31.12.07

A ESCOLHA


Não há como um dia depois do outro. E este não é excepção. O que é que continua?«Há na minha opinião três atitudes possíveis perante esta vida absurda. Em primeiro lugar, a atitude da massa, hoï polloï, que simplesmente se recusa a ver que a vida é um disparate. Os seus membros não riem, mas trabalham, acumulam, mastigam, defecam, fornicam, reproduzem-se e morrem como bois presos ao arado, idiotas como viveram. É a grande maioria. A seguir, há os que, como eu, sabem que a vida é um disparate e que têm a coragem de rir dela, à maneira dos taoistas ou do seu judeu. Por fim, há os que, e se o meu diagnóstico é exacto é esse o seu caso, sabem que a vida é um disparate, mas sofrem com isso.» Escolham.

Adenda: Citação de As Benevolentes, de Jonathan Littell (Dom Quixote)

B, DE BLOGUES

Não me apetece entrar naquela coisa infantil dos "melhores bloggers do ano" ou seja lá o que for "melhor do ano". O "melhor do ano", em tudo, é ele terminar hoje. Ponto final. Quanto aos blogues, apenas três observações. A descoberta do Combustões do Miguel Castelo-Branco, um resistente à modorra porcina em vigor, a chegada do Pedro Rolo Duarte, um velho amigo que me dá a segurança de que ainda há formas de vida inteligente na esquerda, e a despedida do Paulo Gorjão, uma palavra atenta e minuciosa sobre esta nossa estranha forma de vida pública, foram os meus privativos acontecimentos "blogosféricos" do ano. O resto é mundanidade mais ou menos conhecida ou por revelar no ano que se segue.

UM BCP LATINO-AMERICANO? - 3


O dr. Cadilhe também quer participar no "momento feira popular" em que se tornou a novela latino-americana do BCP. Depois do PS, do PSD, do governo, de Ulrich, de Berardo e do ámen do único que devia estar calado - Jardim Gonçalves - a lista oficial do regime tem o retorcido dr. Cadilhe pela frente para manter o circo vivo. A lubrificação do mercado, conceito tão caro aos nossos liberais de pacotilha e ao próprio governo, tem destas coisas. Como às crianças, deixá-los brincar.

30.12.07

PEDRA SOBRE PEDRA


Há dias era a "democracia escorreita". Agora é a "economia de mercado escorreita" que pode estar em causa com os srs. drs. Ferreira e Vara directamente aterrados da CGD no BCP. Ontem, em seu nome, Gomes da Silva (vice-presidente do partido e porta-voz de fim de ano e dos fins dos tempos), afirmou dever-se ao PSD a não substituição de Ferreira na Caixa por outro Ferreira qualquer do PS. Claro que foi. Sócrates de certeza que foi buscar Faria de Oliveira a Espanha para agradar a este improvável dueto dirigente do PSD. Finalmente, e segundo ele - ele é Menezes, naturalmente-, esta coisa de Ferreira e Vara trocarem a CGD pelo BCP é de "quarto mundo", um "mundo" que ele parece apreciar já que "exigiu" a presidência do banco do Estado por "troca". Este escorreito Menezes, produto de um quinto ou de um sexto mundo, a cada fala cava mais fundo o papel do PSD na vida pública portuguesa nos próximos tempos. Mais uns meses disto e não sobrará pedra sobre pedra.

29.12.07

JORNALISMO E DEMOCRACIA

Não sou jornalista mas apreciava assistir a este jantar onde se debaterá a pertinente questão de "como será a democracia sem jornalismo". Sem algum "jornalismo", seria seguramente melhor.

NÃO É FÁCIL DIZER BEM

«Para qualquer contrato há uma forma de o rescindir e, se não me forem dadas essas garantias, vou-me embora. Se não puder ir embora, farei a coisa mais horrível para mim, que é deixar de publicar em Portugal», disse o dr. António Lobo Antunes ao Diário de Notícias. Lobo Antunes é um dos maiores mitos editoriais do país. Conseguia ter resmas de livros de sucessivas edições em armazém e, cá fora, a edição seguinte como se as anteriores estivessem esgotadas. Com a chegada de Paes do Amaral à Dom Quixote, Lobo Antunes "ameaça" deixar-nos bem como às suas improdutivas edições. Faça favor.

VIVER DOS RESTOS - 2

Graças ao Fado Alexandrino, a entrevista de Jonathan Littell à Ípsilon do Público pode ser lida na íntegra num comentário a este post.


«Ser uma pessoa decente torna-se difícil. No Ocidente acreditávamos ter encontrado um equilíbrio, mas para o resto da humanidade a vida é um pesadelo.
E não existe solução? Não vê solução?
Todos vamos morrer, O que é que quer que esperemos?
Não há um pouco de espaço para a beleza?
Sim, claro. A beleza está por todo o lado.
Menos no seu livro.
Há muitíssima beleza no meu livro.
Talvez arrasada por tudo o que a rodeia.
Há muita, um pôr do sol bonito é-o, aconteça o que acontecer.
Talvez sejam os olhos de quem observa que podem sujar tudo, até o belo. Resistimos a ver o mundo através desses olhos.
Talvez. A beleza existe apesar dos seres humanos. Se todos desaparecêssemos deste mundo, não acabaríamos com ela. »

C DE CARICATURA, C DE CAVACO


Caricatura: a actual direcção do PSD. O PSD está transformado numa caricatura de oposição, pronto a aceitar as migalhas do poder em troca de ilusões. O partido precisará, em 2008, de uma qualquer coisa extraordinária para varrer a mediocridade instalada, tão bem representada no mais recente porta-voz, o sr. Gomes da Silva. Cavaco parte para a mensagem de ano novo com Faria de Oliveira no sapatinho, por troca com Santos Ferreira no banco do Estado. Toma lá, dá cá. Não convém que o derradeiro reduto contra o absolutismo em vigor se deixe embalar pelo canto da sereia. Pior que o canto, porém, é o silêncio mortífero das sereias, como lembrava Kafka, esse sombrio descodificador dos tempos. Haverá um momento em que Cavaco, liberto do estigma da habitual reeleição majestática, falará. Ainda não será na terça-feira.

A DE ABORTO, I DE INDEPENDÊNCIA


Aqui, aqui e aqui, o Francisco José Viegas deu-se ao trabalho - muito bem feito, aliás - de "balancear" o ano que termina. Não faria nem diria seguramente melhor ou muito diferente. Permito-me, no entanto, acrescentar dois temas que marcaram o ano nacional. O aborto, em cuja campanha contra o "porque sim ou porque me apetece" participei, e a independência de espírito, ou melhor, a falta dela. O absolutismo democrático do PS calou a sua esquerda e enrouqueceu o dr. Louçã com a aprovação da lei do aborto para melhor poder assentar esse seu absolutismo ensimesmado na vassoural figura do chefe. Foi um passo em frente no "progresso" - reparem como o ano encerra com um país mais rico, próspero e confiante justamente em homenagem ao retórico "progresso" e prenhe de excelentes perspectivas de renovação populacional - e um passo atrás noutras coisas que agora não interessam nada. Aliás, a cumplicidade da hierarquia cortesã da igreja neste "progresso" ficou bem ilustrada na eloquência do seu silêncio. Depois, a falta de independência de espírito que marcou, e marca como uma doença incurável e terminal, toda a sociedade portuguesa. Senti isso de perto quando vi amigos de anos e de intimidades feitas afastarem-se, rendidos e vendidos à insolência dos tempos e curvados aos altares da correcção. Sente-se isso todos os dias no nepotismo primitivo com que se embala a pretensa democracia caseira, onde pequenos ogres prosperam como varejeiras sobre a merda. Sente-se isso na fala dos "comentadores" do regime, falsos "independentes" sempre de bem com quem e com o que está. Sente-se isso na gente que ocupa lugares e na gente que distribui os lugares. A falta da independência de espírito corroi e infantiliza. Jamais chegaremos a uma democracia madura com gente vergada, mansa ou amansada pela tirania do correcto. Também pouco importa que cheguemos a lado algum. Tempo de chacais e não de leopardos, tempo de Sedaras e não de príncipes de Salina, este é um momento impróprio para os verdadeiros aristocratas de espírito que aqui saúdo. Pertencer a outra coisa que não a isto, mesmo continuando a falar disto, é a vantagem deles. É ficar - ou sair, como preferirem - por cima.

