22.11.03

A "RETOMA" VISTA...

...pela Filomena:

"Não há sonhos. Só nos resta a frustração de viver para comer e pagar despesas." Filomena tem 34 anos, duas filhas, é educadora de infância e o marido trabalha na Transtejo. Recebem mensalmente cerca de 1500 euros. Dinheiro que só chega para as despesas obrigatórias, como a renda da casa, alimentação, luz, água, infantário. "Vive-se mal", desabafa, lembrando que uma ida ao cinema ou jantar a um restaurante está "fora de questão". Filomena mora no Barreiro e trabalha na zona de Santos, em Lisboa. Este é, praticamente, o único percurso que conhece numa vida de "casa-trabalho-casa". As despesas são inúmeras e a necessidade de contar todos os cêntimos levou-a a tomar a difícil decisão de deixar a filha de nove meses todas as noites na sua mãe que, depois a leva à escola. "A miúda está numa Instituição de Solidariedade Social onde pago 100 euros/mês, sem a carrinha para a ir buscar e levar. Como venho muito cedo para Lisboa, tenho de abdicar da companhia da minha filha à noite", diz. O aumento dos bens de primeira necessidade nos últimos anos - de que culpa o euro - é uma realidade muito presente e confirmada com um exemplo: "O que comprava com 25 contos (125 euros), agora não se consegue com 250 euros. Nem pensar." Para Filomena, défice é sinónimo de "aperto de cinto para o povo. Os políticos e outras pessoas com grandes proveitos, fazem o mesmo tipo de vida. É-lhes indiferente se um litro de leite custa 40 cêntimos ou mais, mas para mim isso é importante". Queixa-se de que ninguém explica às pessoas o porquê dos aumentos dos preços dos produtos e qual o objectivo das medidas do Governo. Só sabe que, como resultado de tudo isso, deixou de comprar roupa de marca para a filha mais velha. E que, muitas vezes, o dinheiro que gasta nos últimos dias do mês é emprestado por amigos. Ou retirado da conta-ordenado.

...pela Ana:

A vida de Ana Santos, 47 anos, não é "um mar de rosas". Vive sozinha com dois filhos, de 13 e 21 anos, e o emprego de auxiliar de educação rende cerca de 600 euros por mês. Do marido, que foi há anos trabalhar para Inglaterra e por lá ficou com outra vida pessoal e profissional, recebe apenas uma pequena verba mensal. Por isso, o dia-a-dia de Ana é recheado de queixas e dificuldades. Como o facto de o ordenado apenas chegar para pagar as despesas da família, incluindo a renda da pequena casa em Lisboa onde vive com os filhos, e da escola do miúdo mais novo que frequenta o sétimo ano. Durante alguns meses a tarefa de "esticar" os euros contou com a ajuda do ordenado do filho, funcionário do Hard Rock Café, mas, recentemente, o final do contrato trouxe o inesperado despedimento. "Gostava que os meus filhos andassem um pouco mais bem vestidos, mas não pode ser. Para eles se apresentarem um pouco melhor, não compro roupa para mim há muito tempo", diz. Do défice pouco percebe, mas sempre gostava que "um político" explicasse como se vive com 600 euros por mês, numa altura em que os produtos custam o dobro de há dois anos. Antes do euro, portanto. Cinema, uma refeição fora de casa, ou um passeio são recordações de outros tempos. E futuro? "Não tenho expectativas. Até dizem que para o ano vai ser pior."

...pela Belmira:

Preços mais altos, impostos mais altos, poupanças em baixa. Esta é a actual situação económica, vista na primeira pessoa por Belmira Lages, de 61 anos. "As coisas parece que aumentam de um dia para o outro", refere, apontando um visível acréscimo de despesas na alimentação ou na saúde. O aumento do custo de vida é uma tendência que identifica no tempo com precisão: "Desde a mudança para o euro que está tudo muito mais caro." Se os bens de consumo exigem hoje uma maior fatia dos rendimentos da família, Belmira e o marido, Francisco Lages, recentemente reformado da construção civil, não deixam também de apontar o aumento dos impostos. "Pagámos mais este ano", sublinham. Resultado de tudo isto, diz Belmira Lages, "é hoje muito mais difícil fazer poupanças". Uma situação para a qual não espera melhorias em 2004: "Para o ano será pior", vaticina. Culpa do défice? A resposta divide-se. Por um lado, este casal diz que é preciso equilibrar as contas do País, mas por outro vai manifestando dúvidas a tanta contenção. Francisco Lages diz que o Governo "devia investir mais em obras públicas, para desenvolver o País e criar mais emprego". Mas sem entrar em obras faraónicas, caso do TGV: "o traçado entre Lisboa e Porto e Aveiro e Vilar Formoso não chegava? Para quê o Porto-Vigo? É dinheiro mal gasto." Investimento bem feito, defende este casal, seria o da melhoria da administração pública. "Paga-se, mas os serviços do Estado não correspondem", critica Belmira Lages. Um cenário sobre o qual não manifesta grande esperança: "Este País é assim e assim continuará a ser."

In Diário de Notícias, 21 de Novembro de 2003. Um trabalho de Carlos Ferro e de Susete Francisco.

Sem comentários: