aliás, é isso mesmo que o filme é: uma imensa e devastada ópera onde a cada instante, sem que disso nos apercebamos, somos nós os "cantados". Aqueles dois homens, aquela mulher, aquele argumento, aquela ambição traída pela "vida", todo aquele sumptuoso fracasso "bigger than life" a representa tal como ela deve ser vista pelos não-idiotas. Heidegger falava de um "ser-para-morte" e na "clara noite do nada". Million Dollar Baby é a luz desse crepúsculo inevitável num irreversível caminho "para a morte" das pulsões vitais e dos sonhos. É, para lembrar outro imperdível Eastwood, imperdoável perder.


Hillary Swank



Morgan Freeman

A MÃO ESQUERDA DE DEUS II

Se o Eduardo não leu o post anterior, parece que leu. De qualquer forma, é uma outra maneira de abordar o mesmo assunto, sensivelmente na mesma linha. Por isso e para que não se "perca" no turbilhão dos dias "presidenciais" que aí vêm, eu reproduzo, com vénia e amizade. Para mais tarde recordar...


E o Presidente?

Por Eduardo Prado Coelho

Alguns comentadores consideram que a vitória de Sócrates significaria uma vitória da esquerda, que, no seu conjunto, iria até aos 59 por cento. Não, não é possível considerar as coisas nesses termos, uma vez que o voto é cada vez mais flutuante (fenómeno que se verifica por esse mundo fora) e muitos dos que votaram agora a favor da esquerda votaram sobretudo contra Santana Lopes e a ideia de uma desenfreada loucura à frente dos destinos do país. Daqui se conclui também que não se pode concluir que um candidato da esquerda às eleições presidenciais tenha saído beneficiado. Podemos mesmo pensar o contrário. Com a tendência para criar balanceamentos (a famosa "teoria dos cestos"), esse candidato terá de combater a ideia de que é preciso moderar a maioria absoluta com um presidente de outra cor política. Os portugueses avaliarão a credibilidade que as pessoas merecem: se a oposição fosse entre Alberto João Jardim e António Guterres, Guterres tinha a vitória assegurada (o que é evidente para toda a gente, excepto para alguns que vivem na Madeira).Mas o grande problema para a esquerda é que o candidato da direita deverá ser muito provavelmente Cavaco Silva. Cavaco Silva disse há meses que muita coisa iria acontecer para que não fosse precipitado estar a tomar posições. Verificou-se que a intuição estava certíssima. A partir daí, Cavaco foi intervindo de um modo discreto, moderado na forma e violento no conteúdo, mas segundo uma linha estratégica claramente definida: foi ele que na realidade desencadeou a crise no PSD de Santana Lopes, denunciando a mediocridade daqueles que o rodeavam. Foi ele que manteve o silêncio quando seria tentador falar (apenas com o sintomático episódio da fotografia). É claro que não virá para tornar a vida fácil ao PS, mas tenderá sempre a pôr os interesses do Estado acima de posições partidárias.Quanto a Guterres, não é hoje o candidato da esquerda mais bem posicionado: é o único (sobretudo depois do desaparecimento de Sousa Franco). Mas esta campanha eleitoral veio mostrar que o seu nome não suscitava grande entusiasmo nem mesmo entre os apoiantes mais fiéis de Sócrates. Não houve tempo suficiente para que deixasse de "passar" mal.Isso tem a ver com o efeito-abandono. Poucas coisas são mais imperdoáveis do que abadonar o barco da governação. Fernando Gomes fez essa experiência em relação à Câmara do Porto, trocada por um lugar ministerial em Lisboa. Guterres traz ainda colada a palavra "pântano" - embora ele não tenha dito que estávamos no pântano, mas, sim, à beira do pântano. Durão Barroso vai pelo mesmo caminho. Sobretudo quando acumula com as suas culpas as de ter promovido Santana Lopes.E assim por diante. Ora Guterres poderá hesitar por três razões: sentir que não passou tempo suficiente para apagar os aspectos negativos da sua imagem; considerar que Cavaco Silva tem resultados esmagadores nas sondagens; a teoria dos cestos. E nesse caso o PS fica descalço. Não exageremos: em pantufas