28.12.07

VIVER DOS RESTOS

Quase no fim de um ano sem interesse algum, recomendo a leitura da entrevista de Jonathan Littell no suplemento Ípsilon do Público (sem link, se alguém o tiver...). "Esses valores em que vivemos, do consumismo, do ganhar dinheiro, não são nada. A nossa sociedade desliza pela memória que lhe resta de ter feito parte dos bons. Vive dos restos."

27.12.07

VARA


A escaramuça levantada em torno da eventual subida de Armando Vara aos céus do BCP - abençoado por várias extraordinárias figuras de accionistas, desde o improvável Berardo ao ex-jornalista Ulrich cuja intervenção foi considerada "decisiva" pelos "especialistas" - vale a pena? Quando ele foi para a administração da Caixa, levantou-se idêntica escaramuça. Aí, porventura com mais razão do que agora. Agora, se bem que curta, o homem já possui alguma biografia na matéria. E não deve ser constantemente perseguido por ter tido a ideia de criar uma fundação paralela à então Prevenção Rodoviária Portuguesa, por ter concluído um curso superior na defunta Independente, numa premonitória antecipação das "novas oportunidades", ou por ter sido sócio de Sócrates e de outros numa empresa de gasolinas na Amadora onde foi candidato a presidente de câmara. Como diria o velho Shakespeare, ele é o que ele é. A questão, parece-me, é outra. Vara não deve nada do que é presentemente na banca à banca. Deve-o apenas ao currículo partidário e governativo. Ele e outros, de outros ou do mesmo partido. Assumir isto, os tais extraordinários accionistas assumirem isto, representa uma mudança de paradigma relativamente ao maior banco privado português - e, por tabela, ao sistema bancário nacional -, já que a CGD faz, por natureza, parte do bolo repartível entre o "centrão" mais um: o PP depois da reciclagem no governo. As últimas desvergonhas perpetradas pelas derradeiras administrações do BCP, nas quais só agora Constâncio reparou, autorizaram o avanço das patrulhas partidárias. Uma carreira puramente partidária, boa, má ou assim-assim, passou a ser mais cotada do que uma carreira exclusivamente ao serviço da gestão bancária. A culpa é de Armando Vara?

TUTELA O QUÊ?


Por falar em mínimo ético, quando foi conhecida a auditoria do Tribunal de Contas à Companhia Nacional de Bailado (CNB) dei conta da minha posição - aqui, aqui e aqui - apenas por ter estado na direcção do Teatro Nacional de São Carlos, agora "fundido" pelos profs. Vieira de Carvalho e Pires de Lima com a CNB, para efeitos de gestão, na OPARTE. Se se confirmar esta notícia, a pessoa em causa devia colocar o lugar que ocupa na OPARTE à disposição da tutela, não por estar condenada em coisa alguma, mas precisamente por um pressuposto ético-político, se é que intui algum. Caso não o faça, espero que a tutela tire as devidas ilações. Afinal, a tutela tutela o quê?

26.12.07

UM BCP LATINO-AMERICANO? - 2

Já se percebeu que esta "troca-baldroca" BCP/CGD/BP tem a ver com a gamela do "centrão". Toma lá o BCP, dá-me cá a CGD. E uma mão lava a outra. Pobre país desprovido do mínimo ético.

OF WOMEN AND THEIR ELEGANCE


O DN revela-nos o fascinante "peso" das mulheres licenciadas na sociedade portuguesa. Basta, aliás, andar de universidade em universidade para entender isto. Marcello Caetano, quando começaram a aparecer algumas - poucas - senhoras no curso de direito, ao Campo dos Mártires da Pátria, perguntava-lhes se não estariam no curso errado. Pelos vistos não estavam. Como não estiveram e não estão, daí em diante, em todos os outros. Aprecio este "progresso" porque interessa-me sempre mais o que as pessoas têm na cabeça do que aquilo que têm entre as pernas. E, sobretudo, incomoda-me o uso do "entre-pernas" para benefício do que falta lá em cima, uma vez mais independentemente do que lá esteja. Acabou definitivamente o mito da loira. Em As Benevolentes encontrei um trecho que explica muito bem a relação homem-mulher. Fica aqui para os consumidores, sobretudo para aqueles que têm a mania que são espertos. «Os homens acreditam com toda a honestidade que as mulheres são vulneráveis, e que é preciso aproveitarem-se dessa vulnerabilidade ou protegerem-na, ao passo que as mulheres se riem, com tolerância e amor ou então com desprezo, da vulnerabilidade infantil e infinita dos homens, da sua fragilidade, dessa friabilidade tão próxima da perda permanente de controle, essa derrocada perpetuamente ameaçadora, essa vacuidade encarnada numa carne tão forte. É bem por isso, sem a mais pequena dúvida, que as mulheres tão raramente matam. Sofrem muito mais, mas terão sempre a última palavra.»

O SILÊNCIO DA WEST COAST


Quando regressar do seu veraneio de fim de ano, o 1º ministro vai finalmente fazer o favor de dizer ao país o que pretende (não) fazer com o "tratado de Lisboa". Até agora, esse tratado trapalhão e gigantesco apenas tem sido servido à mesa dos burocratas que vivem da Europa. Duvido que, fora um ponto ou outro, os políticos que o aprovaram o tivessem sequer lido na íntegra e, muito menos, entendido o que lá vem, aquela inimitável prosa para iniciados. O "tratado" inchou Sócrates e incha a Europa dos conselhos europeus de um orgulho que algum dia terão de engolir em seco. Sou europeísta mas não desta Europa plastificada - uma invenção de meia dúzia de criaturas sem um módico de densidade política ou cultural - tão ilusória como eles. A fronteira, como eles dizem sem saberem o que estão a dizer, termina significativamente na Rússia. Nós somos, de acordo com a piroseira exibida pelas ruas, a "west coast" dos Ronaldos e das Marisas. E isso, realmente, não vale a pena referendar.

O GESTOR DO REGIME

«Sócrates não é Salazar: tem atrás de si 30.000 comensais e micro-carreiristas. Sócrates não é Salazar, pois esse tinha, para bem e para mal, uma visão do mundo, do ordenamento social e das constantes do complexo geopolítico português. Sócrates é, positivamente, o gestor de um regime que nada pode mudar, pois que vive apenas virado para dentro e para a satisfação do apetite de uma parentela extensa de devoristas incapazes da menor assunção daquilo que é o interesse nacional. Com esta gente por mais vinte anos no poder não estaremos, por volta de 2027, 50 anos atrasados em relação à Europa: estaremos 70 !»

Miguel Castelo-Branco, in Combustões

25.12.07

SÓCRATES, O 8º PASSAGEIRO

«Qualquer coisa na mensagem de Natal do nosso primeiro-ministro - não sei se o tom satisfeito, se o olhar elevado (quem é que teve a ideia de pôr o teleponto acima da câmara?) - despertou em mim o pequeno taxista que há em todos nós e, perante o anúncio do bom estado das contas públicas, dei por mim a pensar "O que tu queres sei eu!".»

ÚLTIMO POSTAL DE NATAL


Na "Missa do Galo", em São Pedro, Bento XVI recordou que, quando Jesus nasceu, não havia lugar para Ele. Não havia lugar para Ele porque as hospedarias estavam cheias, esgotadas. Tal como então, também nós, modernos representantes das hospedarias de Jerusalém antiga, dificilmente encontramos - nas nossas atribulações, na nossa tonteria, no nosso egoísmo, no nosso narcisismo - lugar para Ele. Há doze anos, neste dia de Natal, estava sozinho em Havana. Comprei, às escondidas, livros proibidos pelo regime na praça da Catedral. O calor era intenso e, também ali, não queriam que houvesse lugar para Ele. Mas Ele estava ali, naquela praça, por detrás de cada sorriso hospitaleiro, de cada história pessoal contada à pressa, de cada vida sonhada diferente e vivida com a generosa e desesperada esperança cubana. "O Senhor está perto dos contritos de coração” (Sal 34/33, 19), lembrou Ratzinger. "O céu não pertence à geografia do espaço, mas à geografia do coração. E o coração de Deus, na Noite santa, inclinou-Se até ao curral: a humildade de Deus é o céu. E se formos ao encontro desta humildade, então tocamos o céu." A amargura e a futilidade que se apoderaram dos nossos corações impedem-nos de "tocar o céu", isto é, de surpreendermos a esperança onde menos esperamos surpreendê-la. Numa rua de Havana, há doze anos, pediram-me um dólar que recusei. Nunca acreditei na esmola. Acho-a indigna. Disseram-me então: "tu não és um homem mau, és um homem amargurado". Havia, nesta frase singular, uma sabedoria que me ultrapassava porque não estava atento à "geografia do coração". Como Vergílio Ferreira, pergunto e afirmo agora: «Porque se me não apaga a memória de quando nascias vivo? De quando, em noite límpida e frígida, tu descias das estrelas e te aguardávamos no que de novo sorria na nossa solidão? Tudo agora é tão de mais. Tempo de um amanhã sem remédio, e o cansaço, o cansaço. Timbre de sinos de outrora, sinos de prata dobram agora para a morte. Morte de ti. Morte de nós."

