INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DESENCANTO-uma sociedade com pés de barro
Arderam as casas, a vegetação e os animais perante o olhar impotente de poderes públicos, centrais e autárquicos. A subsistência de muitas famílias mais desamparadas ficou comprometida. Ruiram pontes e abriram buracos gigantescos em sítios onde a natureza foi contrariada pelo betão e pela estupidez humana. As auto-estradas, um suposto paradigma de segurança, matam diariamente e os automobilistas tontos matam-se ingloriamente nelas. Em quase todas as regiões do País foi erguido um estádio de futebol para a vã glória de um evento de três ou quatro semanas, em 2004. Pelo contrário, continuou a degradação do património, com livros raros a apodrecerem, com as bibliotecas desvalidas, com os museus sem recursos, com os teatros moribundos, tudo aparentemente à espera de que chegue à "cultura" o milagreiro modelo da "gestão empresarial societária", tão em voga e tão inteiramente pago pelo mesmo orçamento de Estado. Só uma sociedade culta pode ser verdadeiramente livre, exigente e sofisticada. Porém, por detrás de cada casa incendiada, de cada buraco aberto, de cada ponte caída, de cada auto-estrada assassina, esconde-se uma miséria profunda, a oficial e a dos costumes. O brilho de um sucesso pífio, exibido lá fora para consumo das estatísticas, oculta uma sociedade de pés-de-barro, profundamente indigente e atrasada, onde as "estruturas" e os "equipamentos sociais" falham constantemente, a "massa crítica" não existe e a frivolidade bronca é campeã. A incredulidade geral, a descrença e a falta de confiança não se afogam em champanhe nem com doze passas. Que não subsistam ilusões. O País embotado que vai procurar adormecer entorpecido mais logo, para acordar ilusoriamente numa "vida nova", será o mesmo quando o sol de 2004 abrir. Até amanhã.
«Somos poucos mas vale a pena construir cidades e morrer de pé.» Ruy Cinatti joaogoncalv@gmail.com
31.12.03
30.12.03
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DESENCANTO- o voyeurismo doentio
Este ano fica assinalado pelo bombardeamento constante da opinião pública com notícias, eventos e factos, uns importantes e outros sem importância nenhuma, que encheram as primeiras páginas dos jornais, dos tablóides, das revistas, e com voz privilegiada, os jornais televisivos. A pobreza confrangedora do material noticioso juntou-se à exploração miserável de instintos primários e de analfabetismos seculares, pela especulação maliciosa e especulativa dos objectos analisados. A demagogia e o mau-gosto andaram de mãos dadas com a avidez doentia das audiências. O caso emblemático do ano foi , e é agora com maior intensidade, o processo da Casa Pia. Depois de se ter passado pela fase dos palpites e dos pré-julgamentos sob a forma de comentários, passando pela falta de serenidade de alguns protagonistas reais ou eventuais, com a divulgação da "acusação" entrou-se num momento de extrema promiscuidade no qual já está instalada a competição para ver quem é que consegue desvendar o pormenor mais sórdido. Numa acusação tão "exaustiva", só estranho que não apareça à cabeça o Estado, a quem a guarda das crianças molestadas estava confiada, e que falhou rotundamente anos e anos a fio quanto à salvaguarda dos seus direitos, aspirações e segurança mínima. Mas disto ninguém se lembra porque não "pega" noticiosamente .Este voyeurismo malsão não contribui para a maturidade cívica. A comunicação social portuguesa, forma contemporânea de soberania, salvo raras excepções, não quer distinguir a palha do grão, seja para não molestar "interesses", seja no seu próprio "interesse", ou seja ainda por pura e atrevida ignorância. Entretanto, com um ar pseudo grave, vai ajudando ao aviltamento geral, "lançando lama para a ventoínha".
Este ano fica assinalado pelo bombardeamento constante da opinião pública com notícias, eventos e factos, uns importantes e outros sem importância nenhuma, que encheram as primeiras páginas dos jornais, dos tablóides, das revistas, e com voz privilegiada, os jornais televisivos. A pobreza confrangedora do material noticioso juntou-se à exploração miserável de instintos primários e de analfabetismos seculares, pela especulação maliciosa e especulativa dos objectos analisados. A demagogia e o mau-gosto andaram de mãos dadas com a avidez doentia das audiências. O caso emblemático do ano foi , e é agora com maior intensidade, o processo da Casa Pia. Depois de se ter passado pela fase dos palpites e dos pré-julgamentos sob a forma de comentários, passando pela falta de serenidade de alguns protagonistas reais ou eventuais, com a divulgação da "acusação" entrou-se num momento de extrema promiscuidade no qual já está instalada a competição para ver quem é que consegue desvendar o pormenor mais sórdido. Numa acusação tão "exaustiva", só estranho que não apareça à cabeça o Estado, a quem a guarda das crianças molestadas estava confiada, e que falhou rotundamente anos e anos a fio quanto à salvaguarda dos seus direitos, aspirações e segurança mínima. Mas disto ninguém se lembra porque não "pega" noticiosamente .Este voyeurismo malsão não contribui para a maturidade cívica. A comunicação social portuguesa, forma contemporânea de soberania, salvo raras excepções, não quer distinguir a palha do grão, seja para não molestar "interesses", seja no seu próprio "interesse", ou seja ainda por pura e atrevida ignorância. Entretanto, com um ar pseudo grave, vai ajudando ao aviltamento geral, "lançando lama para a ventoínha".
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DESENCANTO- a ascensão do radicalismo populista
Os meus virtuais leitores poderão achar que eu tenho um qualquer tipo de obsessão contra o pequeno partido à direita do PSD e contra o seu lider, o dr. Portas. Não tenho. Aliás, felicitei quase sempre o Paulo Portas pelos seus sucessos políticos e, num acesso espúrio inicial, até me manifestei disponível para colaborar. Tínhamos sido colegas de universidade e de jornais, e eu achava alguma graça à persistência petulante e audaciosa da criatura. Também admirava a sua inteligência rápida e aquilo que eu julgava ser uma forma "outra" de ser conservador em política. No entanto, não foi preciso esperar muito tempo para se perceber que a intuição de Durão Barroso dos idos de 97 a 99, relativamente ao PP, era acertada, e daqui em diante limito-me a ser objectivo. Com a chegada ao poder, o PP resvalou para um radicalismo beato-populista que, numa coligação em que a ideologia não é a característica mais forte do partido maioritário, marca como uma farpa o desempenho "intelectual" desta coligação. Como a generalidade dos protagonistas da dita não se distingue pela sua consistência política ou outra, é relativamente fácil a esse radicalismo beato-populista fazer o seu tranquilo caminho, sem que o dr. Barroso, que é insuspeito na matéria, expire sequer um vago murmúrio. Encerrada a intervenção no "caso Moderna", que o "moderou" perante a liderança da coligação, Portas, assim que pôde, voltou ao seu melhor. Exibe o dr. Félix como uma espécie de campeão reformista na área social e do trabalho, o qual se veio revelando, afinal, um vago "herói" do catolicismo social, ancorado a um novo código de trabalho que ficou "entre as dez e as onze" e que assiste, impotente, ao crescimento do desemprego. Elogia a dra. Cardona, cujo desempenho na Justiça tem merecido a avaliação que se conhece dos respectivos operadores, como se viu no recente Congresso. E colocou uns rapazes, uma menina e uma senhora em secretários de Estado que, de uma forma geral, têm feito ao País o favor de passarem despercebidos. Quanto ao próprio, para além de ser o "timoneiro" ideológico da governação e de ter a seus pés alguns escribas serventuários, o que já é obra, gere a pasta que lhe coube com "chá e simpatia" qb, o que sempre agrada aos militares, pelo menos durante algum tempo, permitindo-se fazer algumas "flores" com as "fatias" que a Praça do Comércio vai dando. Nada de particularmente entusiasmante. Resta ver se, em 2004, esta supremacia ideológica populista se mantém ou se se retrai. O "pensamento" popular acerca da imigração, faz esperar o pior. A prazo, se calhar curto, poderá tornar-se numa "mancha" que contaminará desnecessariamente uma coligação sem nervo e sem chama, onde o partido em que votei, e que foi o mais votado, parece estar a "ver" e a "deixar passar os comboios", conduzidos por uma pequena "locomotiva".
Os meus virtuais leitores poderão achar que eu tenho um qualquer tipo de obsessão contra o pequeno partido à direita do PSD e contra o seu lider, o dr. Portas. Não tenho. Aliás, felicitei quase sempre o Paulo Portas pelos seus sucessos políticos e, num acesso espúrio inicial, até me manifestei disponível para colaborar. Tínhamos sido colegas de universidade e de jornais, e eu achava alguma graça à persistência petulante e audaciosa da criatura. Também admirava a sua inteligência rápida e aquilo que eu julgava ser uma forma "outra" de ser conservador em política. No entanto, não foi preciso esperar muito tempo para se perceber que a intuição de Durão Barroso dos idos de 97 a 99, relativamente ao PP, era acertada, e daqui em diante limito-me a ser objectivo. Com a chegada ao poder, o PP resvalou para um radicalismo beato-populista que, numa coligação em que a ideologia não é a característica mais forte do partido maioritário, marca como uma farpa o desempenho "intelectual" desta coligação. Como a generalidade dos protagonistas da dita não se distingue pela sua consistência política ou outra, é relativamente fácil a esse radicalismo beato-populista fazer o seu tranquilo caminho, sem que o dr. Barroso, que é insuspeito na matéria, expire sequer um vago murmúrio. Encerrada a intervenção no "caso Moderna", que o "moderou" perante a liderança da coligação, Portas, assim que pôde, voltou ao seu melhor. Exibe o dr. Félix como uma espécie de campeão reformista na área social e do trabalho, o qual se veio revelando, afinal, um vago "herói" do catolicismo social, ancorado a um novo código de trabalho que ficou "entre as dez e as onze" e que assiste, impotente, ao crescimento do desemprego. Elogia a dra. Cardona, cujo desempenho na Justiça tem merecido a avaliação que se conhece dos respectivos operadores, como se viu no recente Congresso. E colocou uns rapazes, uma menina e uma senhora em secretários de Estado que, de uma forma geral, têm feito ao País o favor de passarem despercebidos. Quanto ao próprio, para além de ser o "timoneiro" ideológico da governação e de ter a seus pés alguns escribas serventuários, o que já é obra, gere a pasta que lhe coube com "chá e simpatia" qb, o que sempre agrada aos militares, pelo menos durante algum tempo, permitindo-se fazer algumas "flores" com as "fatias" que a Praça do Comércio vai dando. Nada de particularmente entusiasmante. Resta ver se, em 2004, esta supremacia ideológica populista se mantém ou se se retrai. O "pensamento" popular acerca da imigração, faz esperar o pior. A prazo, se calhar curto, poderá tornar-se numa "mancha" que contaminará desnecessariamente uma coligação sem nervo e sem chama, onde o partido em que votei, e que foi o mais votado, parece estar a "ver" e a "deixar passar os comboios", conduzidos por uma pequena "locomotiva".
29.12.03
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DESENCANTO
Dou início, por toda esta semana, ao meu "balanço" do ano. Por todas as razões, é um ano para esquecer por completo. Lembro-me de que, há dois anos, após a abrupta despedida de Guterres, nas mensagens de ano novo que enviei, desejei quase invariavel e provocatoriamente um "bom ano laranja". Que grande barrete! Em dois anos apenas, o pior que eu via no "último Guterres" é já praticamente melhor que o "melhor" que vejo no "regime actual". Para simplificar, ou D. Barroso pensa a sério em mudar o governo, ou o País terá que começar, também muito a sério, a pensar em mudar Barroso. Com este "mote" avançamos para algum detalhe subsequente. Por agora, recomendo a leitura do Jumento para um "balanço" de outro género. Ao fim de seis meses de blogue, ainda não me tinha ocorrido que o Dr. Pedro Roseta é, de facto, um verdadeiro ecologista. Vão até ao palheiro e percebam porquê.
Dou início, por toda esta semana, ao meu "balanço" do ano. Por todas as razões, é um ano para esquecer por completo. Lembro-me de que, há dois anos, após a abrupta despedida de Guterres, nas mensagens de ano novo que enviei, desejei quase invariavel e provocatoriamente um "bom ano laranja". Que grande barrete! Em dois anos apenas, o pior que eu via no "último Guterres" é já praticamente melhor que o "melhor" que vejo no "regime actual". Para simplificar, ou D. Barroso pensa a sério em mudar o governo, ou o País terá que começar, também muito a sério, a pensar em mudar Barroso. Com este "mote" avançamos para algum detalhe subsequente. Por agora, recomendo a leitura do Jumento para um "balanço" de outro género. Ao fim de seis meses de blogue, ainda não me tinha ocorrido que o Dr. Pedro Roseta é, de facto, um verdadeiro ecologista. Vão até ao palheiro e percebam porquê.
28.12.03
UM RIO SILENCIOSO
Clint Eastwood, o realizador de Mystic River, baseado no livro homónimo de David Lehane
Depois de meses a fio de bravatas em torno da pedofilia doméstica, parece-me que o grande texto produzido pelo assunto está na revista Única do Expresso de 27 de Dezembro de 2003, e é da autoria de Clara Ferreira Alves. Chama-se Dirty America e, sendo aparentemente sobre um dos grandes filmes do ano e dos últimos anos, Mystic River, de Clint Eastwood, é muito mais sobre o outro e verdadeiro "lado" da pedofilia, o do sofrimento silencioso cuja "consequência atravessa várias gerações e amputa as suas vítimas, decepando-lhes a ingenuidade e a inocência". De acordo com C. Ferreira Alves, este filme, entre outras coisas, tais como podermos assistir a soberbas interpretações, designadamente de Sean Penn, dá-nos "um entendimento maior, inteligente e directo" do crime da pedofilia sobre o qual, ao contrário do que pensam tantas das nossas luminárias de serviço, ainda há muito para aprender. E já agora, contrariamente à tirada infeliz do primeiro ministro no jantar de Natal da Casa Pia, a pedofilia trazida agora aos escaparates e às televisões, jamais será um mal que veio por bem...
Clint Eastwood, o realizador de Mystic River, baseado no livro homónimo de David Lehane
Depois de meses a fio de bravatas em torno da pedofilia doméstica, parece-me que o grande texto produzido pelo assunto está na revista Única do Expresso de 27 de Dezembro de 2003, e é da autoria de Clara Ferreira Alves. Chama-se Dirty America e, sendo aparentemente sobre um dos grandes filmes do ano e dos últimos anos, Mystic River, de Clint Eastwood, é muito mais sobre o outro e verdadeiro "lado" da pedofilia, o do sofrimento silencioso cuja "consequência atravessa várias gerações e amputa as suas vítimas, decepando-lhes a ingenuidade e a inocência". De acordo com C. Ferreira Alves, este filme, entre outras coisas, tais como podermos assistir a soberbas interpretações, designadamente de Sean Penn, dá-nos "um entendimento maior, inteligente e directo" do crime da pedofilia sobre o qual, ao contrário do que pensam tantas das nossas luminárias de serviço, ainda há muito para aprender. E já agora, contrariamente à tirada infeliz do primeiro ministro no jantar de Natal da Casa Pia, a pedofilia trazida agora aos escaparates e às televisões, jamais será um mal que veio por bem...
27.12.03
LEVANTA-TE E RI
Li nos jornais a "mensagem de Natal" que Durão Barroso nos dirigiu. Talvez por não haver muito mais para oferecer, o primeiro-ministro recorreu ao jargão. Estamos no bom caminho- normalmente estamos sempre no bom caminho, seja qual for o governante -, o rumo traçado é o único possível, sabe-se que há dificuldades, mas há uns sinais- muito ténues, mas "sinais" - de que para o ano isto começa a melhorar e preocupa-o o desemprego, nada que os tais "ténues sinais" não possam vir a atenuar em breve. Depois, fazendo a ligação entre o combate ao desemprego e o "futuro", Durão Barroso lembrou-se dos "jovens" e, numa catalinária meio despropositada, passou a elogiar a "energia" da nossa juventude como exemplo a seguir pela sociedade em geral para que, nem que seja virtualmente, possamos ultrapassar mais depressa o estado depressivo e larvar em que estamos depositados. Com o devido respeito, D. Barroso não podia ter escolhido pior exemplo. Os "jovens" que o atrem estão-se seguramente nas tintas para a coisa pública e os lugares-comuns produzidos não ajudam. Todos os estudos, sociológicos, sondagens e outros, ultimamente publicados, são reveladores dos "interesses" dessa camada social que tanto entusiasma o chefe do Governo. Seja universitária, liceal ou outra, o certo é que a nossa juventude, com algumas honrosas excepções, não se recomenda a ninguém. Espreita-a um futuro razoavelmente negro no qual ela própria não se deverá distinguir. Ao apelar à "juventude" e ao seu "entusiasmo", e no actual "estado da arte", Durão Barroso só lhe pode querer estar a dizer, por entre os escombros e com um amável sorriso: "levanta-te e ri". Não há muito mais a esperar.
Li nos jornais a "mensagem de Natal" que Durão Barroso nos dirigiu. Talvez por não haver muito mais para oferecer, o primeiro-ministro recorreu ao jargão. Estamos no bom caminho- normalmente estamos sempre no bom caminho, seja qual for o governante -, o rumo traçado é o único possível, sabe-se que há dificuldades, mas há uns sinais- muito ténues, mas "sinais" - de que para o ano isto começa a melhorar e preocupa-o o desemprego, nada que os tais "ténues sinais" não possam vir a atenuar em breve. Depois, fazendo a ligação entre o combate ao desemprego e o "futuro", Durão Barroso lembrou-se dos "jovens" e, numa catalinária meio despropositada, passou a elogiar a "energia" da nossa juventude como exemplo a seguir pela sociedade em geral para que, nem que seja virtualmente, possamos ultrapassar mais depressa o estado depressivo e larvar em que estamos depositados. Com o devido respeito, D. Barroso não podia ter escolhido pior exemplo. Os "jovens" que o atrem estão-se seguramente nas tintas para a coisa pública e os lugares-comuns produzidos não ajudam. Todos os estudos, sociológicos, sondagens e outros, ultimamente publicados, são reveladores dos "interesses" dessa camada social que tanto entusiasma o chefe do Governo. Seja universitária, liceal ou outra, o certo é que a nossa juventude, com algumas honrosas excepções, não se recomenda a ninguém. Espreita-a um futuro razoavelmente negro no qual ela própria não se deverá distinguir. Ao apelar à "juventude" e ao seu "entusiasmo", e no actual "estado da arte", Durão Barroso só lhe pode querer estar a dizer, por entre os escombros e com um amável sorriso: "levanta-te e ri". Não há muito mais a esperar.
