8.9.10

QUANDO TUDO É CULTURA


«Parece-me que há duas questões distintas a considerar: a primeira é a de saber se há ou não uma mudança de paradigma no tocante à cultura e, muito em especial, no tocante à criação cultural e às artes; a segunda é a de saber se os apoios do Estado à dita criação cultural ávida de subsídios se justificam nessa precisa medida.Quanto à primeira, parece-me evidente que, a haver uma mudança de paradigma, ela vai buscar a sua fundamentação à inépcia, à incapacidade criadora, à ignorância, à facilidade, à permissividade e ao oportunismo. É mais ou menos como na escola. A uma aprendizagem escolar que não vale nada não pode seguir-se uma criação cultural que valha seja o que for. Acontece mais nas artes plásticas e nas ditas "performativas", embora aconteça menos na música, porque esta, pelo menos, obriga a uns aninhos de solfejo… Não vale a pena retomar a questão da nudez do rei (que vai efectivamente em pêlo, tal como veio ao mundo), nem a do coro crítico que a aplaude e legitima pelas mais variadas razões dentro do círculo vicioso de chantagens recíprocas que envolve a crítica e algum jornalismo cultural de amena parceria com artistas, galerias, leiloeiras, museus, investidores e coleccionadores, tornando a criação que se pretende subsidiada uma forma privilegiada de parasitação do Estado para maior glória de todos os comparsas intervenientes. De resto, no tocante às artes plásticas, as grandes crises internacionais têm mostrado bem o desfasamento mais completo entre o valor nominal das grandes colecções que abrilhantam ou caucionam operações financeiras e o seu reduzidíssimo valor real… O que é fundamental situa-se noutro plano: com a pretensa mudança de paradigma e com a legitimação genérica e indiscriminada da proposta soi-disant criativa e artística de todo o bicho careta, a noção de património cultural, seja ele material ou imaterial, tende a esbater-se cada vez mais, até desaparecer por completo. Se todos podem fazer o que lhes der na real gana e assim "geram" património cultural, isso quer dizer que património é tudo. E se património é tudo, isso quer dizer que património não é rigorosamente nada! Ora, passando à segunda questão, o Estado não precisa de se opor a essas bizarras concepções, nem deve fazê-lo. Deve, sim, ignorá-las para efeitos práticos e criar parâmetros de actuação para salvaguarda, valorização e promoção absolutamente prioritárias do património cultural. Quanto a este, o tempo e a consciência colectiva funcionam como filtros imprescindíveis. Trata-se de uma realidade muito complexa e muito rica cujo paradigma, felizmente, ainda não mudou à velocidade e nos termos desejados pelo número infindável dos que estão na fila da sopinha dos pobres. É isso: as políticas da cultura não podem redundar na sopinha dos pobres.»
Vasco Graça Moura, DN

Adenda: Acerca deste "debate" (onde o termo "paradigma" é abusado constantemente), este post em forma de debate. Também Manuel Maria Carrilho - não houve outro ministro da cultura depois dele nem haverá tão cedo por muito que alguns andem no "explicador" - o afirmou recentemente: quando tudo é cultura, então nada é cultura.

Adenda2 (do Carlos Vidal):«Não terei muito tempo para um debate a sério deste texto, infinitamente mais inteligente do que o de Pacheco Pereira. Primeiro, uma questão. E só uma pessoa que conhece o "terreno" da criação a faria; VGM: "Parece-me que há duas questões distintas a considerar: a primeira é a de saber se há ou não uma mudança de paradigma no tocante à cultura e, muito em especial, no tocante à criação cultural e às artes (...)". Boa pergunta, resposta ao mesmo tempo fácil e complexa: há um novo paradigma, ou, se preferir, um novo universo aberto com o grande problema colocado na arte do século XX pelo readymade duchampiano (e suas consequências muito além das artes plásticas, seu berço). Resposta simples, tema complexo - precisamente o do readymade. Mas, tratá-lo com a leviandade de Pacheco, nunca. Faço-lhe notar que VGM e eu, cada um a seu modo, partilhamos relações com certos artistas: por exemplo, Jorge Pinheiro, sobre quem escrevi um livro (Ed Caminho) e VGM poemas e dele é amigo. Em síntese, respeito VGM; não respeito PPereira.»