24.12.07

OS HOMENS DO REGIME


Um vizinho e companheiro na passeata canina indigna-se com o episódio BCP e com o "quem apoia quem" dentro do regime de que o referido episódio, aliás, emana. Sugere-me o editorial do José Manuel Fernandes no Público. Santos Ferreira geriu as finanças do PS quando Constâncio (Vitor e não Jorge, como por lapso consta no editorial, ou estaria JMF freudianamente a pensar em Jorge... Coelho?) e Vara é... Vara. Os outros também são do regime, umas vezes do lado do PS, outras do PSD, praticando ampla transumância entre lugares políticos e a gestão pública ou para-pública. Como expliquei ao meu vizinho, os homens do regime são como Júlio César: homens de todas as mulheres e mulheres de todos os homens.

POSTAIS DE NATAL - 3


POSTAIS DE NATAL - 2

Fala-se da "magia" desta época. As crianças são enganadas e idiotizadas pela figura de um "pai natal" que não existe. Espertas, anseiam por abrir os pacotes que as esperam a um canto da casa há muito lá postos pelo pai ou pela mãe, "biológicos" ou "de afecto" para sermos correctos. Os adultos, coitados, ainda conseguem ser mais idiotas do que as crianças, correndo de um lado para o outro, alimentados de mentira. Há anos e anos que hoje é véspera de natal. Passa por ser "a festa da família". Mesmo aquelas famílias que se odeiam respeitosamente, não se privam. Aqui houve tempos disso até que, de acordo com o cânone, as pessoas começaram a separar-se e a morrer. A partir de certa altura da vida, o natal é uma imensa caixa registadora que apenas me revela o passivo. O da família, o dos amigos, o dos amantes, o dos conhecidos. Em suma, o que em mim diminuiu de "humano". Por isso o dispenso enquanto "festa" e o lembro exclusivamente como aquilo que sempre foi. O momento teimosamente renovado em que o absoluto Outro se fez homem - "Deus connosco" - para nos "salvar".

23.12.07

POSTAIS DE NATAL - 1

As arcadas da Praça do Comércio, em Lisboa, são o derradeiro refúgio de muitos sem-abrigo. Homens e mulheres de qualquer idade dormem ali, embrulhados em cartão ou, com alguma sorte, num edredão para dois. "Deitam-se" cedo, como pude verificar esta semana quando me encaminhava, ao princípio da noite, para a nova estação do metro, no Terreiro do Paço. De dia, andam por ali de olhos postos em lado nenhum. Não imagino como reagem à Praça aberta aos domingos ao caprichismo demagógico do dr. Costa. Esta gente foi expulsa da vida e não possui quaisquer ilusões sobre a "humanidade". O Filho do Homem nasceu e viveu na maior pobreza material e na maior riqueza do coração. Maria e José bateram a várias portas e ninguém os acolheu. Foi num estábulo, dentro de uma gruta, longe dos homens, escondido e perseguido, que Deus surgiu menino. E esse Menino que emerge amanhã dentro do coração de cada um de nós, nada tem a ver com o materialismo desenfreado associado ao "natal" transformado em centro comercial. Levar o Menino Deus junto daqueles que perderam toda a esperança Nele e no homem, é cumprir a verdadeira mensagem do Natal. "Ele está no meio de nós" quer dizer isso mesmo: intransigência na esperança e na fé, contra o mundo, a frivolidade e a morte. A lição do Menino da gruta é a maior lição de vida destes dias. O resto é lixo.

UM BCP LATINO-AMERICANO?

Santos Ferreira deu-me "aulas práticas" de finanças públicas nos idos de 1981. Era um homem simpático que adorava barcos de recreio, matéria que discutia nas "orais" com alunos que disfarçavam a sua ignorância numa esperta discussão sobre as referidas embarcações. Nessa altura, já tinha estado no Parlamento pelo PS que o conduziu a Macau onde, entre outras coisas, dirigiu o famoso aeroporto. Muito amigo de Guterres, passou despercebido no seu consulado, dedicando-se à gestão bancária. O PS de Sócrates levou-o para a CGD, a que preside. De caminho, impingiu o estimável sr. Vara, um amigo pessoal e político do 1º ministro, para a administração da dia Caixa. Se isto for verdade, significa que o PS pretende ocupar, no BCP, o lugar que até agora pertencia à Opus Dei. E quer dizer que o PS perdeu completamente a vergonha, não se abstendo de intervir directamente nos destinos de uma entidade relativamente emblemática da ténue "pujança" da medíocre sociedade civil portuguesa. Entre um caso de polícia e um caso de partido, venha o diabo e escolha.

O CAMINHO DELES


Entre intervalos dos episódios do CSI, apercebi-me que o dr. Soares e a D. Ferreira Alves lá iam, na passada quinta-feira, "caminhando" à nossa custa, na RTP, pelos locais mais desvairados, com os comentários mais despropositados e com as banalidades mais requentadas. O dr. Soares é um político, não é um pensador e, muito menos, um filósofo. Aliás, a sua "filosofia" ficou imortalizada naqueles três volumes de entrevista feita por Maria João Avillez com esta pérola: "o que me interessa é levar a água ao meu moinho." E Ferreira Alves é muito pouco ou quase nada. Alberto Gonçalves, no DN, assistiu penosamente a tudo. Com a devida vénia, reproduzo. (Foto: Kaos)

«Primeira cena. Mário Soares e Clara Ferreira Alves no interior dos Jerónimos. Falam sobre religião. O dr. Soares diz que a religião "tem uma força", mas apressa-se a inventariar os seus limites. A dra. Clara, inclinada, ri-se: "Não ousa dizer que os deuses são os homens..." O dr. Soares não ousa, embora lembre que "o homem é a medida de todas as coisas" e que "o que temos descoberto nestas últimas duas décadas é extraordinário". Segunda cena. Sinagoga de Lisboa. O dr. Soares, de solidéu, acha que "a religião judaica é extremamente importante" e recorda que foi o primeiro chefe de Estado europeu a pedir desculpa aos judeus. A dra. Clara introduz na conversa Israel e o Médio Oriente e informa que viajou duas vezes com o dr. Soares a Jerusalém. Terceira cena. Mesquita e Catedral de Córdoba. O dr. Soares desfia inocentemente os mitos acerca da tolerância do "Al-Andalus" e exorta ao fim das guerras religiosas. Depois, numa análise mais profunda, revela que os terroristas são seres humanos e que o Ocidente "deve desarmá-los com a bondade" (sic). Quarta cena. Mesquita de Lisboa. A dra. Clara enverga um lenço muçulmano. O dr. Soares explica que Bush, "um flagelo", "incendiou o Médio Oriente e criou um conflito entre o Islão e o mundo cristão." Quinta cena. Sinagoga de Lisboa. O dr. Soares confessa que seguiu a filosofia grega e o direito romano. E que não foi "tocado pela fé". A dra. Clara concorda com um aceno. O dr. Soares cita Julia Kristeva (uma referência seríssima) a propósito da "necessidade de acreditar". A dra. Clara interrompe para decretar o dr. Soares "um iluminista que não foi iluminado pelo divino" e ri-se com o engenhoso trocadilho. O dr. Soares resume: "Sou filho da Revolução Francesa..." E a dra. Clara, que aqui estranhamente não ri, completa: "... e dos direitos do homem". Isto prossegue por outros vinte minutos. Isto é O Caminho Faz-se Caminhando, a série mensal do dr. Soares e da dra. Clara que a RTP transmite. O normal seria imitar a dra. Clara e acrescentar: "... e que o contribuinte paga". Não vou por aí. O Caminho... eu pago com gosto. É verdade que sem gosto também pagaria, mas esse não é o ponto.»

SARKOZY


Mesmo a correr em frente aos Jerónimos onde não reparara em Sócrates, Sarkozy é o único dirigente europeu minimamente estimulante. É este Sarkozy que me interessa e não as Bruni da vida dele.

22.12.07

BACH

Venho da Gulbenkian onde se ouviu Bach, a sua grandiosa Missa em Si menor, BWV, 232. Como escreveu Cioran, "se existe alguém que deve tudo a Bach, esse alguém é seguramente Deus."


Video: Andreas Scholl, "Agnus Dei"

O DESMANTELADOR IMPLACÁVEL


O dr. Menezes, o equívoco em regime ambulatório que dirige o PSD, acha que se deve "desmantelar" o Estado. Melhor. Ele jura que o vai "desmantelar" quando, em 2009, subir a 1º ministro. O dr. Menezes não entusiasma ninguém e é um bálsamo para Sócrates que, aliás, nem lhe liga. Se o PSD não "desmantelar" o dr. Menezes em tempo útil, nem sequer se sabe o que é que, do partido, chega a 2009. Com Menezes, de certeza, é que não se chega a lado nenhum.

21.12.07

LER OS OUTROS

"Que mundo é este?", perguntas bem, Pedro. Já agora, o que é que teria a dizer a isso essa grande evangelista da modernidade, a nossa querida Fernanda Câncio?

O CIRCO SCHENGEN

Vejo as imagens do "circo Schengen", agora montado na Europa Central e de Leste - Barroso muito contente por poder teoricamente "ir a butes" até à Rússia -, e simultaneamente sorrio com a corrosiva prosa de Jonathan Littell escrita (sei-o agora) à mão. Schengen é o Grossraum do século XXI. Oxalá não acabe como o outro.

CONTAR COM ELES


Sócrates, por causa da quadra, felicitou os seus ministros e diz que conta com todos em Janeiro. O país, por seu lado, imagino que apreciaria "não contar" com Correia de Campos, com Pires de Lima, com Manuel Pinho, com Mário Lino, com o prof. Correia ou com o dr. Pereira e mais meia dúzia de "ajudantes". A saída do actual edil de Lisboa do governo reservou o plateau para o 1º ministro, transformando a coisa num exercício praticamente unipessoal. E tanto Sócrates acaba por cansar.

UMA QUESTÃO DE RESPEITABILIDADE

O que se passa com o BCP - "apenas" o maior banco privado português segundo julgo saber - não releva apenas de uma questão interna, "financeira" ou técnica. A circunstância de Pinhal se afastar da corrida na próxima assembleia geral e de, finalmente, o dr. Constâncio exercer os seus poderes de supervisão, impedindo todo e qualquer administrador de 1999 para cá de se candidatar em Janeiro, é uma mancha negra na história do banco. É, sobretudo para a opinião pública que não engole o "economês" vomitado pelos jornais e editores do costume, uma questão de respeitabilidade. De falta dela.

20.12.07

UM PROVINCIANO MODERNO

Há dias, confessava, era ele o "provinciano", pobremente compreendido pelas elites e pela esquerda que o execra com a mesma precisão com que ele a detesta. Agora é a "visão provinciana ultrapassada", a daqueles que não aplaudem de pé, como certos basbaques sem biografia, a "presidência" dele e que o criticam por alegadamente descurar a "frente" interna. Por mim, podia lá ficar ad aeternum. Adoptado, como o gémeo porreiro de Bruxelas. Coisas de um "provinciano" pelos vistos "moderno".

AS FÚRIAS


Como uma récita de ópera, uma sinfonia ou um concerto para violino e orquestra, um livro, nos seus primeiros acordes - as primeiras palavras - permite-nos perceber se o que se segue é grandioso. Não sou dado a ilusões, muito menos literárias. "As fúrias" de Jonathan Littell, tratadas e traduzidas como "As Benevolentes" (designação das Eumenides, as Erínias ou as Fúrias na tragédia de Ésquilo), é a grande tradução do ano (de Miguel Serras Pereira, na Dom Quixote). Oitocentas e noventa e três páginas, para ler, sem uma interrupção, nos horríveis quatro dias seguidinhos de natal que se avizinham. «Apesar dos meus vezos, e foram numerosos, continuei a ser dos que pensam que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, o comer, o beber e a excreção, e a busca da verdade. O resto é facultativo (...). Se suspendermos o trabalho, as actividades banais, a agitação de todos os dias, para nos entregarmos seriamente a um pensamento, as coisas passam a ser completamente outras. Depressa as coisas começam a vir à tona, em vagas densas e negras. À noite, os sonhos desarticulam-se, desdobram-se, proliferam, e ao despertar deixam uma fina camada acre e húmida na cabeça, que leva muito tempo a dissolver-se. Nada de mal entendidos: não é de culpabilidade, de remorsos que aqui se trata. Isso existe também, sem dúvida, não quero negá-lo, mas penso que as coisas são muito mais complexas. Até mesmo um homem que não fez a guerra, que não teve de matar, sofrerá aquilo de que estou a falar. Regressam as pequenas maldades, a cobardia, a falsidade, os gestos mesquinhos que afligem todo e qualquer homem. Não é de admirar por isso que os homens tenham inventado o trabalho, o álcool, as conversas fiadas estéreis. Não é de admirar que a televisão tenha tanto sucesso. »

19.12.07

UMA MINISTRA EM PILATES


«Com o “dirigismo” instituído veio também a irresponsabilidade da mania das grandezas, que afinal vai de par com a fotografia do poder, a da própria governação da Ajuda, que se colhe de uma operação tão lamentável e dispendiosa como a exposição do Hermitage ora aí mesmo patente. Para memória futura, deve pois ser devidamente sublinhado esse outro grande projecto anunciado pela Profª. Isabel Pires de Lima, na entrevista ao “Notícias Magazine” de 16-09-07: “Gostava de ver lançado um grande festival ligado à ópera, os termos ainda não estão bem definidos. Teríamos de criar um festival de ópera que fosse o último da temporada europeia. Uma coisa que poderia ter poderia lugar no mês de Setembro, com produção do Teatro Nacional de São Carlos, mas realizado em vários espaços ao mesmo tempo e eventualmente em espaços ao ar livre, para isso já tive um encontro com o presidente da câmara. Tivemos uma audiência muito frutuosa”. Habituámo-nos em Isabel Pires de Lima àquele inconfundível estilo de uma professora catedrática incapaz de dizer uma frase correctamente articulada em português, com princípio, meio e fim. Mas que ela gostava de ver lançada “uma coisa” que seria um grande festival de ópera, o último da temporada europeia, em Setembro (após o fim de Salzburgo, Bayreuth e Glyndebourne), isso é indesmentível. Seria caso para dizer que se trata de uma cena “buffa”, não soubessemos também já que a ministra da Cultura se toma muito a sério, e que não teria iniciado as diligências (que não se imagina como poderão ter provimento junto da Câmara da Lisboa, na situação financeira em que se encontra) se o projecto não fosse oriundo do próprio intendente-geral dos teatros nacionais e da Opart, o secretário de Estado Vieira de Carvalho. Enquanto no concreto palco do São Carlos se assiste por ora a um vazio de perspectiva, o “dirigismo esclarecido” de Suas Excelências atinge o ponto de delírio de se imaginarem príncipes de “um grande festival de ópera que fosse o último da temporada europeia”, eventualmente até em espaços ao ar livre, talvez junto ao rio, qual nova Ópera de Tejo, como a de D. José que o terramoto destruíu. »


O PSD NO SEU OCEANÁRIO

Via Eduardo Pitta, Rui Ramos no Público de hoje. O país chega ao final do ano sem oposição. Claro que existem os ruídos habituais: o PC, o BE e o dr. Portas, a oposição respeitável, do fato azul sem riscas. Sem se mexer demasiado, Sócrates concretizou o famoso "sonho mexicano" do PS, dos idos de 70 e 80, com a benção do "social" Cavaco. Até a D. Edite Estrela, sua madrinha, o entronizou no púlpito do Parlamento Europeu numa prosa de fazer inveja à Júlia Pinheiro. Menezes é o outro lado feliz - para Sócrates - da sua gloriosa presidência europeia. Saiu-lhe na farinha Amparo. Como quase tudo o resto lhe tem saído, aliás.

18.12.07

POR UM REFERENDO AO TRATADO


Filipe Nunes Vicente, in Mar Salgado

NOMES

O ano começou em "Esmeralda" e acaba em "Pidá".

PALAVRAS

«Há, nos olhos meus, ironias e cansaços.»

MAIS PALAVRAS

Irritantes, frias, mentirosas. "Boas Festas", "Feliz Natal" e "Feliz Ano Novo", por "spam", em "sms" geral. É só carregar num botão e sou indistintamente humano por um segundo. Estes gestos - o lixo humano aprecia muito as novas tecnologias - matam o sentido do Advento. Não têm, aliás, sentido algum. Gramática de filhos da puta.

UM HOMEM EM FORMA DE ASSIM

Ele tão depressa é extraordinário (na entrevista do "animal feroz", ao Expresso, cheia de citações), como é simplesmente "humano" (na entrevista ao El País, um pai) ou apenas um "provinciano", como disse ao Libération, incompreendido pela "aristocracia da esquerda" e pelos "grandes pensadores portugueses". Ele paira entre o ser e o não-ser. É, confessa-o, um homem do anti-pensamento, praticamente improvável, leve, dos tempos. É um homem em forma de assim.

17.12.07

MARROCOS

É evidente que os vinte e três imigrantes clandestinos que deram à costa da ilha da Culatra, no Algarve, não pretendiam cá ficar. Para Marrocos, basta-lhes o país de onde fugiram.

SPE SALVI: «EU VENCI O MUNDO»


Para a Constança Cunha e Sá


Após várias interrupções, acabei a leitura da encíclica Spe Salvi, de Bento XVI, a segunda em menos de dois anos. O título arranca da Epístola aos Romanos: «Spe Salvi facti sumus » – é na esperança que fomos salvos.» Ratzinger retoma o apostolado do seu antecessor que, em diversos textos, deu corpo a uma proposição dos primeiros anos do seu pontificado: "I hope against all hope", "tenho esperança contra toda a esperança." A encíclica é uma meditação devidamente fundamentada sobre o papel da fé - da salvação pela esperança - na vida humana, ou seja, sobre a necessidade de comungar, com a Igreja trinitária, no mistério da vida, esta e a eterna. Aquando da publicação da Deus Caritas Est, exprimi aqui o resultado do que li. Estaria, na altura, menos atento à vida porque a confundia demasiado com a tagarelice do quotidiano. E esse estado significava - só agora o sei - uma subtracção atrevida ao seu "sentido". Há vida para além da fé? Naturalmente que sim. Acontece que a vida jamais será plenamente "humana" sem fé ou sem esperança. O "humano" da vida encontra-se na fé porque a fé "humaniza" a vida. Deus foi, primeiro menino, depois homem justamente para nos "explicar" esta evidência que, não apenas através da fé mas com a razão (tão humana, tão demasiadamente humana), nos compete enxergar. Foi essa a mensagem de Ratisbona. A esperança, tal como a define o Papa, não substitui a minha "vida material", a minha luz, a minha noite ou o meu fracasso. Não melhora a minha relação com o mundo, com os outros, nem a anula. A dado passo, porém, verifico que ela - a esperança - é simultaneamente essa luz, essa noite, esse fracasso, o "inteiramente Outro". Em cada passo perdido, em cada abandono, em cada canto não mais visitado, subsiste a minha esperança "contra toda a esperança". Sem ela seria seguramente um homem morto. Vivo mas "humanamente" morto. Creio e duvido, como sempre. Acredito menos no homem e mais no Filho do Homem. Nestes tempos em que já se deixou de ser e ainda não se é outra coisa - não tenho a certeza de ter tempo para essa "outra coisa" por causa da "canseira do caminho" -, a esperança é a minha fé: «A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.» Isto porque "o céu não está vazio" e "a vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor", uma fé que "confere à vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiança na riqueza material, relativiza-se". Ao contrário de Marguerite Yourcenar - tão admirada nos meus intensos vinte anos -, o "humano" não me satisfaz. Nem tão-pouco o "progresso". Bento XVI diz-me porquê. «A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de João: «Eu hei-de ver-vos de novo; e o vosso coração alegrar-se-á e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria » (16,22). Devemos olhar neste sentido, se quisermos entender o que visa a esperança cristã, o que esperamos da fé, do nosso estar com Cristo.» A esperança, que é fé, revela-me a "ambiguidade do progresso" e apresenta-me "a vitória da razão sobre a irracionalidade" já que «a razão necessita da fé para chegar a ser totalmente ela própria: razão e fé precisam uma da outra para realizar a sua verdadeira natureza e missão.» E Deus é o fundamento da minha esperança, "não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu conjunto. O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a sobriedade dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos: a vida que é «verdadeiramente» vida." A encíclica termina com uma referência a "Maria, estrela da esperança", porque Ela recebeu uma "nova missão" da cruz, esse escândalo que todos os dias me interpela, me comove e me levanta. «A partir da cruz ficastes mãe de uma maneira nova: mãe de todos aqueles que querem acreditar no vosso Filho Jesus e segui-Lo. A espada da dor trespassou o vosso coração. Tinha morrido a esperança? Ficou o mundo definitivamente sem luz, a vida sem objectivo? Naquela hora, provavelmente, no vosso íntimo tereis ouvido novamente a palavra com que o anjo tinha respondido ao vosso temor no instante da anunciação: «Não temas, Maria!» (Lc 1,30). Quantas vezes o Senhor, o vosso Filho, dissera a mesma coisa aos seus discípulos: Não temais! Na noite do Gólgota, Vós ouvistes outra vez esta palavra. Aos seus discípulos, antes da hora da traição, Ele tinha dito: «Tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16,33).»

BACK TO BASICS

Não faz mal. Daqui a trinta ou quarenta anos, com a idade do Tutankamon, estes meninos terão as suas "novas oportunidades" e poderão fazer, em apenas um mês e com um computador de borla, os nove anos da escolaridade básica. É o chamado back to basics em português.

PALAVRAS DE 2007

Insuportáveis, de facto, Tomás: "Maddie", "MacCann". Ou "Esmeralda", "governança", "BCP".

16.12.07

PALAVRAS QUE FALTARAM EM 2007

"Boa noite. Eu sou a Manuela Moura Guedes e este é o Jornal Nacional."

PALAVRAS DE 2007

"Família de afecto" e "pai biológico" são duas das expressões mais horrorosas do ano. Outra é "medida de coacção aplicável" que obriga jovens jornalistas a permanecer horas a fio à porta dos tribunais. Hão-de aparecer mais. Aceitam-se sugestões.

PSD PENUMBRA

Ontem, em Bragança, pela calada de um sábado frio e esquecível, ocorreu um conselho nacional do PSD. Alguém deu por alguma coisa? Sobrou uma ideia, um sobressalto? Até mais ver, só reconheço "um" PSD, o da Madeira. O resto é silêncio e cumplicidade.

A "VOZ DO POVO"


Numa das suas passeatas pelo país, Cavaco Silva afirmou que "em democracia, os agentes políticos têm que estar preparados para ouvir a voz do povo." Parece que era a propósito da educação, mas podia perfeitamente ser a propósito de tudo. Por exemplo, do "tratado europeu". Cavaco e Sócrates farão os possíveis para evitar que a ratificação em Portugal se faça pela via referendária. Já aquando de Maastricht, Cavaco, o então 1º ministro, "outorgou" a reforma do tratado de Roma ao país. Descontando uns colóquios para iniciados onde se defendeu o referendo, a coisa passou indemne. É evidente que o país ignora tudo o que diz respeito à Europa e, a seu tempo e depois desta maravilha "reformadora", a Europa passará a ignorar-nos com outro método. "A voz do povo" é uma figura de retórica, porém, no caso em apreço, uma sociedade amorfa, pobre (material e intelectualmente), não cosmopolita e, em muito sentidos, "anti-europeia" só teria a ganhar em falar da Europa. Não especificamente do "europês" do calhamaço jurídico para orgasmo de burocratas em permanente trânsito de e para Bruxelas. Mas falar da Europa que, para bem e para mal, moldou o comportamento colectivo, a contabilidade da democracia e a sobrevivência política das instituições. O tratado de Lisboa afasta-nos mansamente disto tudo, repondo a "centralidade" no "consenso" europeu. Um pouco de mato periférico (recorro a Vasco Pulido Valente) rapidamente deixará de contar para o que quer que seja. A nossa fronteira continental não acaba na Rússia. Acaba - mesmo e desgraçadamente - já aqui em Espanha. O "povo" é surdo-mudo em relação à Europa. Era bom que, por uma vez, ouvisse e falasse.