26.12.03
O DOUTOR JIVAGO
Boris Pasternak, o autor de O Doutor Jivago
Nas minhas divagações nocturnas pelos infinitos canais de televisão, a maior parte dos quais sem qualquer interesse, seja qual for o ponto do globo de onde emite, sucedeu-me ir parar a um que apenas passa cinema, sem legendas. Estava em emissão O Doutor Jivago, de David Lean. Lembro-me dos cartazes gigantescos que o anunciavam em reprises sucessivas, nos extintos Monumental e Império. Faziam então furor a música de fundo e o enlace amoroso pouco ortodoxo, protagonizado por Omar Sharif e Julie Christie, o Yuri e a Lara do livro de Boris Pasternak. Contudo, O Doutor Jivago é mais do que isso. É um trágico "fresco" acerca dos equívocos dolorosos sempre gerados nos grandes períodos de transição. Neste caso, entre o fim do período czarista e o triunfo da revolução bolchevique. O livro é muito duro na caracterização da "revolução" e da despersonalização que a acompanhou. Como diz um personagem a dada altura, a Revolução acabou com a ideia de vida pessoal. Pasternak pagou cara a sua ousadia literária no mundo de trevas instalado por Estaline. Quando se apercebeu da natureza desse mundo e esse mundo se deu conta da escrita "introspectiva"e da poesia de Pasternak, dedicou-se à tradução. Só em 1957 vem a escrever O Doutor Jivago que era claramente impublicável na Rússia estalinista. Conseguiu passar o manuscrito para Itália, à sucapa, e só quase 30 anos após a sua morte é que pôde ser editado na então URSS. Em 1958, Pasternak foi forçado pelo regime a renunciar ao Prémio Nobel da Literatura desse ano, que lhe tinha sido atribuído. No seu pathos, O Doutor Jivago permanece como um dos grandes "romances" do século XX, constituindo um olhar profundo, imaginativo e complexo sobre a realidade emergente da Revolução de Outubro, nas suas contradições e na repercussão destas nos seus principais protagonistas.
Boris Pasternak, o autor de O Doutor Jivago
Nas minhas divagações nocturnas pelos infinitos canais de televisão, a maior parte dos quais sem qualquer interesse, seja qual for o ponto do globo de onde emite, sucedeu-me ir parar a um que apenas passa cinema, sem legendas. Estava em emissão O Doutor Jivago, de David Lean. Lembro-me dos cartazes gigantescos que o anunciavam em reprises sucessivas, nos extintos Monumental e Império. Faziam então furor a música de fundo e o enlace amoroso pouco ortodoxo, protagonizado por Omar Sharif e Julie Christie, o Yuri e a Lara do livro de Boris Pasternak. Contudo, O Doutor Jivago é mais do que isso. É um trágico "fresco" acerca dos equívocos dolorosos sempre gerados nos grandes períodos de transição. Neste caso, entre o fim do período czarista e o triunfo da revolução bolchevique. O livro é muito duro na caracterização da "revolução" e da despersonalização que a acompanhou. Como diz um personagem a dada altura, a Revolução acabou com a ideia de vida pessoal. Pasternak pagou cara a sua ousadia literária no mundo de trevas instalado por Estaline. Quando se apercebeu da natureza desse mundo e esse mundo se deu conta da escrita "introspectiva"e da poesia de Pasternak, dedicou-se à tradução. Só em 1957 vem a escrever O Doutor Jivago que era claramente impublicável na Rússia estalinista. Conseguiu passar o manuscrito para Itália, à sucapa, e só quase 30 anos após a sua morte é que pôde ser editado na então URSS. Em 1958, Pasternak foi forçado pelo regime a renunciar ao Prémio Nobel da Literatura desse ano, que lhe tinha sido atribuído. No seu pathos, O Doutor Jivago permanece como um dos grandes "romances" do século XX, constituindo um olhar profundo, imaginativo e complexo sobre a realidade emergente da Revolução de Outubro, nas suas contradições e na repercussão destas nos seus principais protagonistas.
24.12.03
UM OUTRO NATAL...
...com DAVID MOURÃO-FERREIRA
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
...com ALBERTO CAEIRO
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
....COM MÁRIO CESARINY
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
....com AL BERTO
dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão
o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu
....com ALEXANDRE O'NEILL
Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.
Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»
não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,
recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão
a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,
que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:
- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação
(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção
de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,
até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...
...com DAVID MOURÃO-FERREIRA
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
...com ALBERTO CAEIRO
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
....COM MÁRIO CESARINY
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
....com AL BERTO
dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão
o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu
....com ALEXANDRE O'NEILL
Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.
Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»
não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,
recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão
a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,
que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:
- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação
(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção
de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,
até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...
23.12.03
DOIS LIVROS
De J.M. Coetzee, por acaso Prémio Nobel,
e, na realidade, um grande escritor contemporâneo que
detesta a mundanidade tagarela: Youth
De Martin Amis, a sua (prematura) autobiografia, uma escrita original, com alguma ironia e com figuras conhecidas pelo meio: Experience (há uma tradução na Teorema)
De J.M. Coetzee, por acaso Prémio Nobel,
e, na realidade, um grande escritor contemporâneo que
detesta a mundanidade tagarela: Youth
De Martin Amis, a sua (prematura) autobiografia, uma escrita original, com alguma ironia e com figuras conhecidas pelo meio: Experience (há uma tradução na Teorema)
22.12.03
A CULTURA DOS PEQUENITOS
Pelo rádio do carro, percebi que terminava a "Coimbra Capital da Cultura 2003". Vieram às ondas radiofónicas várias "personalidades" ligadas ao evento fazer o costumado balanço. O Sr. Presidente da Câmara exultava, de um lado, o comissário da dita Capital da Cultura exultava menos, por outro lado. Lamentava este fundamentalmente a gestão financeira da coisa, presume-se que por parte do Ministério de Pedro Roseta, que também falou. Do que me foi chegando desta Coimbra 2003, parece-me que o evento ficou dentro dos padrões da "mediania baixa" em vigor para o sector, sem se que saiba se e quando se vai seguir a "nova capital". Talvez por isso se tenha optado por levar a efeito a performance de encerramento no "Portugal dos Pequenitos" ,de Bissaia Barreto. De alguma maneira, ficou tudo em família. A benefício de inventário simples, este ano encerra-se, no sector da cultura, sob o signo do "muito pequenito". Um orçamento "pequenito", uma gestão caseirota e merceeira "pequenita" e uma visão global da coisa tão "pequenita", tão "pequenita" que nem completamente agachados conseguimos "entrar" nela. Para quem ainda se lembra, na Lisboa 94, o responsável pela "promoção" era o agora adjunto ministro, o Dr. Arnaut, que o Dr: Barroso quer que "ajude" a "promover" o Governo. De facto, este sector - a cultura-, como tantos outros, precisa decididamente de "crescer", sem fanfarronices nem temores "anti-intelectuais". Quando escrevemos "cultura", pensamos em qualquer coisa que tem a ver com a qualidade de vida de todos e de cada um de nós, e com a maioridade cívica da comunidade. Com a mentalidade "pequenita" e saloia não vamos rigorosamente a lado nenhum, podem ficar descansados. Uma "leitora identificada", como se diz na gíria, enviou-me um mail do qual retiro o seguinte excerto: concordo quase sempre com as suas opiniões, e lembro-me neste momento daquele em que referiu as diferenças entre as qualidades de Sá Carneiro e as de alguns de hoje!!..... Que distância.... E lembro-me também daquele em que refere Magalhães Godinho.... Sabe que, nesse dia, fui à Livraria Sá da Costa e disse à senhora que me atendeu que queria comprar os Ensaios de Magalhães Godinho. A senhora olhou para mim e perguntou: Quem é esse senhor? É português??
Perceberão, alguma vez, os responsáveis por esta "cultura de pequenitos", de que falamos quando falamos de cultura?
Perceberão, alguma vez, os responsáveis por esta "cultura de pequenitos", de que falamos quando falamos de cultura?
20.12.03
MILD UND LEISE...
Birgit Nilsson, seguramente a "grande" Isolde do século XX, e o texto do "Liebestod" ...
Mild und leise
wie er lächelt
wie das Auge
hold er öffnet ---
seht ihr's Freunde?
Seht ihr's nicht?
Immer lichter
wie er leuchtet,
stern-umstrahlet
hoch sich hebt?
Seht ihr's nicht?
Wie das Herz ihm
mutig schwillt,
voll und hehr
im Busen ihm quillt?
Wie den Lippen,
wonnig mild,
süßer Atem
sanft entweht ---
Freunde! Seht!
Fühlt und seht ihr's nicht?
Hör ich nur
diese Weise,
die so wunder-
voll und leise,
Wonne klagend,
alles sagend,
mild versöhnend
aus ihm tönend,
in mich dringet,
auf sich schwinget,
hold erhallend
um mich klinget?
Heller schallend,
mich umwallend,
sind es Wellen
sanfter Lüfte?
Sind es Wogen
wonniger Düfte?
Wie sie schwellen,
mich umrauschen,
soll ich atmen,
soll ich lauschen?
Soll ich schlürfen,
untertauchen?
Süß in Düften
mich verhauchen?
In dem wogenden Schwall,
in dem tönenden Schall,
in des Welt-Atems
wehendem All ---
ertrinken,
versinken ---
unbewußt ---
höchste Lust!
Birgit Nilsson, seguramente a "grande" Isolde do século XX, e o texto do "Liebestod" ...
Mild und leise
wie er lächelt
wie das Auge
hold er öffnet ---
seht ihr's Freunde?
Seht ihr's nicht?
Immer lichter
wie er leuchtet,
stern-umstrahlet
hoch sich hebt?
Seht ihr's nicht?
Wie das Herz ihm
mutig schwillt,
voll und hehr
im Busen ihm quillt?
Wie den Lippen,
wonnig mild,
süßer Atem
sanft entweht ---
Freunde! Seht!
Fühlt und seht ihr's nicht?
Hör ich nur
diese Weise,
die so wunder-
voll und leise,
Wonne klagend,
alles sagend,
mild versöhnend
aus ihm tönend,
in mich dringet,
auf sich schwinget,
hold erhallend
um mich klinget?
Heller schallend,
mich umwallend,
sind es Wellen
sanfter Lüfte?
Sind es Wogen
wonniger Düfte?
Wie sie schwellen,
mich umrauschen,
soll ich atmen,
soll ich lauschen?
Soll ich schlürfen,
untertauchen?
Süß in Düften
mich verhauchen?
In dem wogenden Schwall,
in dem tönenden Schall,
in des Welt-Atems
wehendem All ---
ertrinken,
versinken ---
unbewußt ---
höchste Lust!
19.12.03
UM CASAMENTO E VÁRIOS FUNERAIS
José Eduardo dos Santos, o eterno presidente de Angola, casa uma filha. Tal evento não teria importância nenhuma se não tivesse foros de acontecimento político e social que acaba por nos tocar. Acontece que o referido presidente convidou o Dr. Durão Barroso de quem, pelos vistos, é amigo e este aceitou. Angola é seguramente um dos casos de maior vergonha da era pós-colonial. Milhares de autócnes mortos, ora pela guerra, ora pela fome, milhares de crianças amputadas pelas minas escondidas, contrastam, a escuro, com o fausto de que normalmente a nomenclatura de dos Santos se faz acompanhar e que não deixará de estar presente no tal casamento. É neste contexto paradoxal, e que Barroso tão bem conhece, que se desloca à Angola top line, um país-outro, distante da miséria que se vive na maioria das casas e na rua. Entre outros convidados, segue uma amiga da filha de Eduardo dos Santos, a cintilante Cinha Jardim, o que propiciará capas e capas de revistas para ler nos cabeleireiros de Lisboa. É coisa que também não tem relevância nenhuma, mas a que esta crónica deu alguma importância. Vale a pena lê-la e colocá-la no portfolio do mais inevitável "candidato a candidato" a presidente da República. Ajuda a definir os contornos mais marcantes do seu "perfil" e, para quem estiver para aí virado, avaliar dos "atributos" que possui para almejar a chefia do Estado. Sim, porque é disso que falamos quando dele falamos, convém nunca esquecer. Finalmente, no último debate do ano no Parlamento, com a presença do convidado de Eduardo dos Santos e nosso Primeiro Ministro, falou-se da Europa e do aborto. No meio de alguns lugares-comuns e de muita hipocrisia verbal e política, registei o tom alarve com que o Sr. Telmo Correia, lider parlamentar do pequeno PP, se referiu a Mário Soares, o que chegou a merecer um reparo de Mota Amaral. É desta rapaziada vulgar, sem biografia e que se julga patroa disto tudo, que é feita a maioria que tanto alegra D. Barroso, um convidado muito especial de um casamento, e não só.
José Eduardo dos Santos, o eterno presidente de Angola, casa uma filha. Tal evento não teria importância nenhuma se não tivesse foros de acontecimento político e social que acaba por nos tocar. Acontece que o referido presidente convidou o Dr. Durão Barroso de quem, pelos vistos, é amigo e este aceitou. Angola é seguramente um dos casos de maior vergonha da era pós-colonial. Milhares de autócnes mortos, ora pela guerra, ora pela fome, milhares de crianças amputadas pelas minas escondidas, contrastam, a escuro, com o fausto de que normalmente a nomenclatura de dos Santos se faz acompanhar e que não deixará de estar presente no tal casamento. É neste contexto paradoxal, e que Barroso tão bem conhece, que se desloca à Angola top line, um país-outro, distante da miséria que se vive na maioria das casas e na rua. Entre outros convidados, segue uma amiga da filha de Eduardo dos Santos, a cintilante Cinha Jardim, o que propiciará capas e capas de revistas para ler nos cabeleireiros de Lisboa. É coisa que também não tem relevância nenhuma, mas a que esta crónica deu alguma importância. Vale a pena lê-la e colocá-la no portfolio do mais inevitável "candidato a candidato" a presidente da República. Ajuda a definir os contornos mais marcantes do seu "perfil" e, para quem estiver para aí virado, avaliar dos "atributos" que possui para almejar a chefia do Estado. Sim, porque é disso que falamos quando dele falamos, convém nunca esquecer. Finalmente, no último debate do ano no Parlamento, com a presença do convidado de Eduardo dos Santos e nosso Primeiro Ministro, falou-se da Europa e do aborto. No meio de alguns lugares-comuns e de muita hipocrisia verbal e política, registei o tom alarve com que o Sr. Telmo Correia, lider parlamentar do pequeno PP, se referiu a Mário Soares, o que chegou a merecer um reparo de Mota Amaral. É desta rapaziada vulgar, sem biografia e que se julga patroa disto tudo, que é feita a maioria que tanto alegra D. Barroso, um convidado muito especial de um casamento, e não só.
18.12.03
ANTES ASNO QUE ME LEVE QUE CAVALO QUE ME DERRUBE....
....é a minha descoberta da semana e está aqui como prova de que o animal não é tão "burro" como se julga.
....é a minha descoberta da semana e está aqui como prova de que o animal não é tão "burro" como se julga.
17.12.03
O LADO NEGRO DA FORÇA
Eu (ainda) sou militante do PSD. Quando me juntei à seita, em 1983, fi-lo por acreditar que se tratava do partido que, sem desdenhar o património da social-democracia ou do socialismo democrático europeu, mais se adaptava a esta coisa complexa que consiste em ser português e viver em Portugal. Por outro lado, era a única força política susceptível de "alternar", no Governo, com o PS, pese a circunstância de, nessa altura, estar aliado com ele. Mandava nele, e pouco, o saudoso Prof. Mota Pinto que era manifestamente um homem bom. Seguiu-se a "era de ouro" com Cavaco que, passados dez anos, se fartou, particularmente quando percebeu o que se tinha instalado por aí às expensas do seu nome e da sua maioria. Houve o "interregno socialista", e há quase dois anos, o PSD, partido fisiologicamente de poder, como dizia o Victor Cunha Rego, voltou para lá. Em vez de ir sozinho, decidiu somar votos no Parlamento com o pequeno Partido Popular, que agraciou com uns cargos no Executivo e no aparelho do Estado. Como bem tem vindo a recordar o Dr. Ferro Rodrigues, penso que a maior parte das pessoas que votaram no PSD, não o fizeram para ter o Dr. Portas como Ministro de Estado e da Defesa ou a Dra. Cardona como Ministra da Justiça. E muito menos para ter uns imberbes acéfalos nas sinecuras disponíveis. De vez em quando o Dr. Barroso tem de pagar umas facturas que os garbosos rapazes do PP lhe apresentam. É o preço do "transporte às cavalitas" do "pequeno partido à nossa direita", nas palavras generosas do mesmo Dr. Barroso. O que se passou nestes dias com a questão da interrupção voluntária da gravidez, é um belo exemplo do que quero afirmar e contestar: a lamentável dependência da maior riqueza do PSD, a liberdade de consciência dos seus militantes, das posições do tal pequeno partido à sua direita. Bastou uma leve ameaça do guru do Dr. Portas para que, com ar constrangido e envergonhado, o Dr. Guilherme Silva viesse imediatamente "dar a mão à palmatória", sob o olhar conformado de Leonor Beleza. Durão Barroso confia nesta coligação como uma "força". E parece ter medo de que esta lhe falte, ao consentir em coisas deste género. Significa que quem manda é o "lado negro da força", uma história já vista e que não vai acabar bem.