3 comentários:

floribundus disse...

neste socio-lismo
«eu pago,
tu recebes e gastas»

Anónimo disse...

VGM levanta neste texto ainda outra questão importante que, de algum modo, tinha ficado por tocar ou comentar, das anteriores ocasiões - e que é fundamental para enquadrar todo este fenómeno do lixo cultural pago ao quilo: ela é a questão da educação, ou instrução, e a falta dela: se por um lado ainda por aí vadiam indivíduos produtores-de-arte nascidos em data insuspeita, e que aprenderam na primária a somar e fizeram alguns ditados, por outro é sabido que toda esta facilidade dos subsídios é o território preferencial de toda a espécie de chulos - mas muito mais novos e ignorantes. A vacuidade e a ligeireza daquilo que eufemisticamente é chamado de "cultura" também está relacionado com a bruteza e a espessura dos respectivos "produtores". Melhor, poderá muito bem ser inversamente proporcional: quanto mais ignorante e tapado, mais afoito e atrevido na apresentação de "projectos"; e sortudo na obtenção de apoio-canavilhal. A coisa tornou-se nitidamente num modo de vida, burocraticamente encarado como tal; e sem que qualquer vergonha se note na exigência operária-proletária dos pagamentozinhos a horinhas certas. A "cultura" ou a "arte" (e a respectiva produção) já não são encaradas como algo superior, importante, fundamental, perene, fruto de uma vida de trabalho e de estudo, algo que precisa de recolhimento, que é fruto de obstinação e sacrifício - mas sim como um ofício banal, similar ao de raspador de valetas, no decurso do qual podemos ir tecendo doutas considerações sobre gajas ou futebol. Ao alcance de todos, de facto; e desse modo, para resultados de merda. Outra parva questão prende-se com a utilidade ou a não-utilidade da "arte" (e a cultura, é "útil ou inútil"?), como se isso bastasse para a obtenção de uma definição; mas isto seria outra vasta conversa. O que é certo é que para muitos a "arte" e a "cultura" são muito úteis; e pagam continhas de gás.

Ass.: Besta Imunda

Anónimo disse...

Sem querer saturar o alvo com artilharia, não posso deixar de partilhar uma positiva emoção que tive ao ouvir e ver uma breve notícia no relambório das 20h - SIC generalista: depois de 17 sólidos minutos de mariquice noticiosa sobre as vítimas de Marrocos (desde Alcácer Quibir que não caiam por terra lusos valentes no Norte de África), Rodrigo Guedes de Carvalho passa banalmente por uma noticiazinha preciosa. Então, há pouco mais de um ano, ficou "acordado" entre o Estado e os construtores civis (grandes empresas) que do total ajudicado num ano a essas empresas, 1% seria então "dado" de volta para recuperação de edifícios à guarda dos ministérios - assim o Palácio de Queluz aguarda obras na fachada; "mas ainda não se chegou a um preço com os empreiteiros". As imagens mostravam Pinto-Pavão-Ribeiro (autor e beneficiário do acordo) há mais de 1 ano em frente ao Palácio, presenciando uma palhaçada "performativa" que celebrava o acordo. Pavão-Ribeiro meteu-se com empreiteiros e esperou honestidade. Além do mais ficou patente que as "artes" são aquela coisa sempre útil, pronta a ser usada quando faz falta: a palhaçada "performativa" supra-citada, passava-se toda numa estrutura metálica de andaimes onde dois moços elásticos vestidos de judocas pendiam dos cintos, girando como bonecos e agitando-se como macacos; devem tê-los recrutado no circo-da-palhaça-tété, contribuindo assim para elevar o nível do povo e amparar a rapaziada ex-viciada, ou em "recuperação". "Performativa": quanto mais vaga e inútil é a "arte" mais pomposa e rebuscada é a designação. Isto quer dizer que aqueles meninos tanto podem trepar paredes lisas como fazerem números transformistas em cruzeiros para a terceira-idade a caminho de Ceuta. Bom.

Ass.: Besta Imunda