15.12.07

"IR À RIBEIRA COMPRAR GRELOS"


«Vi em diferido a assinatura do tal Tratado. Aquele ajuntamento de burocratas não se trata de ralé, mas muito pior, de uma micro burguesia foleira, grosseira, pindérica e analfabeta que discursa banalidades. O último a chegar foi Sarkozy e o que fez ? Saiu do carro, voltou as costas a quem o esperava junto à entrada dos Jerónimos e foi conversar com os jornalistas! Uma ministra dos Negócios Estrangeiros de um dos 27 - não consegui descobrir de quem se tratava - chegou com um vestidinho estampado e aconchegava-se num casaquinho de malha muito apertado, assim a modos de quem vai à Ribeira comprar grelos. Alguns dos chefes de Estado e de governo eram enormes - creio que vindos dos países que irromperam na Europa Central ou no Báltico - encaixavam-se em casacos muito apertados e a mole de carne imensa de cada um deles rebentava-lhes por fora do corpanzil e tinham um ar mesmo pândego; uns mequetrefes que mais pareciam integrar uma procissão de abortos em exibição. Safavam-se alguns, claro: Gordon Brown - que esteve para ser marido da princesa herdeira da Roménia - só veio no final do almoço no Museu dos Coches. O pagode ministerial nem olhou para os coches! Estavam todos muito contentes com uma "mão cheia de nada e a outra de coisa nenhuma"! Uma saloiada à portuguesa! Afinal, à europeia! Está tudo, cada vez mais igual! Onde estão na Europa verdadeiros ministros e grandes senhores como Disraeli, Gladstone, Salisbury, Churchill, Briand, Schuman, Chaban-Delmas, Cavour, Orlando, De Gasperi, Aldo Moro, Cánovas del Castillo, Sagasta e Romanones, esses verdadeiros profissionais da política com biblioteca montada em casa ?»

Miguel Castelo-Branco, in Combustões

LER OS OUTROS

Ainda sobre o lamentável Rigoletto em cena no São Carlos - e sobre o São Carlos e a "estratégia" Mário Vieira de Carvalho para a ópera -, vários textos do Augusto M. Seabra no seu Letra de Forma.

AS "NOVAS OPORTUNIDADES"



Parece que o senhor engenheiro vai atribuir cinquenta mil diplomas - tomem bem nota deste número irresponsável - a criaturas "formadas" no âmbito das suas queridas "novas oportunidades". Até há pouco tempo, e depois de doze esforçados anos de escolaridade, vinha (para quem vinha) a universidade. Muitos analfabetos acederam a um curso superior e não deixaram de ser menos analfabetos pela circunstância de se terem "formado". As elites estão cheias deles, no Estado, no sector privado, nas instituições políticas. Bolonha veio agravar as coisas. A exigência, como o tempo de estudo, diminuiu onde já não era o que devia ser. Os novos licenciados são atirados, ainda de bibe, para um mundo, como agora se diz, "competitivo". Num país miserável como o nosso, "competitivo" quer dizer "amigo ou conhecido de", "recomendado por", etc., etc. Não tem qualquer conotação com mérito ou esforço intelectual ou manual. As "novas oportunidades" são como "aprender filosofia ou geografia em 30 minutos". Nuns escassos meses, anos e anos de escolaridade são "condensados" a bem da qualificação estatística. Teme-se, naturalmente, o pior. Com a sua habitual demagogia, Sócrates está a alimentar o vício ancestral da esperteza saloia. Sem uma economia robusta, sem produtividade, com as empresas decadentes, quais são as reais "novas oportunidades" que esperam estes desgraçados enganados (porque gostam) pela propaganda?

A PERVERSÃO OCULTA


Não conheço o Porto. Ou melhor. Passo por lá, vou lá intermitentemente - gostava de ir e de ficar mais tempo porque gosto da cidade - mas não conheço. O Porto tem sido front page nos últimos anos, nem sempre pelos melhores motivos. A "Porto 2001" foi para esquecer. A "Casa da Música", depois das pouco edificantes peripécias e dos muitos milhões, é uma espécie de "Hot Club" em ponto grande. A promiscuidade entre a política (o PS do srs. Gomes, Gaspar e Cardoso) e a bola criou nichos interditos ao escrutínio público. E, agora, a "onda de criminalidade nocturna" degrada desnecessariamente a imagem de uma bela cidade. Este exercício da PSP serve apenas para mostrar que eles (agentes de autoridade) estão vivos. O comissário de serviço foi, aliás, muito claro :«Temos feito operações deste tipo com uma frequência semanal, mostrando à população que a polícia está empenhada em tranquilizar a cidade. Esta teve mais relevo só por envolver mais meios.» "Tranquilizar" é um eufemismo que quer dizer "nós apenas podemos tocar a superfície das coisas". Não chega. O SIS, a PJ e as outras polícias devem ir mais longe e mais fundo, até àquela perversão oculta debaixo dos malmequeres.

14.12.07

O PRÉMIO

O "prémio Pessoa", uma espécie de actualização democrática dos prémios da FNAT do Estado Novo, foi este ano atribuído à dra. Pimentel que escreveu umas coisas sobre a PIDE e, julgo, sobre mulheres "nacionalistas". A primeira vez que ouvi a dra. Pimentel foi no concurso da D. Elisa, como "consultora". Proferiu umas amáveis banalidades, na senda, aliás, do historiador oficial, o dr. Costa Pinto, sempre chamado à colação nestas matérias. O júri do dito "prémio" costuma ser uma colecção requentada de gente mais ou menos notória do regime. Não se recomendam. Parabéns à prima.
Adenda: João Villabobos, já és suficientemente crescidinho para não embandeirares em arco com prebendas destas. Lá por estarmos em tempo de pai natal, estes "pais" do júri estão demasiado "batidos". E as distinções pretéritas da senhora não me impressionam. É o que não falta por aí.

COURAÇAR A FRAQUEZA

«A dureza volta-se contra nós. É o preço que se paga pela distância que interpomos entre nós e os outros. É uma factura necessária pois de outra forma teríamos de viver encostados. Custa a desenvolver, aprende-se a aperfeiçoar. Quando nos tornamos expertos na arte, a vida corre mais solta. A dependência das pequenas coisas é obrigatória, suporta-se como a chuva miúda. Mas com vantagem couraçamos a fraqueza: é óptimo se vens, aguardo-te enquanto não chegas. Entretanto bebe-se um aperitivo.»

Filipe Nunes Vicente, in Mar Salgado

13.12.07

OS PARTIDOS DO ESTADO


O José Adelino Maltez é das poucas pessoas com quem ainda aprendo alguma coisa. Por isso, chegar a casa e vê-lo comentar, na SIC Notícias, o provável encerramento de pequenos partidos à conta da lei aprovada pelos grandes há três anos, foi uma lição. Como ele bem recordou, muita da gente que nos pastoreia não teria sido nada na vida se não tem passado pela ecologia do "radicalismo pequeno-burguês" - de esquerda ou de direita, passe o recurso ao título de Álvaro Cunhal -, na maioria dos casos, ou pela "dissidência" em relação aos quatro maiores. Nenhum grupúsculo ou partideco fez realmente mal a estes trinta e tal anos de democracia. Pelo contrário, os partidos do Estado - e estou à vontade porque pertenci a um deles durante vinte e um anos - induziram na sociedade e na vida política tantos vícios e tanta cupidez que o cidadão cada vez mais desconfia de uma democracia que se confunde com eles. O fenómeno Alegre nas presidenciais, a derrota do PS numas autárquicas escassos meses após uma maioria absoluta, a eleição do edil de Lisboa por apenas cinquenta e tal mil votos, o progresso da abstenção em todas as consultas populares, nada disto obriga os partidos do Estado a usar a cabeça, se é que a têm. Defendem-se com legislação "caseira" que serve de muro ao que se passa lá fora e que, excluídos os "partidinhos-satélites" estilo "verdes", "PPM's" e outros que tais, expulsa do folclore democrático (uso benevolentemente o termo) outros com idêntico direito à "animação partidária". Ninguém se iluda. Os partidos do Estado - incluo na designação o PC e o CDS - estão destinados a reproduzir humanóides sob a forma de políticos, "replicantes" em linguagem "Blade Runner". Basta olhar para as bancadas parlamentares para se perceber como se degradou, em todos os sentidos, a composição institucional mais representativa. Os partidos do Estado precisam urgentemente de uma "cimeira de Bali" ou de um "protocolo de Quioto".