Eu (ainda) sou militante do PSD. Quando me juntei à seita, em 1983, fi-lo por acreditar que se tratava do partido que, sem desdenhar o património da social-democracia ou do socialismo democrático europeu, mais se adaptava a esta coisa complexa que consiste em ser português e viver em Portugal. Por outro lado, era a única força política susceptível de "alternar", no Governo, com o PS, pese a circunstância de, nessa altura, estar aliado com ele. Mandava nele, e pouco, o saudoso Prof. Mota Pinto que era manifestamente um homem bom. Seguiu-se a "era de ouro" com Cavaco que, passados dez anos, se fartou, particularmente quando percebeu o que se tinha instalado por aí às expensas do seu nome e da sua maioria. Houve o "interregno socialista", e há quase dois anos, o PSD, partido fisiologicamente de poder, como dizia o Victor Cunha Rego, voltou para lá. Em vez de ir sozinho, decidiu somar votos no Parlamento com o pequeno Partido Popular, que agraciou com uns cargos no Executivo e no aparelho do Estado. Como bem tem vindo a recordar o Dr. Ferro Rodrigues, penso que a maior parte das pessoas que votaram no PSD, não o fizeram para ter o Dr. Portas como Ministro de Estado e da Defesa ou a Dra. Cardona como Ministra da Justiça. E muito menos para ter uns imberbes acéfalos nas sinecuras disponíveis. De vez em quando o Dr. Barroso tem de pagar umas facturas que os garbosos rapazes do PP lhe apresentam. É o preço do "transporte às cavalitas" do "pequeno partido à nossa direita", nas palavras generosas do mesmo Dr. Barroso. O que se passou nestes dias com a questão da interrupção voluntária da gravidez, é um belo exemplo do que quero afirmar e contestar: a lamentável dependência da maior riqueza do PSD, a liberdade de consciência dos seus militantes, das posições do tal pequeno partido à sua direita. Bastou uma leve ameaça do guru do Dr. Portas para que, com ar constrangido e envergonhado, o Dr. Guilherme Silva viesse imediatamente "dar a mão à palmatória", sob o olhar conformado de Leonor Beleza. Durão Barroso confia nesta coligação como uma "força". E parece ter medo de que esta lhe falte, ao consentir em coisas deste género. Significa que quem manda é o "lado negro da força", uma história já vista e que não vai acabar bem.
15.12.03
VITORINO MAGALHÃES GODINHO OU A GRANDEZA DA HISTÓRIA
Sem nunca me ter cruzado com ele, eu sinto que devo muita da minha formação ao Professor Vitorino Magalhães Godinho. Felizmente pertenço a uma geração que ainda usufruiu do privilégio de ter aprendido, na primária e no liceu, com "grandes educadores". Através das aulas desses homens e dessas mulheres, verdadeiramente vocacionados para "ensinar" e que não se resignavam ao ofício como mera alternativa em mercado de emprego escasso, chegávamos a outros "educadores", cujos textos nos eram recomendados. Foi assim que descobri as "entradas", no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, de criaturas tão complexas e fascinantes como António José Saraiva, Jorge Borges de Macedo ( que veio a ser meu professor na Universidade) ou Vitorino Magalhães Godinho. Os seus livros de Ensaios ( Ed. Sá da Costa) e um pequeno e tão actual texto, reeditado depois do 25 de Abril pela Arcádia, A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, continuam a constituir, para mim, referências insubstituíveis. Foi, pois, com alegria que "reencontrei" Magalhães Godinho, em forma, nos seus 85 anos, na notícia de uma homenagem em Paris. Os tempos de "fabricação" de homens destes, acabaram. Aliás, é bem provável que o seu nome nada diga às hodiernas gerações universitárias, quase todas analfabetas funcionais e sem memória. Na entrevista que deu ao Carlos Câmara Leme, no Público, Magalhães Godinho diz esta coisa notável: "acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está". Contrariamente a tanto palonço ignorante que para aí há a falar do "futuro", sabe bem meditar na palavra dos historiadores, essa espécie silenciosa e nobre que procura "perceber". Se fossem mais lidos e escutados, talvez alguns dos desastres do nosso tempo pudessem ter sido evitados. Segue a entrevista.
"Hoje Não Existe Democracia"
Por Carlos Câmara Leme
Aos 85 anos, Vitorino Magalhães Godinho é um homem céptico. Triste com o que vê à sua volta, não encontra uma réstea de esperança na humanidade. O historiador, entrevistado em Paris - onde na semana passada decorreu o colóquio internacional "O Portugal e o Mundo. Leituras da Obra de Vitorino Magalhães Godinho"-, pensa que a humanidade perdeu a grandeza do século XX. À luz das teses de Guy Debord sobre a sociedade do espectáculo, Magalhães Godinho - cujo próximo livro, a editar nos primeiros meses de 2004, terá como título "Portugal, a Emergência de uma Nação" - pensa que, na Europa, "há uma super-estrutura que não influi, no fundo, a sociedade. Não a regula, nem a orienta". Mais, os políticos, chefes de Estado e primeiros-ministros não "representam nada". E Portugal? Em certos casos, não estamos melhor do que antes do 25 de Abril, e hoje, diz, "não existe democracia."
PÚBLICO - Nas intervenções que fez durante o colóquio, reivindicou o seu estatuto de intelectual do século XX. Pensa mesmo que temos de recuperar grandes noções do século passado, já que, como afirmou, o século XXI é mórbido e tem o fascínio da morte? O século XX criou e fomentou algumas das maiores barbáries - duas guerras mundiais, o nazismo, o estalinismo - da história da humanidade.
Vitorino Magalhães Godinho - Há duas ou mais faces do século XX. No meio desses horrores que mencionou, que realmente fizeram milhões de mortos, encontra-se ainda um espírito de cavalaria que não se encontra hoje. Nos nossos dias, a morte é cirúrgica e é feita pelos estados com os bombardeamentos cirúrgicos. Mas, na própria sociedade, a actividade dos grupos terroristas - que não é uma luta de carácter político, como foi no princípio do século XX, com os anarco-sindicalistas - não tem finalidade, a não ser demolir, matar, estropiar. Arriscamo-nos, em breve, a ter mais mortos com a sida do que houve nessas guerras. Nessas guerras estavam em jogo interesses, sem dúvida. Mas, apesar de tudo, havia a consciência de ideais por que se lutava. Muitos desses homens do século XX lutavam por uma democracia e por uma humanidade nova. Havia um grande de espírito de luta por um ideal...
Um nazi também tinha um ideal. E conhecemos os resultados: a exterminação do povo judeu.
Sem dúvida. Sempre que se fala de um ideal, há sempre uma certa ambiguidade. Quando me refiro a um ideal, estou a falar de um conjunto de valores de raiz humanista, que se iniciou no século XIX - basta pensarmos no que representa, ainda hoje, essa obra extraordinária que é "Os Miseráveis", de Victor Hugo.
São os ideias humanistas dos século XIX que reivindica para o século que acabou de nascer?
Não, porque houve uma mutação brusca da sociedade, com a revolução informática, com as novas tecnologias, com a dispensa de trabalho de massas. Hoje, o capitalismo, ou melhor, aqueles que detêm o poder económico, não necessitam de operariado; podem dispensá-lo. O operariado continua a fazer as lutas que faziam sentido no século XX. O sindicalismo, hoje, é um anacronismo.
Como historiador, imaginou alguma vez essa mutação tão rápida e tão complexa da sociedade contemporânea?
Não. Todos fomos apanhados de surpresa.
Qual foi o acontecimento, ou a rede de acontecimentos, que permitiu essa alteração? Eric Hobsman fala, em "A Era dos Extremos", da queda do Muro de Berlim.
O ruir do Império Soviético foi também a ruína do Ocidente, que permitiu a formação de um novo império - o império americano -, sem controlo e em moldes ultrapassados: continua a ser proibido estudar Darwin nas escolas, há perseguições às clínicas que praticam o aborto, há ataques à mão armada... Há meios de matar - a partir da transformação introduzida pela informática - que estão ao alcance de qualquer pessoa. Foi tudo tão rápido, deu-se um vazio e uma incapacidade de organização para resistir, para orientar essa mutação para outros sentidos. Perderam-se as balizas. A humanidade perdeu o controlo. Inclusive, as estruturas económicas mudaram por completo. O capitalismo ruiu, como ruiu o estalinismo. Não há mais capitalismo. O que há é uma organização de redes mafiosas que controlam o mundo.
Acredita mesmo que o mundo, à escala planetária, é controlado por uma rede de mafias?
Não estou a falar de mafia no sentido pejorativo. Nenhuma sociedade é uniforme. Mesmo a sociedade capitalista não tinha só empresas capitalistas - havia o artesanto, o campesinato. Agora, a população camponesa desapareceu. Em vários países, a agricultura desapareceu, ou está em vias de desaparecer.
Como é que vê a construção europeia? Não acha que, apesar de tudo, o acto de 25 chefes de Estado e primeiros-ministros europeus terem-se reunido este fim-de-semana em Bruxelas é um sinal de vitalidade da Europa?
Não, de maneira nenhuma. É uma prova de que, em relação a uma sociedade descontrolada e ameaçada quer pela doença quer pela possibilidade de violência gratuita, há uma super-estrutura que não influi, no fundo, na sociedade. Não a regula nem a orienta. É uma super-estrutura que se legitima por uma pseudo-ressurreição de uma pseudo-ideologia do século XIX, o liberalismo. Mas que não tem nada que ver com o liberalismo, que representa uma peça de teatro. Estamos na pura sociedade de espectáculo, formulada por Guy Debord, justamente na obra "A Sociedade de Espectáculo".
Não o via assim tanto de acordo com as teses de Guy Debord.
Logo que o livro saiu, li-o, e tinha encontrado um paralelo no século XVII, onde era muito frequente falar da sociedade e do mundo como um teatro. Como vê, não fiquei surpreendido com o livro de Guy Debord. Ele veio ao encontro dos caminhos que estavam suspeitados. Porque, na verdade, os chefes de Estado não representam nada...
Nada? Mas eles são eleitos democraticamente.
O que não quer dizer nada, porque, hoje, as eleições não são nada. Não há diferenças partidárias. Há lutas mesquinhas, os partidos estão completamente desfasados da realidade. Veja-se a França...
... e em Portugal, também pensa assim?
A minha opinião é a de que, hoje, não existe democracia. O grande erro é partir-se do princípio que se construiu uma democracia, quando não se chegou a construir uma democracia...
Mas os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão garantidos, não estão?
Nada está garantido? Não estamos melhor do que antes do 25 de Abril?
Em certos casos, menos!
Portugal não tem presos políticos.
Não sei, não sei... Há países onde não é necessário ter as pessoas presas para as ter na mão. Veja o que se passa em Guantanamo.
Qual será, na sua opinião, o papel da História no século XXI?
A história será o instrumento fundamental para uma tomada de consciência capaz de reflectir sobre a realidade e de detectar os verdadeiros problemas que se põem aos homens. E é isso que não acontece.
Não vê, portanto, uma ponta de esperança em lado nenhum?
Por enquanto, não. Acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está
Sem nunca me ter cruzado com ele, eu sinto que devo muita da minha formação ao Professor Vitorino Magalhães Godinho. Felizmente pertenço a uma geração que ainda usufruiu do privilégio de ter aprendido, na primária e no liceu, com "grandes educadores". Através das aulas desses homens e dessas mulheres, verdadeiramente vocacionados para "ensinar" e que não se resignavam ao ofício como mera alternativa em mercado de emprego escasso, chegávamos a outros "educadores", cujos textos nos eram recomendados. Foi assim que descobri as "entradas", no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, de criaturas tão complexas e fascinantes como António José Saraiva, Jorge Borges de Macedo ( que veio a ser meu professor na Universidade) ou Vitorino Magalhães Godinho. Os seus livros de Ensaios ( Ed. Sá da Costa) e um pequeno e tão actual texto, reeditado depois do 25 de Abril pela Arcádia, A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, continuam a constituir, para mim, referências insubstituíveis. Foi, pois, com alegria que "reencontrei" Magalhães Godinho, em forma, nos seus 85 anos, na notícia de uma homenagem em Paris. Os tempos de "fabricação" de homens destes, acabaram. Aliás, é bem provável que o seu nome nada diga às hodiernas gerações universitárias, quase todas analfabetas funcionais e sem memória. Na entrevista que deu ao Carlos Câmara Leme, no Público, Magalhães Godinho diz esta coisa notável: "acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está". Contrariamente a tanto palonço ignorante que para aí há a falar do "futuro", sabe bem meditar na palavra dos historiadores, essa espécie silenciosa e nobre que procura "perceber". Se fossem mais lidos e escutados, talvez alguns dos desastres do nosso tempo pudessem ter sido evitados. Segue a entrevista.
"Hoje Não Existe Democracia"
Por Carlos Câmara Leme
Aos 85 anos, Vitorino Magalhães Godinho é um homem céptico. Triste com o que vê à sua volta, não encontra uma réstea de esperança na humanidade. O historiador, entrevistado em Paris - onde na semana passada decorreu o colóquio internacional "O Portugal e o Mundo. Leituras da Obra de Vitorino Magalhães Godinho"-, pensa que a humanidade perdeu a grandeza do século XX. À luz das teses de Guy Debord sobre a sociedade do espectáculo, Magalhães Godinho - cujo próximo livro, a editar nos primeiros meses de 2004, terá como título "Portugal, a Emergência de uma Nação" - pensa que, na Europa, "há uma super-estrutura que não influi, no fundo, a sociedade. Não a regula, nem a orienta". Mais, os políticos, chefes de Estado e primeiros-ministros não "representam nada". E Portugal? Em certos casos, não estamos melhor do que antes do 25 de Abril, e hoje, diz, "não existe democracia."
PÚBLICO - Nas intervenções que fez durante o colóquio, reivindicou o seu estatuto de intelectual do século XX. Pensa mesmo que temos de recuperar grandes noções do século passado, já que, como afirmou, o século XXI é mórbido e tem o fascínio da morte? O século XX criou e fomentou algumas das maiores barbáries - duas guerras mundiais, o nazismo, o estalinismo - da história da humanidade.
Vitorino Magalhães Godinho - Há duas ou mais faces do século XX. No meio desses horrores que mencionou, que realmente fizeram milhões de mortos, encontra-se ainda um espírito de cavalaria que não se encontra hoje. Nos nossos dias, a morte é cirúrgica e é feita pelos estados com os bombardeamentos cirúrgicos. Mas, na própria sociedade, a actividade dos grupos terroristas - que não é uma luta de carácter político, como foi no princípio do século XX, com os anarco-sindicalistas - não tem finalidade, a não ser demolir, matar, estropiar. Arriscamo-nos, em breve, a ter mais mortos com a sida do que houve nessas guerras. Nessas guerras estavam em jogo interesses, sem dúvida. Mas, apesar de tudo, havia a consciência de ideais por que se lutava. Muitos desses homens do século XX lutavam por uma democracia e por uma humanidade nova. Havia um grande de espírito de luta por um ideal...
Um nazi também tinha um ideal. E conhecemos os resultados: a exterminação do povo judeu.
Sem dúvida. Sempre que se fala de um ideal, há sempre uma certa ambiguidade. Quando me refiro a um ideal, estou a falar de um conjunto de valores de raiz humanista, que se iniciou no século XIX - basta pensarmos no que representa, ainda hoje, essa obra extraordinária que é "Os Miseráveis", de Victor Hugo.
São os ideias humanistas dos século XIX que reivindica para o século que acabou de nascer?
Não, porque houve uma mutação brusca da sociedade, com a revolução informática, com as novas tecnologias, com a dispensa de trabalho de massas. Hoje, o capitalismo, ou melhor, aqueles que detêm o poder económico, não necessitam de operariado; podem dispensá-lo. O operariado continua a fazer as lutas que faziam sentido no século XX. O sindicalismo, hoje, é um anacronismo.
Como historiador, imaginou alguma vez essa mutação tão rápida e tão complexa da sociedade contemporânea?
Não. Todos fomos apanhados de surpresa.
Qual foi o acontecimento, ou a rede de acontecimentos, que permitiu essa alteração? Eric Hobsman fala, em "A Era dos Extremos", da queda do Muro de Berlim.
O ruir do Império Soviético foi também a ruína do Ocidente, que permitiu a formação de um novo império - o império americano -, sem controlo e em moldes ultrapassados: continua a ser proibido estudar Darwin nas escolas, há perseguições às clínicas que praticam o aborto, há ataques à mão armada... Há meios de matar - a partir da transformação introduzida pela informática - que estão ao alcance de qualquer pessoa. Foi tudo tão rápido, deu-se um vazio e uma incapacidade de organização para resistir, para orientar essa mutação para outros sentidos. Perderam-se as balizas. A humanidade perdeu o controlo. Inclusive, as estruturas económicas mudaram por completo. O capitalismo ruiu, como ruiu o estalinismo. Não há mais capitalismo. O que há é uma organização de redes mafiosas que controlam o mundo.
Acredita mesmo que o mundo, à escala planetária, é controlado por uma rede de mafias?
Não estou a falar de mafia no sentido pejorativo. Nenhuma sociedade é uniforme. Mesmo a sociedade capitalista não tinha só empresas capitalistas - havia o artesanto, o campesinato. Agora, a população camponesa desapareceu. Em vários países, a agricultura desapareceu, ou está em vias de desaparecer.
Como é que vê a construção europeia? Não acha que, apesar de tudo, o acto de 25 chefes de Estado e primeiros-ministros europeus terem-se reunido este fim-de-semana em Bruxelas é um sinal de vitalidade da Europa?
Não, de maneira nenhuma. É uma prova de que, em relação a uma sociedade descontrolada e ameaçada quer pela doença quer pela possibilidade de violência gratuita, há uma super-estrutura que não influi, no fundo, na sociedade. Não a regula nem a orienta. É uma super-estrutura que se legitima por uma pseudo-ressurreição de uma pseudo-ideologia do século XIX, o liberalismo. Mas que não tem nada que ver com o liberalismo, que representa uma peça de teatro. Estamos na pura sociedade de espectáculo, formulada por Guy Debord, justamente na obra "A Sociedade de Espectáculo".
Não o via assim tanto de acordo com as teses de Guy Debord.
Logo que o livro saiu, li-o, e tinha encontrado um paralelo no século XVII, onde era muito frequente falar da sociedade e do mundo como um teatro. Como vê, não fiquei surpreendido com o livro de Guy Debord. Ele veio ao encontro dos caminhos que estavam suspeitados. Porque, na verdade, os chefes de Estado não representam nada...
Nada? Mas eles são eleitos democraticamente.
O que não quer dizer nada, porque, hoje, as eleições não são nada. Não há diferenças partidárias. Há lutas mesquinhas, os partidos estão completamente desfasados da realidade. Veja-se a França...
... e em Portugal, também pensa assim?
A minha opinião é a de que, hoje, não existe democracia. O grande erro é partir-se do princípio que se construiu uma democracia, quando não se chegou a construir uma democracia...
Mas os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão garantidos, não estão?
Nada está garantido? Não estamos melhor do que antes do 25 de Abril?
Em certos casos, menos!
Portugal não tem presos políticos.
Não sei, não sei... Há países onde não é necessário ter as pessoas presas para as ter na mão. Veja o que se passa em Guantanamo.
Qual será, na sua opinião, o papel da História no século XXI?
A história será o instrumento fundamental para uma tomada de consciência capaz de reflectir sobre a realidade e de detectar os verdadeiros problemas que se põem aos homens. E é isso que não acontece.
Não vê, portanto, uma ponta de esperança em lado nenhum?
Por enquanto, não. Acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está
14.12.03
BOAS FESTAS...
A ENTREVISTA DO BISPO DO PORTO ao Expresso de ontem é duplamente interessante. Por um lado, retira algum do pensamento da Igreja da letargia face aos desenvolvimentos sociais e culturais dos tempos que correm, fazendo-a "descer à Terra" em matérias que parecem sempre tabu. Por outro, ao pronunciar-se sobre homens públicos como Cavaco e Guterres, da forma como o faz, revela uma sensibilidade política adequada ao médio prazo. Ainda bem que há um "dignatário" nosso - há mais...- que enxerga para além do Deus recorrente de Santana Lopes. Tudo nele, convém lembrar, ou é "por vontade de Deus", ou é "se Deus quiser". A seu tempo, com ou sem esta curiosa recorrência verbal, outros Cristos descerão à Terra...
Cavaco Silva...
...ou António Guterres ?
A POSIÇÂO DE FERRO RODRIGUES no "não-caso" Lusíada foi a correcta. Depois de ouvidas as explicações de Morais Sarmento, que começaram mal, o lider da oposição considerou o assunto encerrado, politicamente falando. É natural que haja ainda alguma escaramuça à volta da peripécia, porém julgo ser mais proveitoso prestar atenção ao que se vai passando na educação, no ensino superior, na saúde ou na justiça, em que várias montanhas ameaçam parir apenas ratos.
...a tentar acertar o passo
O TRISTÃO E ISOLDA que foi dado a ouvir na Culturgest, em três "fatias", saldou-se por um excelente espectáculo. Só pude assistir ao III Acto. Apesar de não ser especialista, considero notáveis as prestações dos cantores, e a Orquestra Sinfónica Portuguesa esteve bem e, desta vez, muito razoavelmente dirigida pelo seu director musical. Assistiram igualmente Pedro Roseta e o assessor cultural do Primeiro Ministro, e eventualmente um ou outro dirigente anónimo e anódino da actual nomenclatura do MC. Nem sabia que gostavam de Wagner. Se calhar, eles também não. O único que percebia da coisa era Paolo Pinamonti, o director artístico do Teatro de São Carlos. E estava claramente de parabéns. Quanto ao resto, Manuel Maria Carrilho diz o suficiente nas suas Contingências do Expresso, acerca do "verdadeiro défice" de que falei uns posts atrás.
Herbert von Karajan, de quem se recomenda a versão em CD do Tristan und Isolde, com Jon Vickers, Helga Dernesch, Christa Ludwig e Walter Berry, à frente da Berliner Philarmoniker
E MÁS FESTAS....
A CIMEIRA DE BRUXELAS não aprovou a "constituição europeia". Já se fala, de novo, numa Europa a "duas velocidades". Não se tratou de nenhuma tragédia, mas é interessante acompanhar o papel que a Polónia (um País com uma curisissima história que alguns desconhecem) está a começar a desempenhar no seio da União Europeia. Nós contamos pouco e D. Barroso satisfez-se com uma Agência qualquer que vem para cá. Voltou a dizer, sem o dizer, que não quer referendo, uma vez que insiste na data impossível das eleições europeias. Convém-lhe - a ele e a nós - estar atento às tais "velocidades" que se desenham e recolocar-se no famoso "pelotão da frente" onde, numa outra encarnação, Cavaco nos pôs.
À espera de melhores dias...
A FALTA DE COMUNICAÇÃO da bondade das medidas do Governo preocupa o "núcleo político" da dita agremiação. O "núcleo" parte do princípio de que as "medidas" são boas, só que o Governo não as consegue explicar à população. Moral da história: o Governo não precisa de "boas medidas", precisa antes de bons comunicadores. Basta dar uma voltinha pelos principais ministérios para se entender a frivolidade do exercício. Nem sempre as medidas são boas, e quase sempre os "comunicadores" são invariavelmente péssimos. Santana Lopes, notável na sua intuição política, já o percebeu e, pelo sim, pelo não, "comunica" ele sozinho e fora do Governo. Praticamente só sobra Marques Mendes, parece que invejado por esses portentos políticos que são Sarmento e Arnaut. Quem?
A ENTREVISTA DO BISPO DO PORTO ao Expresso de ontem é duplamente interessante. Por um lado, retira algum do pensamento da Igreja da letargia face aos desenvolvimentos sociais e culturais dos tempos que correm, fazendo-a "descer à Terra" em matérias que parecem sempre tabu. Por outro, ao pronunciar-se sobre homens públicos como Cavaco e Guterres, da forma como o faz, revela uma sensibilidade política adequada ao médio prazo. Ainda bem que há um "dignatário" nosso - há mais...- que enxerga para além do Deus recorrente de Santana Lopes. Tudo nele, convém lembrar, ou é "por vontade de Deus", ou é "se Deus quiser". A seu tempo, com ou sem esta curiosa recorrência verbal, outros Cristos descerão à Terra...
Cavaco Silva...
...ou António Guterres ?
A POSIÇÂO DE FERRO RODRIGUES no "não-caso" Lusíada foi a correcta. Depois de ouvidas as explicações de Morais Sarmento, que começaram mal, o lider da oposição considerou o assunto encerrado, politicamente falando. É natural que haja ainda alguma escaramuça à volta da peripécia, porém julgo ser mais proveitoso prestar atenção ao que se vai passando na educação, no ensino superior, na saúde ou na justiça, em que várias montanhas ameaçam parir apenas ratos.
...a tentar acertar o passo
O TRISTÃO E ISOLDA que foi dado a ouvir na Culturgest, em três "fatias", saldou-se por um excelente espectáculo. Só pude assistir ao III Acto. Apesar de não ser especialista, considero notáveis as prestações dos cantores, e a Orquestra Sinfónica Portuguesa esteve bem e, desta vez, muito razoavelmente dirigida pelo seu director musical. Assistiram igualmente Pedro Roseta e o assessor cultural do Primeiro Ministro, e eventualmente um ou outro dirigente anónimo e anódino da actual nomenclatura do MC. Nem sabia que gostavam de Wagner. Se calhar, eles também não. O único que percebia da coisa era Paolo Pinamonti, o director artístico do Teatro de São Carlos. E estava claramente de parabéns. Quanto ao resto, Manuel Maria Carrilho diz o suficiente nas suas Contingências do Expresso, acerca do "verdadeiro défice" de que falei uns posts atrás.
Herbert von Karajan, de quem se recomenda a versão em CD do Tristan und Isolde, com Jon Vickers, Helga Dernesch, Christa Ludwig e Walter Berry, à frente da Berliner Philarmoniker
E MÁS FESTAS....
A CIMEIRA DE BRUXELAS não aprovou a "constituição europeia". Já se fala, de novo, numa Europa a "duas velocidades". Não se tratou de nenhuma tragédia, mas é interessante acompanhar o papel que a Polónia (um País com uma curisissima história que alguns desconhecem) está a começar a desempenhar no seio da União Europeia. Nós contamos pouco e D. Barroso satisfez-se com uma Agência qualquer que vem para cá. Voltou a dizer, sem o dizer, que não quer referendo, uma vez que insiste na data impossível das eleições europeias. Convém-lhe - a ele e a nós - estar atento às tais "velocidades" que se desenham e recolocar-se no famoso "pelotão da frente" onde, numa outra encarnação, Cavaco nos pôs.
À espera de melhores dias...
A FALTA DE COMUNICAÇÃO da bondade das medidas do Governo preocupa o "núcleo político" da dita agremiação. O "núcleo" parte do princípio de que as "medidas" são boas, só que o Governo não as consegue explicar à população. Moral da história: o Governo não precisa de "boas medidas", precisa antes de bons comunicadores. Basta dar uma voltinha pelos principais ministérios para se entender a frivolidade do exercício. Nem sempre as medidas são boas, e quase sempre os "comunicadores" são invariavelmente péssimos. Santana Lopes, notável na sua intuição política, já o percebeu e, pelo sim, pelo não, "comunica" ele sozinho e fora do Governo. Praticamente só sobra Marques Mendes, parece que invejado por esses portentos políticos que são Sarmento e Arnaut. Quem?
AS BOAS E AS MÁS FESTAS
Vive-se a época natalícia. Momento mais pagão do que este não conheço, apesar de estar instituído para celebrar o nascimento de Cristo. O "natal" culmina um longo processo de idiotização anual das vidas da generalidade das pessoas. Os adultos infantilizam-se para agradar às criancinhas, e estas, em público e em privado, dão largas à sua vivacidade barulhenta e naturalmente infantil, terminando tudo na harmonia "familiar" que não dura mais do que as 48 horas da praxe. Cada prenda comprada é mais uma marretada dada nos pregos que ergueram Cristo na cruz final e sinónimo de um consumismo insane e despropositado, olhando ao "afundamento geral em curso". À parte comercial da coisa, costuma juntar-se a troca de sonsos desejos de boas festas e de feliz ano novo entre um rol de gente que mal se conhece ou que até nem se estima. Eu não alinho nesta ladaínha hipócrita e prefiro manter os meus "ódios" e "amores" intactos, sem intervalos para comer sonhos e bolo-rei.
Vive-se a época natalícia. Momento mais pagão do que este não conheço, apesar de estar instituído para celebrar o nascimento de Cristo. O "natal" culmina um longo processo de idiotização anual das vidas da generalidade das pessoas. Os adultos infantilizam-se para agradar às criancinhas, e estas, em público e em privado, dão largas à sua vivacidade barulhenta e naturalmente infantil, terminando tudo na harmonia "familiar" que não dura mais do que as 48 horas da praxe. Cada prenda comprada é mais uma marretada dada nos pregos que ergueram Cristo na cruz final e sinónimo de um consumismo insane e despropositado, olhando ao "afundamento geral em curso". À parte comercial da coisa, costuma juntar-se a troca de sonsos desejos de boas festas e de feliz ano novo entre um rol de gente que mal se conhece ou que até nem se estima. Eu não alinho nesta ladaínha hipócrita e prefiro manter os meus "ódios" e "amores" intactos, sem intervalos para comer sonhos e bolo-rei.
12.12.03
OS DONOS
O JPP já se referiu a isto outro dia. Decorre, entre o Dr. Portas e o Dr. M. Soares, uma espécie de "jogos florais" , cujo argumento se alimentou basicamente da forma como o primeiro tratou a esposa do segundo, na história da Cruz Vermelha. Na altura, aqui o escrevi, considerei - como continuo a considerar- totalmente ignóbil a forma como o lider do PP resolveu o assunto. Faz parte do estilo nouveau riche político tão em voga e tão "giro", que se distingue pela enorme delicadeza com que alguns dos actuais encavalitados no poder tratam quem não os acompanha ou quem não os aplaude. Nos últimos desenvolvimentos dos "jogos", o Dr. Soares "encostou" o Dr. Portas à direita extrema, por comparação com o Sr. Fini, que parece passar por uma fase de recuperação do seu proto-fascismo. E o Dr. Portas devolveu em trocos baratos, com mimos do género "Soares não é o dono da democracia", "quem manda é o povo" e que "tinha sido derrotado em três coisas, o filho que perdeu a Câmara, a mulher que perdeu a CV e o Dr. Sampaio que está em Bélem". Rematou com uma tirada original: o Dr. Soares é uma figura do passado, pressupondo-se que ele, Portas, representa o presente e o futuro gloriosos da Pátria. Não querendo comentar o delirante mau-gosto da diatribe, não creio nem que Soares seja do "passado", nem que o Dr. Portas simbolize o "futuro". Soares, sozinho, tem mais passado, presente e futuro em cima dele do que jamais Portas terá, e basta ficarmos pelo "presente". O respectivo fulgor resulta exclusivamente da circunstância de alguma opinião pública e de muita da que se publica, acharem piada ao registo "light and famous" em que emerge o lider popular. Isto não teria qualquer importância se não estivéssemos a falar da segunda ou terceira figura da coligação que nos pastoreia. Para ele, como para Santana Lopes, D. Barroso conta pouco e funciona, aos olhos dos dois, como uma espécie de "director geral" da "grande empresa" da qual ambos são os verdadeiros proprietários. O papel "pedagógico" relativamente à vida pública portuguesa que Mário Soares tem vindo a assumir, desde que saiu de Bélem, se outros méritos não tivesse, tem ultimamente este de ir chamando a atenção dos distraídos - uma amorfa maioria - para as performances destes nossos mediáticos "amiguinhos". Falo no plural, porque os comportamentos políticos daqueles dois homens - Portas e Santana - não são dissociáveis e confundem-se, como o futuro se encarregará de mostrar. Eu digo isto porque votei num deles e, em certo sentido, conheço os dois. Só que não votei para serem os "donos" disto, como eles, com preciosas e insuspeitas ajudas, se preparam efectivamente para ser, se ninguém os parar a tempo.
O JPP já se referiu a isto outro dia. Decorre, entre o Dr. Portas e o Dr. M. Soares, uma espécie de "jogos florais" , cujo argumento se alimentou basicamente da forma como o primeiro tratou a esposa do segundo, na história da Cruz Vermelha. Na altura, aqui o escrevi, considerei - como continuo a considerar- totalmente ignóbil a forma como o lider do PP resolveu o assunto. Faz parte do estilo nouveau riche político tão em voga e tão "giro", que se distingue pela enorme delicadeza com que alguns dos actuais encavalitados no poder tratam quem não os acompanha ou quem não os aplaude. Nos últimos desenvolvimentos dos "jogos", o Dr. Soares "encostou" o Dr. Portas à direita extrema, por comparação com o Sr. Fini, que parece passar por uma fase de recuperação do seu proto-fascismo. E o Dr. Portas devolveu em trocos baratos, com mimos do género "Soares não é o dono da democracia", "quem manda é o povo" e que "tinha sido derrotado em três coisas, o filho que perdeu a Câmara, a mulher que perdeu a CV e o Dr. Sampaio que está em Bélem". Rematou com uma tirada original: o Dr. Soares é uma figura do passado, pressupondo-se que ele, Portas, representa o presente e o futuro gloriosos da Pátria. Não querendo comentar o delirante mau-gosto da diatribe, não creio nem que Soares seja do "passado", nem que o Dr. Portas simbolize o "futuro". Soares, sozinho, tem mais passado, presente e futuro em cima dele do que jamais Portas terá, e basta ficarmos pelo "presente". O respectivo fulgor resulta exclusivamente da circunstância de alguma opinião pública e de muita da que se publica, acharem piada ao registo "light and famous" em que emerge o lider popular. Isto não teria qualquer importância se não estivéssemos a falar da segunda ou terceira figura da coligação que nos pastoreia. Para ele, como para Santana Lopes, D. Barroso conta pouco e funciona, aos olhos dos dois, como uma espécie de "director geral" da "grande empresa" da qual ambos são os verdadeiros proprietários. O papel "pedagógico" relativamente à vida pública portuguesa que Mário Soares tem vindo a assumir, desde que saiu de Bélem, se outros méritos não tivesse, tem ultimamente este de ir chamando a atenção dos distraídos - uma amorfa maioria - para as performances destes nossos mediáticos "amiguinhos". Falo no plural, porque os comportamentos políticos daqueles dois homens - Portas e Santana - não são dissociáveis e confundem-se, como o futuro se encarregará de mostrar. Eu digo isto porque votei num deles e, em certo sentido, conheço os dois. Só que não votei para serem os "donos" disto, como eles, com preciosas e insuspeitas ajudas, se preparam efectivamente para ser, se ninguém os parar a tempo.
10.12.03
O VERDADEIRO DÉFICE II
Sem mais comentários, e com a devida vénia, peço emprestado ao Crítico um pedaço da sua prosa, para, relativamente a um sector cultural que prezo particularmente, continuar a reflexão de ontem. Percebi igualmente que há um "debate" interessante em torno destas "coisas", metendo o "liberal algarvio" e o Bde, uns "bloguistas da esquerda".
Respondo já ao jaquinzinhos. Se pretende que a ópera acabe em Portugal, tente fazer a coisa apenas com dinheiro do público, com bilhetes ao custo real: qualquer coisa como cento e vinte cento e trinta contos o bilhete, ou tente arrajar mecenas nos matarruanos (a maioria) dos empresários portugueses, liberais (inconscientes de o serem) na maioria.
Em nenhum país da UE se encontra ópera sem ser subsidiada. Faz parte de um património demasiado caro para se perder. É também uma forma de cultura demasiado cara para se manter por si. Chamem-lhe um anacronismo, mas sem dinheiro de todos nós acabaria. E não se pense que serve só alguns, de facto serve directamente muito poucos, deveria servir muitos mais, concordo inteiramente.
O que é facto é que manter um teatro nacional de ópera ou teatros nacionais ou uma companhia nacional de bailado ou orquestras nacionais, por exemplo, gera um capital incomparável, uma reserva cultural que a ser perdida representaria um atraso tremendo nas nossas capacidades culturais e no património de todos os portugueses, mesmo dos empresários de táxis que não querem pagar impostos.
Urge reformar, urge gerir melhor, mas nunca deixar de subsidiar antes de criar públicos e mecenas e isso leva gerações a ser feito. Quem decide? Todos, foi o modelo sufragado e legitimado em eleições. Se o povo quiser outro sistema votará em quem acabe com os impostos e os subsídios às artes e à cultura.
E já pensou o Jaquinzinhos no património edificado e museológico? A quem compete a sua conservação e restauro? A quem compete, maioritariamente, a sua propriedade? Aos privados ou ao estado? Mas se não há público para pagar as visitas aos monumentos, como privatizá-los? No modelo liberal o que não dá lucro deverá apodrecer?
E sobre a cultura: prefiro que se subsidie a cultura eterna, o que está provado que tem qualidade, como é óbvio. Não para elites fixas e enquistadas, mas tendo como alvo a formação de elites culturais a partir de toda a população. Chamem-me utópico e sonhador mas eu creio que o audiovisual, tem para mim, um alcance que deveria ser aproveitado para essa formação alargada de elites.
O incentivo aos novos criadores também deve ser função do estado. Sobretudo em áreas onde não existe espaço para afirmação por falta de indústria privada. Exemplo: o cinema. Depois de formado o público, trabalho de gerações, espera-se que haja espaço para se irem acabando os financiamentos estatais. Mas se acabam hoje, voltamos à idade da pedra.
Sem mais comentários, e com a devida vénia, peço emprestado ao Crítico um pedaço da sua prosa, para, relativamente a um sector cultural que prezo particularmente, continuar a reflexão de ontem. Percebi igualmente que há um "debate" interessante em torno destas "coisas", metendo o "liberal algarvio" e o Bde, uns "bloguistas da esquerda".
Respondo já ao jaquinzinhos. Se pretende que a ópera acabe em Portugal, tente fazer a coisa apenas com dinheiro do público, com bilhetes ao custo real: qualquer coisa como cento e vinte cento e trinta contos o bilhete, ou tente arrajar mecenas nos matarruanos (a maioria) dos empresários portugueses, liberais (inconscientes de o serem) na maioria.
Em nenhum país da UE se encontra ópera sem ser subsidiada. Faz parte de um património demasiado caro para se perder. É também uma forma de cultura demasiado cara para se manter por si. Chamem-lhe um anacronismo, mas sem dinheiro de todos nós acabaria. E não se pense que serve só alguns, de facto serve directamente muito poucos, deveria servir muitos mais, concordo inteiramente.
O que é facto é que manter um teatro nacional de ópera ou teatros nacionais ou uma companhia nacional de bailado ou orquestras nacionais, por exemplo, gera um capital incomparável, uma reserva cultural que a ser perdida representaria um atraso tremendo nas nossas capacidades culturais e no património de todos os portugueses, mesmo dos empresários de táxis que não querem pagar impostos.
Urge reformar, urge gerir melhor, mas nunca deixar de subsidiar antes de criar públicos e mecenas e isso leva gerações a ser feito. Quem decide? Todos, foi o modelo sufragado e legitimado em eleições. Se o povo quiser outro sistema votará em quem acabe com os impostos e os subsídios às artes e à cultura.
E já pensou o Jaquinzinhos no património edificado e museológico? A quem compete a sua conservação e restauro? A quem compete, maioritariamente, a sua propriedade? Aos privados ou ao estado? Mas se não há público para pagar as visitas aos monumentos, como privatizá-los? No modelo liberal o que não dá lucro deverá apodrecer?
E sobre a cultura: prefiro que se subsidie a cultura eterna, o que está provado que tem qualidade, como é óbvio. Não para elites fixas e enquistadas, mas tendo como alvo a formação de elites culturais a partir de toda a população. Chamem-me utópico e sonhador mas eu creio que o audiovisual, tem para mim, um alcance que deveria ser aproveitado para essa formação alargada de elites.
O incentivo aos novos criadores também deve ser função do estado. Sobretudo em áreas onde não existe espaço para afirmação por falta de indústria privada. Exemplo: o cinema. Depois de formado o público, trabalho de gerações, espera-se que haja espaço para se irem acabando os financiamentos estatais. Mas se acabam hoje, voltamos à idade da pedra.
9.12.03
O VERDADEIRO DÉFICE
Na edição de 8 de Dezembro do jornal Público, vinha uma "sondagem" sobre os hábitos culturais dos portugueses, particularmente desde o Verão. Ficou-se a saber que mais de metade dos inquiridos não tinha lido um livro, um pobre dum livro, desde os idos do calor. Perguntava-se também se tinham ido ao cinema, ou a qualquer outro espectáculo de música ou dança, e as respostas foram invariavelmente desoladoras. Em termos de avaliação da "política cultural" do Governo, a coisa não melhora por comparação com a prestação socialista, e apenas 10% dos inquiridos se comprazem com o Dr. Roseta e com o Dr. Amaral Lopes. Estes dados estiveram em debate, à noite, na RTP, num programa onde se discutia o "estado da cultura". Do que disse Pedro Roseta, ficam em arquivo dois momentos. Um primeiro, no qual o Ministro da Cultura justificou a sua quase invisibilidade política com o argumento de que o importante não é o mensageiro, mas antes a mensagem. E a mensagem - dizia ele - é para ser captada no longo prazo, que ele não é homem para repentes e rupturas drásticas. Foi assim que Roseta consagrou, pelas suas próprias palavras, a apoteose do vazio que é a "política" dita "cultural" deste Governo, duplamente desprovida de "mensagem" e de "mensageiro". Num segundo momento, e confrontado com a séria hipótese de a colecção de arte contemporânea de Joe Berardo ir parar além fronteiras, uma vez que por cá anda encaixotada e sem espaço próprio para estar exposta como devia, percebeu-se que Roseta não tinha a mínima ideia do que fazer com a situação. Quando olho para os dados da sondagem que referi, quando ouço o Ministro da Cultura do meu País e finalmente quando penso neste episódio com a importante e única colecção Berardo, não posso deixar de me sentir inquieto e frustrado. Inquieto, pela displicência negligente com que o português médio encara o fenómeno dito "cultural" que, em qualquer canto civilizado deste mundo, é considerado um bem de primeira necessidade. E frustrado por ver que os poderes públicos, ora impotentes, ora ignorantes - categoria onde não cabe o Dr. Pedro Roseta, o que torna a questão mais grave -, se resignam a aceitar a "cultura" como o "resto" a que, sem qualquer tipo de sofisticação, não dão qualquer importância. É a flor na lapela de que falava Carrilho, ou um bom lenço no bolso do casaco apenas, um ornamento mais na moda. Mergulhados até ao pescoço nas desventuras da "contabilidade nacional", esquecemos que este "resto que é tudo" constitui, na verdade, o nosso verdadeiro défice.
Na edição de 8 de Dezembro do jornal Público, vinha uma "sondagem" sobre os hábitos culturais dos portugueses, particularmente desde o Verão. Ficou-se a saber que mais de metade dos inquiridos não tinha lido um livro, um pobre dum livro, desde os idos do calor. Perguntava-se também se tinham ido ao cinema, ou a qualquer outro espectáculo de música ou dança, e as respostas foram invariavelmente desoladoras. Em termos de avaliação da "política cultural" do Governo, a coisa não melhora por comparação com a prestação socialista, e apenas 10% dos inquiridos se comprazem com o Dr. Roseta e com o Dr. Amaral Lopes. Estes dados estiveram em debate, à noite, na RTP, num programa onde se discutia o "estado da cultura". Do que disse Pedro Roseta, ficam em arquivo dois momentos. Um primeiro, no qual o Ministro da Cultura justificou a sua quase invisibilidade política com o argumento de que o importante não é o mensageiro, mas antes a mensagem. E a mensagem - dizia ele - é para ser captada no longo prazo, que ele não é homem para repentes e rupturas drásticas. Foi assim que Roseta consagrou, pelas suas próprias palavras, a apoteose do vazio que é a "política" dita "cultural" deste Governo, duplamente desprovida de "mensagem" e de "mensageiro". Num segundo momento, e confrontado com a séria hipótese de a colecção de arte contemporânea de Joe Berardo ir parar além fronteiras, uma vez que por cá anda encaixotada e sem espaço próprio para estar exposta como devia, percebeu-se que Roseta não tinha a mínima ideia do que fazer com a situação. Quando olho para os dados da sondagem que referi, quando ouço o Ministro da Cultura do meu País e finalmente quando penso neste episódio com a importante e única colecção Berardo, não posso deixar de me sentir inquieto e frustrado. Inquieto, pela displicência negligente com que o português médio encara o fenómeno dito "cultural" que, em qualquer canto civilizado deste mundo, é considerado um bem de primeira necessidade. E frustrado por ver que os poderes públicos, ora impotentes, ora ignorantes - categoria onde não cabe o Dr. Pedro Roseta, o que torna a questão mais grave -, se resignam a aceitar a "cultura" como o "resto" a que, sem qualquer tipo de sofisticação, não dão qualquer importância. É a flor na lapela de que falava Carrilho, ou um bom lenço no bolso do casaco apenas, um ornamento mais na moda. Mergulhados até ao pescoço nas desventuras da "contabilidade nacional", esquecemos que este "resto que é tudo" constitui, na verdade, o nosso verdadeiro défice.
8.12.03
MAIS WAGNER...
Talvez por vivermos curiosos tempos crepusculares, ao contrário do que nos prometem os profetas do optimismo antropológico, lembrei-me de sugerir mais "dvds" wagnerianos. Desta vez recomendo o monumental e indispensável, para os verdadeiros amantes da música e dos textos de Richard Wagner, Der Ring des Nibelungen, nas versões de Pierre Boulez/Patrice Chéreau e de James Levine/Otto Schenk. Já aqui contei a "história" do Anel, vista por mim, naturalmente.Quem pode não deixar de se sentir atraído pelo seu pathos , esta longa jornada de Wotan e dos seus deuses/homens para a perdição e o abismo ?
James Morris, o Wotan de Levine/Schenk
Gwyneth Jones, a Brünnhilde de Boulez/Chéreau
Talvez por vivermos curiosos tempos crepusculares, ao contrário do que nos prometem os profetas do optimismo antropológico, lembrei-me de sugerir mais "dvds" wagnerianos. Desta vez recomendo o monumental e indispensável, para os verdadeiros amantes da música e dos textos de Richard Wagner, Der Ring des Nibelungen, nas versões de Pierre Boulez/Patrice Chéreau e de James Levine/Otto Schenk. Já aqui contei a "história" do Anel, vista por mim, naturalmente.Quem pode não deixar de se sentir atraído pelo seu pathos , esta longa jornada de Wotan e dos seus deuses/homens para a perdição e o abismo ?
James Morris, o Wotan de Levine/Schenk
Gwyneth Jones, a Brünnhilde de Boulez/Chéreau
7.12.03
BANALIZAR O MAL
Com este tempo indigente, vê-se mais televisão. Um fim de semana alargado não promete grandes notícias, e os telejornais repetem à exaustão os mesmos temas. Como se costuma dizer, não é por muito madrugar que amanhece mais cedo. Já dá praticamente para saber de cor os episódios da investigação jornalística em torno da pedofilia nos Açores, com as habituais vozes distorcidas e as imagens desfocadas. Nem o responsável local da PJ se poupou a aparecer vezes sem conta. Durante a semana, é raro o dia em que não é notícia um flagrante de um abusador sexual de menores ou uma ida a tribunal de um pedófilo de província. Será que bruscamente se descobriu que o País "doce" do Doutor Salazar é, afinal, um amontoado oculto de perversos e de tarados, escondidos por detrás de uma moita ou de uma confortável posição institucional? A violência sexual contra menores sempre existiu e começa, tantas vezes, por perto. Na família, na "querida família" do Natal, o pai, o padrasto, o tio, o irmão mais velho, o primo ou o vizinho criminosos, ganham o silêncio por causa da familiaridade insuspeita e da respeitabilidade geral indiscutível. Esta pedofilia "caseira" é menos sensacionalista do que a outra, mas porventura mais violenta e mais tenebrosa. Com esta peripécia permanente em torno da "pedofilia que dá notícia", onde se explora o lado voyeurista que há em cada um de nós, as televisões e os jornais não estão apenas a estimular julgamentos antecipados, nos cafés, nos passeios, de par com a divulgação cirúrgica das confusas e (para a "opinião pública") aparentemente contraditórias decisões judiciais dos processos em curso. Estão também - o que é bem pior - a banalizar o mal.
Com este tempo indigente, vê-se mais televisão. Um fim de semana alargado não promete grandes notícias, e os telejornais repetem à exaustão os mesmos temas. Como se costuma dizer, não é por muito madrugar que amanhece mais cedo. Já dá praticamente para saber de cor os episódios da investigação jornalística em torno da pedofilia nos Açores, com as habituais vozes distorcidas e as imagens desfocadas. Nem o responsável local da PJ se poupou a aparecer vezes sem conta. Durante a semana, é raro o dia em que não é notícia um flagrante de um abusador sexual de menores ou uma ida a tribunal de um pedófilo de província. Será que bruscamente se descobriu que o País "doce" do Doutor Salazar é, afinal, um amontoado oculto de perversos e de tarados, escondidos por detrás de uma moita ou de uma confortável posição institucional? A violência sexual contra menores sempre existiu e começa, tantas vezes, por perto. Na família, na "querida família" do Natal, o pai, o padrasto, o tio, o irmão mais velho, o primo ou o vizinho criminosos, ganham o silêncio por causa da familiaridade insuspeita e da respeitabilidade geral indiscutível. Esta pedofilia "caseira" é menos sensacionalista do que a outra, mas porventura mais violenta e mais tenebrosa. Com esta peripécia permanente em torno da "pedofilia que dá notícia", onde se explora o lado voyeurista que há em cada um de nós, as televisões e os jornais não estão apenas a estimular julgamentos antecipados, nos cafés, nos passeios, de par com a divulgação cirúrgica das confusas e (para a "opinião pública") aparentemente contraditórias decisões judiciais dos processos em curso. Estão também - o que é bem pior - a banalizar o mal.
6.12.03
WAGNER
Nos primórdios deste blogue, e na sequência de espectáculos a que assisti em Barcelona, Teatro Liceo, escrevi umas coisas sobre Der Ring des Nibelungen, e sobre Richard Wagner. Na Culturgest, para encerrar a temporada de Outono do São Carlos, anda-se, desde a semana passada, a servir o Tristan und Isolde em "doses" suaves, repartidas por três distintas sessões, em versão de concerto, e tantas quantos os actos. Como não me posso pronunciar sobre o exercício que não vi, reenvio os interessados para o Crítico que a tudo tem assistido, chamando a atenção para as recomendações discográficas que lá aparecem. Com a emergência dos "dvd's", e para quem tenha aparelhagens compatíveis, tipo "home theater", limito-me a sugerir três gravações. A primeira dirigida por Karl Böhm, gravada em Orange, a 7 de Julho de 1973, com a Orquestra Nacional da ORTF e o New Philarmonia Chorus, com a seguinte distribuição:
Isolde - Birgit Nilsson
Tristan - Jon Vickers
King Marke - Bengt Rundgren
Kurwenal - Walter Berry
Brangäne - Ruth Hesse
Melot- Stanley Unruh. A segunda tem Zubin Mehta à frente da Bavarian State Opera Orchestra and Chorus, com:
Tristan-Jon Fredric West
Isolde-Waltraud Meier
Brangäne-Mariana Lipovsek
King Marke-Kurt Moll
Kurwena-Bernd Weikl.
Melot-Claes H. Ahnsio. E finalmente, com Jiri Kout a dirigir a Orquestra e o Coro da Deutschen Oper Berlin, René Kollo como Tristan, Gwyneth Jones como Isolde e Hanna Schwarz como Brangäne.
Nos primórdios deste blogue, e na sequência de espectáculos a que assisti em Barcelona, Teatro Liceo, escrevi umas coisas sobre Der Ring des Nibelungen, e sobre Richard Wagner. Na Culturgest, para encerrar a temporada de Outono do São Carlos, anda-se, desde a semana passada, a servir o Tristan und Isolde em "doses" suaves, repartidas por três distintas sessões, em versão de concerto, e tantas quantos os actos. Como não me posso pronunciar sobre o exercício que não vi, reenvio os interessados para o Crítico que a tudo tem assistido, chamando a atenção para as recomendações discográficas que lá aparecem. Com a emergência dos "dvd's", e para quem tenha aparelhagens compatíveis, tipo "home theater", limito-me a sugerir três gravações. A primeira dirigida por Karl Böhm, gravada em Orange, a 7 de Julho de 1973, com a Orquestra Nacional da ORTF e o New Philarmonia Chorus, com a seguinte distribuição:
Isolde - Birgit Nilsson
Tristan - Jon Vickers
King Marke - Bengt Rundgren
Kurwenal - Walter Berry
Brangäne - Ruth Hesse
Melot- Stanley Unruh. A segunda tem Zubin Mehta à frente da Bavarian State Opera Orchestra and Chorus, com:
Tristan-Jon Fredric West
Isolde-Waltraud Meier
Brangäne-Mariana Lipovsek
King Marke-Kurt Moll
Kurwena-Bernd Weikl.
Melot-Claes H. Ahnsio. E finalmente, com Jiri Kout a dirigir a Orquestra e o Coro da Deutschen Oper Berlin, René Kollo como Tristan, Gwyneth Jones como Isolde e Hanna Schwarz como Brangäne.
4.12.03
UMA HERANÇA PÍFIA
Também era quinta-feira e fazia um frio de rachar. Nessa noite de Dezembro de 1980, o País fervia na campanha presidencial - nessa altura, a ideia de cidadania ainda era viva... - destinada, se nada de extraordinário acontecesse, a reeleger Ramalho Eanes. Porém, aconteceu algo de extraordinário que, no entanto, não impediu que Eanes ficasse. Num País riquíssimo em pessoal político qualificado, como se tem vindo a constatar, desapareciam num estúpido acidente de avião, a dois dias das eleições, nada mais nada menos do que, entre outras pessoas, o Primeiro Ministro e o Ministro da Defesa. Francisco Sá Carneiro protagonizou a primeira experiência de governação do centro-direita após o 25 de Abril, e logo cinco anos depois. A constituição da Aliança Democrática foi um bom "achado" político através do qual a "direita democrática" se inseriu definitivamente no "sistema", em acordo com os "reformadores" do centro-esquerda, de António Barreto e Medeiros Ferreira. Foi preciso esperar mais uns anos para que a proeza se repetisse, desta vez para "atacar" as estruturas da economia e os equipamentos "sociais", com Cavaco Silva e sem alianças. Quer Sá Carneiro, quer Cavaco, julgo que genuínos sociais-democratas, apenas com formações e com noções de tempo "político" diferentes, nunca perderam de vista a chamada "dimensão social", "equitativa", da política. Sá Carneiro juntava a tudo isso a "dimensão lúdica", sem a qual, dizia ele, a política não valia a pena. E impôs ao "politicamente correcto" da altura a sua pública paixão por Snu Abecassis, paixão essa tragicamente imolada no fogo de Camarate. Era um homem com pressa e, nesse sentido, era um homem em perigo. Terá sido, embora o não parecesse, um dos últimos príncipes românticos da política portuguesa no século XX. O sácarneirismo tem assumido diversas formas ao longo destes anos. A maior parte dos que se reclamam dessa "orfandade" nunca chegaram, nem nunca hão-de chegar, aos calcanhares de Francisco Sá Carneiro. Se tivesse sobrevivido e estivesse vivo, não deixaria de nutrir o maior dos desprezos por muitos deles. A "terceira vaga" da direita no poder chegou há quase dois anos. Para lembrar Sá Carneiro, a "coligação" junta o inevitável Santana Lopes e o jovem popular, muito presunçosamente em voga, Telmo Correia, delegado permanente desse pilar indestrutível que é o amigo de Santana, o Dr. Portas. Eu, que apoiei as três experiências, em 79, em 85 e em 2002, não me sinto propriamente satisfeito com esta última prestação ainda em curso, nem me revejo minimamente nos seus principais protagonistas. Francisco Sá Carneiro merecia certamente melhor do que esta herança pífia.
Também era quinta-feira e fazia um frio de rachar. Nessa noite de Dezembro de 1980, o País fervia na campanha presidencial - nessa altura, a ideia de cidadania ainda era viva... - destinada, se nada de extraordinário acontecesse, a reeleger Ramalho Eanes. Porém, aconteceu algo de extraordinário que, no entanto, não impediu que Eanes ficasse. Num País riquíssimo em pessoal político qualificado, como se tem vindo a constatar, desapareciam num estúpido acidente de avião, a dois dias das eleições, nada mais nada menos do que, entre outras pessoas, o Primeiro Ministro e o Ministro da Defesa. Francisco Sá Carneiro protagonizou a primeira experiência de governação do centro-direita após o 25 de Abril, e logo cinco anos depois. A constituição da Aliança Democrática foi um bom "achado" político através do qual a "direita democrática" se inseriu definitivamente no "sistema", em acordo com os "reformadores" do centro-esquerda, de António Barreto e Medeiros Ferreira. Foi preciso esperar mais uns anos para que a proeza se repetisse, desta vez para "atacar" as estruturas da economia e os equipamentos "sociais", com Cavaco Silva e sem alianças. Quer Sá Carneiro, quer Cavaco, julgo que genuínos sociais-democratas, apenas com formações e com noções de tempo "político" diferentes, nunca perderam de vista a chamada "dimensão social", "equitativa", da política. Sá Carneiro juntava a tudo isso a "dimensão lúdica", sem a qual, dizia ele, a política não valia a pena. E impôs ao "politicamente correcto" da altura a sua pública paixão por Snu Abecassis, paixão essa tragicamente imolada no fogo de Camarate. Era um homem com pressa e, nesse sentido, era um homem em perigo. Terá sido, embora o não parecesse, um dos últimos príncipes românticos da política portuguesa no século XX. O sácarneirismo tem assumido diversas formas ao longo destes anos. A maior parte dos que se reclamam dessa "orfandade" nunca chegaram, nem nunca hão-de chegar, aos calcanhares de Francisco Sá Carneiro. Se tivesse sobrevivido e estivesse vivo, não deixaria de nutrir o maior dos desprezos por muitos deles. A "terceira vaga" da direita no poder chegou há quase dois anos. Para lembrar Sá Carneiro, a "coligação" junta o inevitável Santana Lopes e o jovem popular, muito presunçosamente em voga, Telmo Correia, delegado permanente desse pilar indestrutível que é o amigo de Santana, o Dr. Portas. Eu, que apoiei as três experiências, em 79, em 85 e em 2002, não me sinto propriamente satisfeito com esta última prestação ainda em curso, nem me revejo minimamente nos seus principais protagonistas. Francisco Sá Carneiro merecia certamente melhor do que esta herança pífia.
FECHAR OS OLHOS II
1. Consta que o acesso aos subsídios de desemprego anda razoavelmente atrasado. Por acesso, entendo a percepção do dito, a entrada do dinheiro nas contas das pessoas. E isto numa dupla vertente: atraso no primeiro pagamento e atraso nos pagamentos já em curso. Confrontado com esta última situação, diante das câmaras da RTP, pelo menos, o Dr. Félix revelou um incómodo e uma irritação nada católicos, questionando a jornalista pela impertinência. Saiu qualquer coisa como isto, antes do "não comento": "então a senhora vem aqui maçar-me, a mim e ao meu colega da Educação (era uma sessão sobre a deficiência e para lançar mais um programa), e um alto funcionário do Ministério, por 3 dias de atraso?" Eu não sei o que isso é, felizmente, e o Dr. Félix muito menos, mas para quem está a contar os tostões para o dia certo, para as despesas certas e para as incertas, e que não tem outra fonte de rendimento, três dias podem representar uma eternidade. Não é preciso ser adepto da teoria dos "descamisados" ou da "social da igreja", tão cara ao actual poder instalado na Praça de Londres, para perceber isto.
2. Conta o Jornal de Notícias que "apenas 156 820 trabalhadores portugueses (2,9% da população activa) participam anualmente em acções de formação, de acordo com um inquérito do Eurostat (2002). A média da União Europeia (UE) é de 8,5% e a maioria dos países do alargamento ultrapassa-nos. O aspecto mais desconcertante dos números recolhidos de várias fontes reside na conclusão geral: o investimento é pouco e a formação não compensa os trabalhadores". Depois cita o economista Eugénio Rosa, representante da CGTP na Comissão de Acompanhamento do Programa Operacional de Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS), integrado no III Quadro Comunitário de Apoio (2000-2006), que explica que, "dos fundos disponíveis em 2002 (663 milhões de euros), apenas 57% (380 milhões de euros) foram executados", ficando " 283 milhões por aproveitar". este programa é o mais representativo de todos: "35% (outros programas representam entre 0,3 e 17%) do Fundo Social Europeu (FSE), excluindo Lisboa e Vale do Tejo, região que beneficia de um programa operacional específico com um peso de 10% no FSE". O resultado, segundo o jornal, é simples: "empregados com pouca formação e empresas que não incentivam a uma melhoria deste cenário." Também na adminstração pública, a história não melhora, uma vez que apenas 27% dos fundos disponíveis, em 2002, foram efectivamente utilizados: "5,8 milhões de euros, 1,5% do total executado em todos os eixos do programa".Sem comentários.
1. Consta que o acesso aos subsídios de desemprego anda razoavelmente atrasado. Por acesso, entendo a percepção do dito, a entrada do dinheiro nas contas das pessoas. E isto numa dupla vertente: atraso no primeiro pagamento e atraso nos pagamentos já em curso. Confrontado com esta última situação, diante das câmaras da RTP, pelo menos, o Dr. Félix revelou um incómodo e uma irritação nada católicos, questionando a jornalista pela impertinência. Saiu qualquer coisa como isto, antes do "não comento": "então a senhora vem aqui maçar-me, a mim e ao meu colega da Educação (era uma sessão sobre a deficiência e para lançar mais um programa), e um alto funcionário do Ministério, por 3 dias de atraso?" Eu não sei o que isso é, felizmente, e o Dr. Félix muito menos, mas para quem está a contar os tostões para o dia certo, para as despesas certas e para as incertas, e que não tem outra fonte de rendimento, três dias podem representar uma eternidade. Não é preciso ser adepto da teoria dos "descamisados" ou da "social da igreja", tão cara ao actual poder instalado na Praça de Londres, para perceber isto.
2. Conta o Jornal de Notícias que "apenas 156 820 trabalhadores portugueses (2,9% da população activa) participam anualmente em acções de formação, de acordo com um inquérito do Eurostat (2002). A média da União Europeia (UE) é de 8,5% e a maioria dos países do alargamento ultrapassa-nos. O aspecto mais desconcertante dos números recolhidos de várias fontes reside na conclusão geral: o investimento é pouco e a formação não compensa os trabalhadores". Depois cita o economista Eugénio Rosa, representante da CGTP na Comissão de Acompanhamento do Programa Operacional de Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS), integrado no III Quadro Comunitário de Apoio (2000-2006), que explica que, "dos fundos disponíveis em 2002 (663 milhões de euros), apenas 57% (380 milhões de euros) foram executados", ficando " 283 milhões por aproveitar". este programa é o mais representativo de todos: "35% (outros programas representam entre 0,3 e 17%) do Fundo Social Europeu (FSE), excluindo Lisboa e Vale do Tejo, região que beneficia de um programa operacional específico com um peso de 10% no FSE". O resultado, segundo o jornal, é simples: "empregados com pouca formação e empresas que não incentivam a uma melhoria deste cenário." Também na adminstração pública, a história não melhora, uma vez que apenas 27% dos fundos disponíveis, em 2002, foram efectivamente utilizados: "5,8 milhões de euros, 1,5% do total executado em todos os eixos do programa".Sem comentários.
2.12.03
FECHAR OS OLHOS
Bem pode M.M. Carrilho pregar a favor da qualificação dos portugueses. Também o "abaixo de cão", que coloca exclamações à frente de coisas como acreditar que a SIDA se pode propagar através de um simples aperto de mão ou sentando o rabiosque numa sanita. E por aí fora. Não nos bastava ser o País da União Europeia mais vitimado pelo seu número de infectados com o HIV, como a esta infelicidade se junta a endémica ignorância acerca da fisiologia da doença. É deveras grave que, quase no ano da graça de 2004, ainda haja cidadãos nacionais que proferem as maiores barbaridades acerca da doença. Tantos e tantos milhares de contos, e agora de euros, gastos em campanhas de informação, para nada ou para muito pouco. Nestas ocasiões lembro-me sempre de uma frase de Vasco Pulido Valente, escrita em contexto totalmente diferente: como é que uma raça tão estúpida pode ter descoberto alguma coisa, nomeadamente continentes. Ou de Jorge de Sena, que não se cansava de explicar que nós não possuíamos grandes tradições culturais, mas que tivemos sempre grandes homens que se tinham enganado no lugar onde nasceram. Ao contrário do que nos momentos de puro oportunismo de exaltação dos nossos "sucessos" acontece - quando nos dizem que é para combater o "pessimismo nacional" e que é preciso massajar o ego pátrio -, eu creio firmemente que o que de bom nos tem acontecido tem sido fruto do puro acaso. Naturalmente que estou à partida a excluir megalomanias como o Euro 2004. Estas respostas broncas acerca da SIDA são um mero subproduto do obscurantismo intelectual e societário que, após 30 anos de democracia, se mantém indemne. É mais do mesmo medo visceral do "outro", uma pequena mas séria manifestação portuguesa de uma certa "pequena burguesia de espírito". No fundo, e o que é mais grave, revela uma doentia insensibilidade para com o sofrimento dos outros, coisa a que, de forma analfabeta, com estas respostas demonstram, se fecha os olhos.
Bem pode M.M. Carrilho pregar a favor da qualificação dos portugueses. Também o "abaixo de cão", que coloca exclamações à frente de coisas como acreditar que a SIDA se pode propagar através de um simples aperto de mão ou sentando o rabiosque numa sanita. E por aí fora. Não nos bastava ser o País da União Europeia mais vitimado pelo seu número de infectados com o HIV, como a esta infelicidade se junta a endémica ignorância acerca da fisiologia da doença. É deveras grave que, quase no ano da graça de 2004, ainda haja cidadãos nacionais que proferem as maiores barbaridades acerca da doença. Tantos e tantos milhares de contos, e agora de euros, gastos em campanhas de informação, para nada ou para muito pouco. Nestas ocasiões lembro-me sempre de uma frase de Vasco Pulido Valente, escrita em contexto totalmente diferente: como é que uma raça tão estúpida pode ter descoberto alguma coisa, nomeadamente continentes. Ou de Jorge de Sena, que não se cansava de explicar que nós não possuíamos grandes tradições culturais, mas que tivemos sempre grandes homens que se tinham enganado no lugar onde nasceram. Ao contrário do que nos momentos de puro oportunismo de exaltação dos nossos "sucessos" acontece - quando nos dizem que é para combater o "pessimismo nacional" e que é preciso massajar o ego pátrio -, eu creio firmemente que o que de bom nos tem acontecido tem sido fruto do puro acaso. Naturalmente que estou à partida a excluir megalomanias como o Euro 2004. Estas respostas broncas acerca da SIDA são um mero subproduto do obscurantismo intelectual e societário que, após 30 anos de democracia, se mantém indemne. É mais do mesmo medo visceral do "outro", uma pequena mas séria manifestação portuguesa de uma certa "pequena burguesia de espírito". No fundo, e o que é mais grave, revela uma doentia insensibilidade para com o sofrimento dos outros, coisa a que, de forma analfabeta, com estas respostas demonstram, se fecha os olhos.
1.12.03
1º DE DEZEMBRO
Comemora-se hoje a "restauração" da independência nacional, supostamente perdida para os espanhóis em 1580. Nessa altura, a Espanha, governada por Filipe, conhecido como o "demónio do meio-dia", senhor de um império "onde o sol nunca se punha", tratou de retirar-nos, a pretexto da sucessão de D. Sebastião, a soberania na ordem externa, como se diria hoje. Ou seja, o País mantinha as suas instituições políticas, mas quem o representava era Filipe II de Espanha e primeiro de Portugal. Dito de outra forma: nunca chegámos verdadeiramente a perder a independência enquanto "soberania na ordem interna". Ficámos, isso sim, diminuídos na nossa capacidade de reacção diplomática, uma vez que a nossa fronteira, a terrestre e a marítima, estava "tapada" pela mesma potência. Esta situação arrastou-se por cerca de sessenta anos e, no tal 1 de Dezembro de 1640, uma rapaziada garbosa, glorificada nos livros de história pátria, defenestrou os traidores e, com esse gesto, logrou recuperar, a seguir a mais uma "guerra doméstica", e por entre muitas escaramuças e peripécias, a tal soberania externa perdida. Visto isto à distância, em pleno processo de reforma da União Europeia, olhando ao País que somos e ao que a Espanha é, o episódio do 1º de Dezembro e respectivas sequelas bem podem ter representado um passo atrás. Da mesma forma que me considero federalista, já fui mais céptico quanto a ser "iberista". Entre outras vantagens, teríamos sido poupados a esta discussão idiota acerca de uma desnecessária revisão constitucional e poderíamos ter construído um sólido corpo de élites em diversas áreas, cuja falta se sente cada vez mais, desde as universidades a S. Bento, passando pela administração pública e pela "sociedade civil". O desastre de Alcácer Quibir levou-nos as poucas que possuíamos. E daí em diante é o que se sabe. Assim como estamos agora, julgamo-nos independentes, contentinhos e "europeus". Não estará porventura no momento de voltar a atirar alguém, de novo, pela janela?