POR UM REFERENDO AO TRATADO NO DIA DA SUA ASSINATURA


O momento assinalava a subscrição da "Carta dos Direitos Fundamentais" que integra o "tratado" assinado esta manhã em Lisboa. Na sua língua de pau, o senhor presidente em exercício foi confrontado com o protesto de alguns eurodeputados. Reclamavam o recurso ao referendo como método adequado para ratificar democraticamente o documento dos Jerónimos. Foi vaiado e aplaudido ao mesmo tempo no Parlamento Europeu. Cá fora, Sócrates reagiu "à Sócrates". Falou de "folclore democrático" e acusou os que o apuparam, e que defendiam o referendo, de "anti-europeus". Sócrates é fortemente deficitário de cultura democrática. O ar crispado com que aguentou o protesto vale mais do que mil palavras sobre a matéria. É pena que o Parlamento português, tão bem abastecido de monos reverentes, não seja também mais reactivo. O dormente Jaime Gama, como se viu no debate mensal, adora anestesiar o conflito com retórica processual. E Sócrates aprecia este género de respeitinho paroquial que, por muito que lhe custe, a Europa não lhe tem. Há três anos, em Roma, os líderes europeus também se sentaram à volta da fogueira para assinar o tratado de Roma. Vinha aí a "constituição europeia". Não veio. Dois referendos - e um em especial, o francês - ditaram a sua prematura morte. Apesar da propaganda ("um tratado mais modesto", como eles dizem, mas essencialmente a mesma coisa), convém lembrar que a cerimónia de hoje é quase só espectáculo. Quando sair dos Jerónimos para o eléctrico da Carris, a direcção da UE não tem a certeza de nada. O verdadeiro lance do tratado de Lisboa começa aí, quando passar das canetas douradas dos dirigentes para a cabeça dos povos da Europa. Começa ou acaba.

12.12.07

LER

O que não se disse na cimeira de Lisboa.

RIGOLETTO PÁTIO BAGATELA - 2

«Como é possível esta m.?». Henrique Silveira imolou-se pela segunda vez, e com o segundo elenco, na barbaridade em cena no São Carlos. Para já, Christoph Damman em "part-time" não chega. Pires de Lima e Vieira de Carvalho também não, mas isso é outra música.

FERNANDA BOTELHO (1926-2007)


Durante anos, Fernanda Botelho morou perto de mim e retenho a imagem dessa mulher elegante, sempre com uma cesta de vime que usava nas compras. Na sua delicadeza escorreita e irónica, Fernanda Botelho é, por certo, menos lida do que muitas dessas galinhas e galos com penas na mão que vendem desalmadamente livros ultra light. A Botelho, sendo de todos os tempos, foi, nos dias que correm, uma personagem de outros e mais sustentados tempos. Ainda era prima de Camilo e viveu os últimos anos discretamente nas cercanias de Lisboa. ("Tudo à minha volta assume um cariz gerôntico. Estou a viver como uma espécie em vias de rápida extinção, ao lado da minha irmã, também ela invadida pela poeira branca do tempo, a esboroar-se rapidamente (...) Que torturada morte é esta ainda estúpida vida?") Um escritor português do século XX para não esquecer nem confundir com bagatelas.

11.12.07

O SENHOR REITOR

Concordo com o governo no que respeita à figura do director da escola. Quando entrei no liceu - um liceu "progressista", o D. Pedro V, em Lisboa, mesmo antes do "25" - havia um reitor, lá professor. No PREC, o reitor foi sumariamente despedido e substituído por "eleições democráticas dos órgãos de gestão das escolas". Vieram os "conselhos directivos" constituídos por estimáveis criaturas oriundas dos partidos, em primeiro lugar, e da escola, depois. As "associações de estudantes", que supostamente "dialogavam" com o "conselho directivo", e a sinistra figura da "assembleia de escola", uma espécie de revolução institucional permanente que assegurava a "democraticidade do ensino", faziam o resto. Estas falácias condenaram as escolas, os liceus e as várias gerações de alunos ao controlo da FENPROF, à incompetência, ao oportunismo político, à indisciplina e à atomização da responsabilidade. Não há que ter medo das palavras.Bem vindo, senhor reitor.

DO CRIME


Um dos truques mais estafados usado na política para assustar o "povo", consiste em falar-lhe em "insegurança" e no "aumento da criminalidade". Acontece que, chamar isso à colação por causa de ajustes de contas entre gente pouco recomendável, não é correcto. Portas atacou o governo por aí em vez de se concentrar na inexplicável figura do MAI, o académico Pereira, ou na fantástica pessoa do dr. Alípio, director da PJ. Não são as matanças entre o "pessoal da noite" que alimentam climas de insegurança. O "homem médio" preocupa-se com os pequenos furtos, com a eventualidade da sua casa ser assaltada enquanto dorme ou está na sala, com as notas retiradas do multibanco irem parar a mãos alheias ou em ver o carro desaparecer. Muito provavelmente, o "homem médio" até acha louvável que os "homens da noite" se eliminem uns aos outros a tiro, nem que seja no passeio onde mora. Não vale a pena ir por aí.

UM TRATADO SEM SOM

Enquanto escrevia o post anterior, a RTP sem som mostrava-me a Sra. D. Campos Ferreira e seus "convidados". Deu para perceber que se falava da mítica Europa e do não menos mítico tratado, o bobo da festa de quinta-feira. O PS e o governo tinham direito à dupla Sousa Pinto, o menino-bem da JS que caiu nas graças de Mário Soares, e João Gomes Cravinho, secretário de Estado. Os outros eram Miguel Portas e Pacheco Pereira. Nesta matéria, identifico-me plenamente com Pacheco Pereira e não costumo ouvir este Portas. Soares chamou "confuso" ao tratado mas deve achar muito bem que seja aprovado longe das vistas das opiniões públicas, ou seja, sem referendo. Para além de confuso, o tratado é como a emissão que passava à minha frente: não tem som.

RIGOLETTO PÁTIO BAGATELA


Regresso a casa, perplexo, da estreia de Rigoletto, no nosso único teatro de ópera, agora sob a direcção artística do alemão Christoph Dammann e a direcção efectiva do senhor SEC, Mário Vieira de Carvalho. Rigoletto integra, com La Traviata e Il Trovatore, a trilogia das chamadas "óperas populares" de Verdi. Das três, o Rigoletto será porventura o trecho lírico mais dramático. O "prelúdio" anuncia melodicamente o que se vai passar. E o que se vai passar está centrado numa "maldição" e na figura do bobo da corte do Duque de Mântua. O resto é residual em relação ao pathos do referido bobo, Rigoletto. A encenação que o São Carlos estreou prima por ser simultaneamente alarve e analfabeta. É alarve porque "desloca" a tensão nuclear da ópera para lado nenhum, misturando tudo e todos num espaço que tanto pode ser um prostíbulo como o Pátio Bagatela, ali a Campolide. É alarve porque introduz interrupções inusitadas para mover peças do cenário, quebrando a "unidade" musical fundamental da obra. E é analfabeta porque, quem a "pensou", ignora o libreto original preferindo introduzir "novidades" como a incestuosa relação do assassino com a sua irmã, no final, ou provocando uma solução cénica contraditória entre o que se diz e o que se faz quando, por exemplo, Gilda "fala" de Madalena (no original, com pena dela - "mais uma enganada" - e, na encenação, com manifesto ódio, em tudo contrário ao libreto). Ao protagonista - não fixei um nome - falta-lhe o ar e, como aos restantes, falta-lhe o fundamental, a densidade dramática. O Duque de Mântua, já de si algo caricatural, é desgraçado pela figura presentemente em cena. Ninguém lhes terá mostrado um "dvd" com Renato Bruson, Nucci ou Alfredo Kraus? A Gilda, cantada por uma americana com um nome improvável, faz vocalmente o que pode, sem possuir um pingo de dotes histriónicos, como todos os outros, aliás. Até a nossa Elisete Bayan, noutra encarnação, safava-se melhor. Finalmente, a orquestra. Esta récita evidenciou como uma boa orquestra, sem um maestro à altura, pode rapidamente oscilar entre a fanfarra da Carris e uma modesta orquestra amadora de província. Este maestro - também não lhe fixei o nome - destruiu o pathos das notas verdianas sem pestanejar. Para primeiro exemplo da "era post- Paolo Pinamonti", a noite não podia ter corrido pior. O São Carlos - já bastava este novo estranho público de ópera - não precisava regressar ao possidónio depois de um momento por vezes discutível mas inegavelmente cosmopolita. Este Rigoletto não respeita a grandeza musical de Verdi. Este Rigoletto lembra um empadão temperado a caldos Knorr e servido em regime de fast-food. Não se recomenda.

10.12.07

UMA ATLANTICE

"Já se percebeu" que a presença de Marinho Pinto à frente da Ordem dos Advogados causa engulhos a muita gente, à costumada gente do "arco" regimental. O mais incomodado tem sido o inefável dr. Júdice que aproveitou o ensejo para "matar dois coelhos com uma cajadada". Zurze em Marinho e, pelo caminho, ainda consegue ser mais baixote nos insultos a Rogério Alves, o bastonário em exercício, a quem acusou, na SIC, de "não ter princípios." Eu não lhe teria dado o gozo de um processo disciplinar. Ia apenas esperá-lo a Carnaxide e encerrava-se o assunto por ali. A "Atlântico" publica prosas de algumas - poucas - pessoas que intelectualmente respeito. Continuem assim. Não se vendam por tão pouco.