Comemora-se hoje a "restauração" da independência nacional, supostamente perdida para os espanhóis em 1580. Nessa altura, a Espanha, governada por Filipe, conhecido como o "demónio do meio-dia", senhor de um império "onde o sol nunca se punha", tratou de retirar-nos, a pretexto da sucessão de D. Sebastião, a soberania na ordem externa, como se diria hoje. Ou seja, o País mantinha as suas instituições políticas, mas quem o representava era Filipe II de Espanha e primeiro de Portugal. Dito de outra forma: nunca chegámos verdadeiramente a perder a independência enquanto "soberania na ordem interna". Ficámos, isso sim, diminuídos na nossa capacidade de reacção diplomática, uma vez que a nossa fronteira, a terrestre e a marítima, estava "tapada" pela mesma potência. Esta situação arrastou-se por cerca de sessenta anos e, no tal 1 de Dezembro de 1640, uma rapaziada garbosa, glorificada nos livros de história pátria, defenestrou os traidores e, com esse gesto, logrou recuperar, a seguir a mais uma "guerra doméstica", e por entre muitas escaramuças e peripécias, a tal soberania externa perdida. Visto isto à distância, em pleno processo de reforma da União Europeia, olhando ao País que somos e ao que a Espanha é, o episódio do 1º de Dezembro e respectivas sequelas bem podem ter representado um passo atrás. Da mesma forma que me considero federalista, já fui mais céptico quanto a ser "iberista". Entre outras vantagens, teríamos sido poupados a esta discussão idiota acerca de uma desnecessária revisão constitucional e poderíamos ter construído um sólido corpo de élites em diversas áreas, cuja falta se sente cada vez mais, desde as universidades a S. Bento, passando pela administração pública e pela "sociedade civil". O desastre de Alcácer Quibir levou-nos as poucas que possuíamos. E daí em diante é o que se sabe. Assim como estamos agora, julgamo-nos independentes, contentinhos e "europeus". Não estará porventura no momento de voltar a atirar alguém, de novo, pela janela?
A CULPA HUMANA
Não se trata de um "grande filme", nem a realização de Robert Benton o favorece particularmente. Valem o argumento e as interpretações de Anthony Hopkins e de Nicole Kidman. O argumento trabalha o livro de Philip Roth, The Human Stain, com tradução prometida para a D. Quixote. Stain pode querer dizer "nódoa", qualquer coisa que "descolora" e que se "distingue". A história do livro de Roth é a história do alastramento de uma nódoa, de uma "culpa humana" in crescendo, indistinta, cruel e e mesquinha,que leva à rejeição - subreptícia, nuns casos, e clarissima em quase todos os episódios da "história" - da "diferença", espelhada na cor do rosto e no comportamento desesperado de Faunia/Kidman. Coleman Silk é um homem perseguido pela cor oculta no seu "rosto branco como a neve", numa América racista e "profunda", dos anos 40, 50 e 60. Mais tarde, na América do final dos 90, em plena crise Clinton/Lewinsky, uma palavra ("spook") dita numa aula por Coleman, referindo-se a dois estudantes que ele ignorava serem negros, conduz à sua saída da universidade onde tinha sido reitor, em nome do que hoje se chama de "politicamente correcto". Com a morte da mulher, Coleman volta à paixão e ao sexo com Faunia, a mulher da limpeza, de 34 anos, uma vida desfeita pelo marido errado e pelo desaparecimento trágico dos filhos. Depois do sexo, Faunia recusa-se a acordar ao lado de Coleman, e diz-lhe a toda a hora que ali não há lugar para o "amor". Só no último dia da sua vida, aceita a ideia de "partilhar" o afecto de Coleman. A história é contada pelo vizinho de Coleman, o escritor Zuckerman, um alter ego de Philip Roth. A força disto tudo reside fundamentalmente na escrita de Roth, adaptada aos diálogos do filme, onde se fala de vergonha, de uma imensa e escondida vergonha identitária, da rejeição e da perda irreversíveis. A Culpa Humana é mais um texto poderoso de Philip Roth, em torno dos seus/nossos fantasmas e da violência com que vivemos (mal) uns com os outros, perdidos e insensatos numa perigosa e escura deriva, a caminho da derrapagem final.
30.11.03
CONHECER
por Umberto Eco
Temos muitas vezes que explicar aos jovens por que é que o estudo é útil. É inútil dizer-lhes que é pelo próprio conhecimento, se eles não se importam com o conhecimento. Também não serve de nada dizer às crianças que uma pessoa instruída tem mais possibilidades na vida do que um ignorante, porque eles podem sempre apontar algum génio que, do ponto de vista deles, leva uma vida miserável. E assim a única resposta é que o exercício do conhecimento cria relações, continuidade e ligações emocionais. Ele apresenta-nos a pais para além dos biológicos. Permite-nos viver mais, porque não nos lembramos apenas da nossa própria vida mas também da de outros. Cria um fio inquebrável que vem desde a nossa adolescência (e às vezes da infância) até à actualidade. E tudo isto é muito belo.
In Diário de Notícias, de 30 de Novembro de 2003
por Umberto Eco
Temos muitas vezes que explicar aos jovens por que é que o estudo é útil. É inútil dizer-lhes que é pelo próprio conhecimento, se eles não se importam com o conhecimento. Também não serve de nada dizer às crianças que uma pessoa instruída tem mais possibilidades na vida do que um ignorante, porque eles podem sempre apontar algum génio que, do ponto de vista deles, leva uma vida miserável. E assim a única resposta é que o exercício do conhecimento cria relações, continuidade e ligações emocionais. Ele apresenta-nos a pais para além dos biológicos. Permite-nos viver mais, porque não nos lembramos apenas da nossa própria vida mas também da de outros. Cria um fio inquebrável que vem desde a nossa adolescência (e às vezes da infância) até à actualidade. E tudo isto é muito belo.
In Diário de Notícias, de 30 de Novembro de 2003
À ESPERA
Bastaram uns insistentes espirros em massa para que as urgências hospitalares ficassem, de novo, a nu. Quando Filipe Pereira começou, eu acreditei nele. Ao tentar pegar num assunto "redondo", como os hospitais do serviço nacional de saúde, por um ângulo supostamente diferente, o ministro parecia bem encaminhado. Contudo, a criação dos hospitais SA, a bem de uma "melhor gestão" e de uma melhor oferta de serviços aos utentes, acabou por se transformar em mais um episódio de "desorçamentação", tão criticado ao passado recente. Na realidade, e quando se apregoa que, pela primeira vez se reduziu o défice do SNS, conta-se uma história. Qualquer papalvo minimamente informado percebe que, se se tira de um lado, tem de se pagar por outro, e tudo através do mesmo orçamento de Estado. Nos hospitais ditos públicos - que escaparam, por enquanto, à obsessão (falsamente) privatística em curso - e, seguramente, nas "novas" criações, o problema das urgências subsiste e agrava-se. Não se deve isso apenas a uma incorrecta percepção dos cidadãos relativamente aos chamados "cuidados primários" a que não acorrem. Ao lado de tantas insuficiências, também não é feita uma despistagem eficaz, pelos e para os "primários". O SNS tem bons profissionais e equipamentos, mas a sua organização e controlo internos deixam muito a desejar. É mais prático e fácil exibir mapas e ratios muito coloridos e modernos, e que não dizem nada, nem aos utentes, nem aos profissionais de saúde. Às horas de espera nas urgências, ao desamparo falacioso dos quadros electónicos anódinos, junta-se a "lista de espera" nova, a de Filipe Pereira. Ao lado daquela que presumivelmente reduziu, abriu outra. E outras mais se irão abrir. Se há sector em que é preciso confiar, é neste. O experimentalismo de Luis Filipe Pereira tem deixado a confiança como ela nunca poderia estar, à espera.
Bastaram uns insistentes espirros em massa para que as urgências hospitalares ficassem, de novo, a nu. Quando Filipe Pereira começou, eu acreditei nele. Ao tentar pegar num assunto "redondo", como os hospitais do serviço nacional de saúde, por um ângulo supostamente diferente, o ministro parecia bem encaminhado. Contudo, a criação dos hospitais SA, a bem de uma "melhor gestão" e de uma melhor oferta de serviços aos utentes, acabou por se transformar em mais um episódio de "desorçamentação", tão criticado ao passado recente. Na realidade, e quando se apregoa que, pela primeira vez se reduziu o défice do SNS, conta-se uma história. Qualquer papalvo minimamente informado percebe que, se se tira de um lado, tem de se pagar por outro, e tudo através do mesmo orçamento de Estado. Nos hospitais ditos públicos - que escaparam, por enquanto, à obsessão (falsamente) privatística em curso - e, seguramente, nas "novas" criações, o problema das urgências subsiste e agrava-se. Não se deve isso apenas a uma incorrecta percepção dos cidadãos relativamente aos chamados "cuidados primários" a que não acorrem. Ao lado de tantas insuficiências, também não é feita uma despistagem eficaz, pelos e para os "primários". O SNS tem bons profissionais e equipamentos, mas a sua organização e controlo internos deixam muito a desejar. É mais prático e fácil exibir mapas e ratios muito coloridos e modernos, e que não dizem nada, nem aos utentes, nem aos profissionais de saúde. Às horas de espera nas urgências, ao desamparo falacioso dos quadros electónicos anódinos, junta-se a "lista de espera" nova, a de Filipe Pereira. Ao lado daquela que presumivelmente reduziu, abriu outra. E outras mais se irão abrir. Se há sector em que é preciso confiar, é neste. O experimentalismo de Luis Filipe Pereira tem deixado a confiança como ela nunca poderia estar, à espera.
29.11.03
OS IMORTAIS
Apeteceu-me falar de Os Imortais, o filme de António Pedro Vasconcelos, assim que o vi. Passado o momento, deparo com um texto de Eduardo Dâmaso, no Público de ontem, que me parece que diz praticamente tudo. Aqui fica.
O Belíssimo Requiem dos Heróis Desempregados
Por EDUARDO DÂMASO
Tenho um amigo mais velho que esteve na guerra em Angola e foi lá que viveu a maior aventura da vida dele. Rapaz de educação rural, deixou a escola cedo e aprendeu o ofício de carpinteiro. Aos dezoito anos foi incorporado nos comandos e aprendeu a matar. Veio de Angola com vinte e um anos e já só sabia a linguagem da guerra. Trouxe na mochila uma história para contar mas também não se esqueceu de trazer umas quantas granadas e mais uma ou outra lembrança daquela guerra onde acreditou que havia mesmo uns "turras" tenebrosos e, do lado dele, a malta da "companhia", os "imortais".
Tantos como ele foram para o Ultramar e vinham de lá outros. Com o mesmo nome, mas outros. Calados, muito calados nos momentos, poucos, em que não bebiam. Nunca se percebia se transportavam o rosto de um vazio ou de uma enorme tormenta interior. Talvez fossem só inadaptados à lentidão da vida que enfrentaram no pós-guerra. Um dia, o meu amigo dos comandos atirou uma granada contra uma parede qualquer numa noite de bebedeira. Não morreu ninguém mas a coisa fez estragos. Desde logo nele próprio, que teve de enfrentar a justiça, a família, os amigos e os seus infernos íntimos.
Tenho outro amigo que esteve na Guiné, nos "fuzos". Veio da guerra depois do 25 de Abril mas não se adaptou à pasmaceira da terra, muito longínqua do epicentro da revolução dos cravos que mantinha o país em chamas. O meu amigo ofereceu-se para a vida de mercenário e foi para Angola, onde havia uma guerra. Andou por lá aos tiros ao serviço da FNLA porque sim. Nunca foi de ideologias, era mesmo só para dar uns tiros e sentir o abismo das noites em que se sai sem saber de há-de haver dia. O pânico de saber se se chega ao dia seguinte transformou-se numa estranha nostalgia daquele medo que é capaz de nos empurrar para a coragem mas também para a loucura.
Um dia, muito mais tarde, já de regresso à terra, pegou em granadas e numa metralhadora e simulou um ataque contra uma boite de alterne. Era para brincar às guerras. Depois não aguentou nada do que tinha: a paz, a namorada, um bom emprego, a terra parada, o silêncio sem a tensão do metal e da pólvora a rabiscar no ar. Despejou um frasco de veneno para ratos e deixou uma carta a explicar que foi por aí porque lhe tinham acabado as granadas para se divertir.
Os meus amigos tornaram-se heróis desempregados da guerra. Há poucos portugueses dos quarenta para cima que não conheçam um ou outro destes velhos leões adormecidos no tédio da paz. É destes homens instruídos na doutrina de um trágico heroísmo para se entregarem aos elevados mas nefastos desígnios da pátria que nos fala "Os Imortais", de António Pedro Vasconcelos. E de que nos falara "O Inferno", de Joaquim Leitão, também um belo filme que, infelizmente, só vi muito depois da sua passagem pelos cinemas.
Eu não sou crítico de cinema nem me interessa ser. Os críticos hão-de ter as suas razões para dizer isto ou aquilo de certos filmes. Também não fui à guerra mas fui crescendo um pouco no medo de chegar a minha hora quando da guerra já só havia a hora do regresso dos caixões de pinho. À minha volta, como em todos as pequenas terras da chamada província, havia já muitos mortos, muitos desaparecidos em combate, muito luto. Por essa recordação de um terror que havia de vir mas, sobretudo, pelo intolerável silêncio destes trinta anos de democracia sobre a guerra, vi nos "Imortais" um bocado de mim próprio, da minha família, dos meus amigos, de um país sonâmbulo que se recusa a saber o que foi isso da guerra colonial. Como espectador deste país tocou-me.
Uma visão mais redutora sobre o filme de António Pedro Vasconcelos pode ver nele apenas uma obra dirigida aos labirintos da memória dos que ainda se lembram destas coisas. Mas estão enganados: este é um filme principalmente para todos os outros porque é uma belíssima história sobre nós, portugueses incautos das bravatas esculpidas na mais bruta das ignorâncias, manipulados por todos os mestres da gestão delinquente do poder, como o foram os próceres do antigo regime. É um belíssimo requiem desses milhares de jovens que seguiram em festa para a carnificina ultramarina, embriagados pelo perfume de uma aventura que não teria paralelo nas suas vidas, e que morreram por lá ou vieram acabar, mais tarde, na inadaptação a um país que os abandonou, ou mesmo na rotina sonâmbula de uma nova rotina que não apagou as feridas desses tempos de "cobóiada".
Roberto Alua, personagem engrandecida pela brilhante interpretação de Joaquim de Almeida não é o meu amigo dos comandos que atirou a granada contra uma parede qualquer mas podia ser. Alua é o lobo da guerra que não consegue lidar com a quietude social nem com o sentimento amoroso. Não foi educado nem para uma coisa nem para outra. É o veterano da morte que precisa de sentir de novo o cheiro do sangue e da pólvora. Mas tem uns restos de dignidade e de amor próprio que evitam a sua própria dissolução moral e ética enquanto ser humano. Acorda já muito tarde e só lhe resta a solução clássica de um combatente que não quer cair nas mãos do inimigo. De um herói perdido em território hostil.
Horácio Lobo, nas mãos de Rogério Samora, é um terrível sacana. Foi educado para a morte e precisa de matar, de estar sempre perto dela, até de a escolher como última missão suicida para não falhar um contrato. Mercenário até ao fim. Tantos houve nessas guerras civis que deixámos espalhadas pelos antigos territórios do império.
Por fim Joaquim Malarranha, ou Nicolau Breyner. Magistral figura de velho polícia manhoso que nos vai transportando para a verdade e para a compreensão dessa confraria de lutadores eternos e desses tempos tão incompreensíveis.
Em suma, "Os Imortais" é um filme que respeita integralmente a grandeza da obra literária de Carlos Vale Ferraz, particularmente em "Nó cego" e no livro "Os lobos não usam coleira" que inspira o realizador, mas tem vida própria. Deveria ser tão visto nas escolas como os livros de Carlos Vale Ferraz estudados no ensino secundário. Filme e livros são instrumentos vitais para que não se perca a memória desse trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de treze intermináveis anos. A guerra colonial foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou oitocentos mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida e a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de 8 mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de stress de guerra. Convém que tenhamos consciência disso. Todavia, como se sabe, Portugal prefere os manuais do "Big Brother" e por isso é um país que não merece ter memória.
Apeteceu-me falar de Os Imortais, o filme de António Pedro Vasconcelos, assim que o vi. Passado o momento, deparo com um texto de Eduardo Dâmaso, no Público de ontem, que me parece que diz praticamente tudo. Aqui fica.
O Belíssimo Requiem dos Heróis Desempregados
Por EDUARDO DÂMASO
Tenho um amigo mais velho que esteve na guerra em Angola e foi lá que viveu a maior aventura da vida dele. Rapaz de educação rural, deixou a escola cedo e aprendeu o ofício de carpinteiro. Aos dezoito anos foi incorporado nos comandos e aprendeu a matar. Veio de Angola com vinte e um anos e já só sabia a linguagem da guerra. Trouxe na mochila uma história para contar mas também não se esqueceu de trazer umas quantas granadas e mais uma ou outra lembrança daquela guerra onde acreditou que havia mesmo uns "turras" tenebrosos e, do lado dele, a malta da "companhia", os "imortais".
Tantos como ele foram para o Ultramar e vinham de lá outros. Com o mesmo nome, mas outros. Calados, muito calados nos momentos, poucos, em que não bebiam. Nunca se percebia se transportavam o rosto de um vazio ou de uma enorme tormenta interior. Talvez fossem só inadaptados à lentidão da vida que enfrentaram no pós-guerra. Um dia, o meu amigo dos comandos atirou uma granada contra uma parede qualquer numa noite de bebedeira. Não morreu ninguém mas a coisa fez estragos. Desde logo nele próprio, que teve de enfrentar a justiça, a família, os amigos e os seus infernos íntimos.
Tenho outro amigo que esteve na Guiné, nos "fuzos". Veio da guerra depois do 25 de Abril mas não se adaptou à pasmaceira da terra, muito longínqua do epicentro da revolução dos cravos que mantinha o país em chamas. O meu amigo ofereceu-se para a vida de mercenário e foi para Angola, onde havia uma guerra. Andou por lá aos tiros ao serviço da FNLA porque sim. Nunca foi de ideologias, era mesmo só para dar uns tiros e sentir o abismo das noites em que se sai sem saber de há-de haver dia. O pânico de saber se se chega ao dia seguinte transformou-se numa estranha nostalgia daquele medo que é capaz de nos empurrar para a coragem mas também para a loucura.
Um dia, muito mais tarde, já de regresso à terra, pegou em granadas e numa metralhadora e simulou um ataque contra uma boite de alterne. Era para brincar às guerras. Depois não aguentou nada do que tinha: a paz, a namorada, um bom emprego, a terra parada, o silêncio sem a tensão do metal e da pólvora a rabiscar no ar. Despejou um frasco de veneno para ratos e deixou uma carta a explicar que foi por aí porque lhe tinham acabado as granadas para se divertir.
Os meus amigos tornaram-se heróis desempregados da guerra. Há poucos portugueses dos quarenta para cima que não conheçam um ou outro destes velhos leões adormecidos no tédio da paz. É destes homens instruídos na doutrina de um trágico heroísmo para se entregarem aos elevados mas nefastos desígnios da pátria que nos fala "Os Imortais", de António Pedro Vasconcelos. E de que nos falara "O Inferno", de Joaquim Leitão, também um belo filme que, infelizmente, só vi muito depois da sua passagem pelos cinemas.
Eu não sou crítico de cinema nem me interessa ser. Os críticos hão-de ter as suas razões para dizer isto ou aquilo de certos filmes. Também não fui à guerra mas fui crescendo um pouco no medo de chegar a minha hora quando da guerra já só havia a hora do regresso dos caixões de pinho. À minha volta, como em todos as pequenas terras da chamada província, havia já muitos mortos, muitos desaparecidos em combate, muito luto. Por essa recordação de um terror que havia de vir mas, sobretudo, pelo intolerável silêncio destes trinta anos de democracia sobre a guerra, vi nos "Imortais" um bocado de mim próprio, da minha família, dos meus amigos, de um país sonâmbulo que se recusa a saber o que foi isso da guerra colonial. Como espectador deste país tocou-me.
Uma visão mais redutora sobre o filme de António Pedro Vasconcelos pode ver nele apenas uma obra dirigida aos labirintos da memória dos que ainda se lembram destas coisas. Mas estão enganados: este é um filme principalmente para todos os outros porque é uma belíssima história sobre nós, portugueses incautos das bravatas esculpidas na mais bruta das ignorâncias, manipulados por todos os mestres da gestão delinquente do poder, como o foram os próceres do antigo regime. É um belíssimo requiem desses milhares de jovens que seguiram em festa para a carnificina ultramarina, embriagados pelo perfume de uma aventura que não teria paralelo nas suas vidas, e que morreram por lá ou vieram acabar, mais tarde, na inadaptação a um país que os abandonou, ou mesmo na rotina sonâmbula de uma nova rotina que não apagou as feridas desses tempos de "cobóiada".
Roberto Alua, personagem engrandecida pela brilhante interpretação de Joaquim de Almeida não é o meu amigo dos comandos que atirou a granada contra uma parede qualquer mas podia ser. Alua é o lobo da guerra que não consegue lidar com a quietude social nem com o sentimento amoroso. Não foi educado nem para uma coisa nem para outra. É o veterano da morte que precisa de sentir de novo o cheiro do sangue e da pólvora. Mas tem uns restos de dignidade e de amor próprio que evitam a sua própria dissolução moral e ética enquanto ser humano. Acorda já muito tarde e só lhe resta a solução clássica de um combatente que não quer cair nas mãos do inimigo. De um herói perdido em território hostil.
Horácio Lobo, nas mãos de Rogério Samora, é um terrível sacana. Foi educado para a morte e precisa de matar, de estar sempre perto dela, até de a escolher como última missão suicida para não falhar um contrato. Mercenário até ao fim. Tantos houve nessas guerras civis que deixámos espalhadas pelos antigos territórios do império.
Por fim Joaquim Malarranha, ou Nicolau Breyner. Magistral figura de velho polícia manhoso que nos vai transportando para a verdade e para a compreensão dessa confraria de lutadores eternos e desses tempos tão incompreensíveis.
Em suma, "Os Imortais" é um filme que respeita integralmente a grandeza da obra literária de Carlos Vale Ferraz, particularmente em "Nó cego" e no livro "Os lobos não usam coleira" que inspira o realizador, mas tem vida própria. Deveria ser tão visto nas escolas como os livros de Carlos Vale Ferraz estudados no ensino secundário. Filme e livros são instrumentos vitais para que não se perca a memória desse trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de treze intermináveis anos. A guerra colonial foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou oitocentos mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida e a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de 8 mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de stress de guerra. Convém que tenhamos consciência disso. Todavia, como se sabe, Portugal prefere os manuais do "Big Brother" e por isso é um país que não merece ter memória.
28.11.03
O REGRESSO DA "VELHA EUROPA"
Esta semana fez-se luz sobre quem manda efectivamente na Europa. A derrota do Pacto burocrático e da Comissão Europeia, representa o "regresso" da União à decisão política. É com decisões políticas, com adaptações sucessivas e com realismo que a construção de uma Europa federal avança, agora que cresce para o seu centro geográfico e político, com o alargamento. Portugal pôs-se do lado certo e isso saúda-se. As economias da União, a começar pela nossa, não podem ficar eternamente prisioneiras da contabilidade de Bruxelas. Se o Pacto também é de "crescimento", que o prove ou que se revogue. O futuro da Europa vai ser forçosamente pilotado pelo eixo franco-alemão, e daí não vem nenhum mal ao mundo ou a nós. A "velha europa", tão atacada pelos apressados transatlantistas, está de regresso. É bom que lá estejamos também.
Esta semana fez-se luz sobre quem manda efectivamente na Europa. A derrota do Pacto burocrático e da Comissão Europeia, representa o "regresso" da União à decisão política. É com decisões políticas, com adaptações sucessivas e com realismo que a construção de uma Europa federal avança, agora que cresce para o seu centro geográfico e político, com o alargamento. Portugal pôs-se do lado certo e isso saúda-se. As economias da União, a começar pela nossa, não podem ficar eternamente prisioneiras da contabilidade de Bruxelas. Se o Pacto também é de "crescimento", que o prove ou que se revogue. O futuro da Europa vai ser forçosamente pilotado pelo eixo franco-alemão, e daí não vem nenhum mal ao mundo ou a nós. A "velha europa", tão atacada pelos apressados transatlantistas, está de regresso. É bom que lá estejamos também.
26.11.03
OS COMEDIANTES
Nas últimas vinte e quatro horas aconteceram coisas extraordinárias neste extraordinário País. Fazendo lembrar as pragas bíblicas, abriu-se um vasto buraco em Lisboa que, à falta de melhor, engoliu um autocarro. Tal como o material na guerra, a natureza tem sempre razão. Não vale a pena contrariá-la, seja pela ansiedade modernaça, seja pela ganância do pessoal do betão, essa espécie tão acarinhada por governos e autarquias. Ainda não estávamos refeitos deste susto anunciado, quando se soube que perdemos, para Valência e para o suave Mediterrâneo, a organização da American Cup em vela. As trombetas estavam prontas para tocar e uns quantos deslumbrados endinheirados preparavam-se para fazer do eixo Algés-Cascais um paraíso temporário para "rich and famous" deste mundo. Não deu, paciência. O preclaro Dr. Arnaut atribuiu a infelicidade às nossas condições climatéricas. Chove muito, parece. Talvez em 2010 o tempo esteja melhor, segundo consta. Entretanto, e pelo caminho, vai desfazer-se a Docapesca e, certamente, propiciar mais uns quantos negócios chorudos aos supra mencionados amigos do betão como forma de os "compensar". Até o Dr. Sampaio se lastimou, o que permitiu enquadrar a coisa praticamente em termos de tragédia nacional. Finalmente, apareceu uma mala suspeita à porta da residência do Sr. Juiz Rui Teixeira, em Torres Vedras, o que propiciou a acção policial adequada, para se concluir que não era nada. Caramba, de vez em quando é preciso justificar aquele aparatus de segurança que persegue o homem para todo o lado! Também se percebe. Um amigo sugeriu-me que mudasse o nome deste blogue para "virtual dos pequeninos". Eu compreendo-o, porém isto é tudo mesmo muito "real". Real, demasiado real. Passa-se entre nós, portugueses, uns verdadeiros comediantes que ninguém, no seu devido juízo, pode levar a sério.
Nas últimas vinte e quatro horas aconteceram coisas extraordinárias neste extraordinário País. Fazendo lembrar as pragas bíblicas, abriu-se um vasto buraco em Lisboa que, à falta de melhor, engoliu um autocarro. Tal como o material na guerra, a natureza tem sempre razão. Não vale a pena contrariá-la, seja pela ansiedade modernaça, seja pela ganância do pessoal do betão, essa espécie tão acarinhada por governos e autarquias. Ainda não estávamos refeitos deste susto anunciado, quando se soube que perdemos, para Valência e para o suave Mediterrâneo, a organização da American Cup em vela. As trombetas estavam prontas para tocar e uns quantos deslumbrados endinheirados preparavam-se para fazer do eixo Algés-Cascais um paraíso temporário para "rich and famous" deste mundo. Não deu, paciência. O preclaro Dr. Arnaut atribuiu a infelicidade às nossas condições climatéricas. Chove muito, parece. Talvez em 2010 o tempo esteja melhor, segundo consta. Entretanto, e pelo caminho, vai desfazer-se a Docapesca e, certamente, propiciar mais uns quantos negócios chorudos aos supra mencionados amigos do betão como forma de os "compensar". Até o Dr. Sampaio se lastimou, o que permitiu enquadrar a coisa praticamente em termos de tragédia nacional. Finalmente, apareceu uma mala suspeita à porta da residência do Sr. Juiz Rui Teixeira, em Torres Vedras, o que propiciou a acção policial adequada, para se concluir que não era nada. Caramba, de vez em quando é preciso justificar aquele aparatus de segurança que persegue o homem para todo o lado! Também se percebe. Um amigo sugeriu-me que mudasse o nome deste blogue para "virtual dos pequeninos". Eu compreendo-o, porém isto é tudo mesmo muito "real". Real, demasiado real. Passa-se entre nós, portugueses, uns verdadeiros comediantes que ninguém, no seu devido juízo, pode levar a sério.
25.11.03
25 DE NOVEMBRO
Em política, como já em quase tudo, a memória é curtíssima. A maior parte dos jovens universitários que vão desfilar por esse País fora, em mais uma cansativa e folclórica "jornada de luta", não era nascida em 25 de Novembro de 1975. Nesse dia, a coragem moral, política e física - tudo espécies de carácter em vias de extinção - de um punhado de "civis" e de "militares", evitou o pior, ou seja, uma possível "guerra civil", em versão original portuguesa. Antes desse dia, no "terreno" e em constante combate, Mário Soares e o Partido Socialista (à altura, um enorme "albergue" de sinceros democratas e de curiosos oportunistas, depois revelados) fizeram o indispensável, como nunca é demais relembrar. No dia certo, quando se anunciou a aventura militar, de mãos dadas com a extrema-esquerda e a complacência estratégica do Dr. Cunhal, que se retirou no momento adequado, emergiu um homem desconhecido, com ar duro e sombrio, escondido nuns permanentes óculos escuros. Liderou com sucesso o "contra-golpe" e impôs-se, de seguida, como chefe incontestado de um exército desfeito, primeiro pela guerra, depois pelas brincadeiras de 74 e 75. Ramalho Eanes foi porventura a criatura que mais poder concentrou nas suas mãos, em Portugal, depois da "revolução". Depois de eleito presidente, em 1976, era também CEMGFA, comandante supremo e presidente do Conselho da Revolução. Nada disso impediu, antes pelo contrário, que voltasse a disciplina à tropa e que se realizasse a institucionalização da democracia. Apesar de tantas hesitações e ambiguidades, sempre respeitei Ramalho Eanes. A ele devemos o lance da liberdade, o de vivermos a liberdade em segurança. E um bom exemplo de coragem. Num texto de apoio à sua recandidatura, em 1980, Sophia de Mello Breyner lembrava a chegada do recém-eleito presidente aos Açores, onde o esperava uma manifestação de arruaceiros autonomistas. Eanes avançou sozinho para eles e perguntou-lhes, "quem vos pagou?". Falhou no episódio PRD e com Zenha. Ainda bem. Afinal, o homem dos óculos escuros provou que era apenas "humano", demasiado humano.
Em política, como já em quase tudo, a memória é curtíssima. A maior parte dos jovens universitários que vão desfilar por esse País fora, em mais uma cansativa e folclórica "jornada de luta", não era nascida em 25 de Novembro de 1975. Nesse dia, a coragem moral, política e física - tudo espécies de carácter em vias de extinção - de um punhado de "civis" e de "militares", evitou o pior, ou seja, uma possível "guerra civil", em versão original portuguesa. Antes desse dia, no "terreno" e em constante combate, Mário Soares e o Partido Socialista (à altura, um enorme "albergue" de sinceros democratas e de curiosos oportunistas, depois revelados) fizeram o indispensável, como nunca é demais relembrar. No dia certo, quando se anunciou a aventura militar, de mãos dadas com a extrema-esquerda e a complacência estratégica do Dr. Cunhal, que se retirou no momento adequado, emergiu um homem desconhecido, com ar duro e sombrio, escondido nuns permanentes óculos escuros. Liderou com sucesso o "contra-golpe" e impôs-se, de seguida, como chefe incontestado de um exército desfeito, primeiro pela guerra, depois pelas brincadeiras de 74 e 75. Ramalho Eanes foi porventura a criatura que mais poder concentrou nas suas mãos, em Portugal, depois da "revolução". Depois de eleito presidente, em 1976, era também CEMGFA, comandante supremo e presidente do Conselho da Revolução. Nada disso impediu, antes pelo contrário, que voltasse a disciplina à tropa e que se realizasse a institucionalização da democracia. Apesar de tantas hesitações e ambiguidades, sempre respeitei Ramalho Eanes. A ele devemos o lance da liberdade, o de vivermos a liberdade em segurança. E um bom exemplo de coragem. Num texto de apoio à sua recandidatura, em 1980, Sophia de Mello Breyner lembrava a chegada do recém-eleito presidente aos Açores, onde o esperava uma manifestação de arruaceiros autonomistas. Eanes avançou sozinho para eles e perguntou-lhes, "quem vos pagou?". Falhou no episódio PRD e com Zenha. Ainda bem. Afinal, o homem dos óculos escuros provou que era apenas "humano", demasiado humano.
24.11.03
23.11.03
JFK
Gore Vidal conta que, estando numa festa acompanhado por Tennessee Williams, e passando por eles o senador J.F. Kennedy, o dramaturgo teria comentado:"que belo traseiro!". Num texto recente, sobre mais uma biografia do presidente americano, Vidal corrobora uma história ventilada por um agente dos Serviços Secretos que vigiava Kennedy, na qual Jack, dentro de uma banheira a que tinha que recorrer frequentemente como terapia para as suas costas doentes, fazia amor com uma ilustre desconhecida, e que, no momento crucial, pediu para a dita meter a cabeça completamente dentro da água, já que - parece- tal situação provoca determinados espasmos na zona erógena feminina, que aumentam razoavelmente o prazer viril. John Kennedy tinha tudo para ser bem sucedido. Como Oliver Stone fez dizer a Nixon no filme homónimo, JFK representava o que os americanos queriam ser, e ele, Nixon, o que eles efectivamente eram. Jack era novo, bonito, sexy, como diríamos hoje, libertino, inteligente e rico. Levou para a Casa Branca o glamour e a alegria trágica da sua vida pessoal - a oficial e a outra - , ao lado de uma jovem e bela primeira-dama, e um par de belos filhos pequenos e fotogénicos. Foi o primeiro político a explorar, com infinita sagacidade, as vantagens da imagem televisiva. Nesse sentido, partilhou com os americanos e com o mundo os seus mil e tal dias de presidência, de tal forma que, depois dos disparos fatais de Dallas, há 40 anos, uma sensação de orfandade objectiva percorreu o globo, como nunca antes tinha acontecido. Mesmo as suspeitas de ligações perigosas e corruptas, supostamente alimentadas pelo pai, para a promoção política do antigo senador, nunca chegaram verdadeiramente a manchar a lenda. A imagem sorridente de JFK ficou para sempre cristalizada, como que num limbo, nos milhares de álbuns fotográficos que o imortalizaram. Não o conseguiremos jamais imaginar velho.
Gore Vidal conta que, estando numa festa acompanhado por Tennessee Williams, e passando por eles o senador J.F. Kennedy, o dramaturgo teria comentado:"que belo traseiro!". Num texto recente, sobre mais uma biografia do presidente americano, Vidal corrobora uma história ventilada por um agente dos Serviços Secretos que vigiava Kennedy, na qual Jack, dentro de uma banheira a que tinha que recorrer frequentemente como terapia para as suas costas doentes, fazia amor com uma ilustre desconhecida, e que, no momento crucial, pediu para a dita meter a cabeça completamente dentro da água, já que - parece- tal situação provoca determinados espasmos na zona erógena feminina, que aumentam razoavelmente o prazer viril. John Kennedy tinha tudo para ser bem sucedido. Como Oliver Stone fez dizer a Nixon no filme homónimo, JFK representava o que os americanos queriam ser, e ele, Nixon, o que eles efectivamente eram. Jack era novo, bonito, sexy, como diríamos hoje, libertino, inteligente e rico. Levou para a Casa Branca o glamour e a alegria trágica da sua vida pessoal - a oficial e a outra - , ao lado de uma jovem e bela primeira-dama, e um par de belos filhos pequenos e fotogénicos. Foi o primeiro político a explorar, com infinita sagacidade, as vantagens da imagem televisiva. Nesse sentido, partilhou com os americanos e com o mundo os seus mil e tal dias de presidência, de tal forma que, depois dos disparos fatais de Dallas, há 40 anos, uma sensação de orfandade objectiva percorreu o globo, como nunca antes tinha acontecido. Mesmo as suspeitas de ligações perigosas e corruptas, supostamente alimentadas pelo pai, para a promoção política do antigo senador, nunca chegaram verdadeiramente a manchar a lenda. A imagem sorridente de JFK ficou para sempre cristalizada, como que num limbo, nos milhares de álbuns fotográficos que o imortalizaram. Não o conseguiremos jamais imaginar velho.
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