«PERHAPS THERE WEREN'T ANY»

«The Portuguese Prime Minister, Jose Socrates, gave an extraordinary closing speech which spoke about bridges being built, steps forward being taken, and visions being pursued. He went off on such an oratorical flight, in fact, that I became mesmerised by the beauty of the Portuguese language and the elegance of his delivery. I was so bewitched that I didn't register any concrete points in the speech at all. Perhaps there weren't any. But it certainly sounded good.»


Jornalista da BBC, enviado a Lisboa, a propósito do discurso final do senhor presidente em exercício, via Hole Horror

PRADA, DISSE ELE


Contaram-me - porque eu não li - que, na entrevista ao El Pais, reproduzida esta semana pelo Expresso, o senhor primeiro-ministro menciona que calça sapatinhos Prada. Como é que o mundo sobreviveu até hoje sem saber que o 1º ministro português usa Prada? Na primeira entrevista, Sócrates tropeçava a cada frase numa citação. Nesta, já vamos nos seus reais pés. Espero que, à míngua de ideias, a próxima revele o underwear preferido. A "modernidade", de que Sócrates se reclama, não se contenta com menos.

O ESPÍRITO



Neste fim-de-semana, Sócrates inventou "o espírito de Lisboa". Foi a propósito do encontro com os beduínos e com os ditadores africanos. Mas pode servir para a actividade circense que se segue, a assinatura do "tratado reformador". Os panegíricos dos "comentadores" oficiais à "cimeira euro-africana" tiveram algo de pornográfico. Até Marcelo se deixou embalar pela demagogia da propaganda. Ver-se-á, daqui até à próxima "cimeira", o "progresso" que este "espírito" levou até aos povos africanos. Sim, porque, em matéria de negócios com as cleptocracias pretas, não temos tanto pudor como a falar de direitos humanos ou de democracia. Mesmo as declarações mais corajosas, como as da chanceler alemã, foram imediatamente contraditadas pelo sr. Mugabe e tudo se perdeu nas brumas retóricas do tal "espírito". Na prática, esta é a última semana da presidência portuguesa a qual, não tenho dúvidas, será amplamente incensada pelos artistas do costume. Na quinta-feira anda-se "à borla" em Lisboa - por causa do "espírito" - e os dirigentes europeus até vão andar de eléctrico para a fotografia. Nós por cá continuaremos a "ir de carrinho", ou seja, não há "espírito", de Lisboa ou santo, que nos salve. Com ou sem "espírito", Sócrates descerá de novo à terra, ao país bisonho que anda a fomentar. Como nós, não vai gostar da realidade, a começar pelo seu governo. Habitue-se como nós nos temos de habituar. Ámen.

9.12.07

EFEITOS PERVERSOS

Muitos comentadores e "colegas" da bloga acham que não sou democrata. Eu próprio por vezes tenho dúvidas. Todavia, se este homem se considera um, tal significa que qualquer traste o pode ser. São os chamados efeitos perversos da democracia.

A EQUAÇÃO DOS DESALMADOS


No "Angelus" deste domingo, na Praça de São Pedro, Bento XVI recordou São João Baptista e usou as suas palavras para criticar o materialismo associado à época de Advento. Ratzinger falou dos "desertos"- interior e exterior - que ameaçam os homens e, uma vez mais, recordou como é essencial "perceber" e preparar a chegada do Filho do Homem, eterno momento fundador da nossa existência, sem o qual soçobramos e não seremos mais que fracasso. Depois do Papa, veio Sócrates e o seu pequeno cortejo cleptocrático africano, exemplos vivos de tudo o que nega a razão e o espírito humanos. Na crónica do Público - sem link - Vasco Pulido Valente traça o retrato do "herói de plástico" da paróquia. Um dos segredos da sobrevivência socrática é justamente ser um homem dos tempos. Sócrates impõe respeito ao vulgo porque a frugalidade é algo em que não se deve tocar. E Sócrates é a frugalidade em pessoa, sem correr os riscos do humano. A Yourcenar diz algures que "o humano satisfaz-me". Os homens dos tempos, tão exemplarmente representados na política nacional pelo secretário-geral do PS e pela frivolidade dos dias que antecedem o natal, são os homens dos desertos de que fala Ratzinger, e não se satisfazem com o humano. Satisfazem-se sobretudo com as suas extraordinárias pessoas. O homem dos tempos é o que mais se aproxima de uma coisa. O menino que vai nascer em Belém daqui a alguns dias não cabe nesta equação de desalmados.

8.12.07

TEMPO REAL

Uns quantos portuguesinhos foram manifestar-se para a Expo contra a Inglaterra e a favor de Mugabe, o "libertador". Também há rapaziada pró Líbia, com umas bandeirinhas verdes e uns cachecóis "à Arafat". Estes parvalhões mereciam ser despejados, de um helicóptero, em pleno Darfur, por exemplo, para se "manifestarem" e verem o que é bom. Em tempo real.

IGUAIS?


«Entre iguais»? Qual é a bitola do senhor engenheiro? Até Durão Barroso conseguiu ser um bocadinho menos retórico no seu habitual e branco "bruxelense". Ao equiparar ditadores, entre o primitivo e o sofisticado, a dirigentes europeus, apesar de tudo, livremente escolhidos pelo "povo", Sócrates coloca-se de costas perante a imensa indignidade que é a vida da maioria da população africana. A Europa não está a dialogar com gente de bem. E fica mal a Sócrates este deslumbramento adolescente pelas "cimeiras", pelos "tratados" e pelos "acordos" para uma nota de rodapé na história. Ninguém na Europa lhe agradece o frete - o Portugal ultramarino está morto e enterrado e jaz simbolicamente nas outrora belas baías de Luanda e de Lourenço Marques - e África ignora-o pura e simplesmente. Nada ficará "melhor" depois desta "cimeira", como ele imprudentemente insinuou. Não há nenhuma alma caridosa que lhe explique porquê?

7.12.07

AS MISÉRIAS DA DIREITA...

... bem vistas aqui.

6.12.07

A SIBILA


O eng.º João Cravinho deixou por momentos o seu resfastelado poiso no BERD, em Londres, para vir até cá perorar sobre o novo aeroporto internacional de Lisboa. Adepto da Ota, Cravinho indignou-se - não esquecer que se trata do ex-campeão nacional da luta contra a corrupção - pela hipotética escolha de Alcochete a que associou imediatamente "rendas fundiárias". E vergastou o presidente da República por ter recebido a CIP e o seu estudo sem saber quem o custeou (ao estudo). Partindo do princípio que a Ota é tão chão arável e construível como Alcochete, a questão "imobiliária" levantada pelo administrador do BERD, em relação à margem sul, não se colocará na margem norte do Tejo (bem a norte de Lisboa, por sinal), ou os terrenos da Ota são geridos por filantropos? Cravinho é - convém lembrar - um homem do passivo "transportes e obras públicas". Todos os dias a Praça do Comércio, esventrada e destruída na sua ligação com o rio, o recorda. Todas as SCUTS o recordam. E, finalmente, esse imbróglio chamado "estradas de Portugal", o recorda. Para sibila do novo aeroporto, não está mal.

MÓNICA E CESÁRIO - 2

Dr. Barreiros: fico lisonjeado com a comparação com Jorge de Sena, nas suas palavras, um "compulsivo maledicente". Dá-me ideia que já li o que tinha a ler - livros - de Maria Filomena Mónica, da mesma maneira que penso que ela já escreveu os livros que tinha a escrever. Repare que, praticamente desde as gloriosas "memórias", Mónica não prodigaliza um parágrafo aproveitável. E já estou a incluir no balanço quase todos os parágrafos das referidas "memórias". Pessoa/Caeiro, um panteísta como Cesário é, por sinal e na minha modesta opinião, o menos suportável dos heterónimos. Mesmo a famosa referência de Campos ("mestre, meu mestre querido...") não chega para fazer esquecer os irritantes transportes campestres do poeta "guardador de rebanhos". Quando tinha 17 anos, apreciava e comovia-me com tanta verdura. Aos 47, é-me impossível.

CAMINHOS


Através de um artigo de Baptista-Bastos e de uma conversa à mesa, cheguei ao conteúdo do primeiro programa da tv pública com Soares e Clara Ferreira Alves. A RTP levou a dupla a Paris onde o antigo exilado reviveu os lugares por onde passou, entremeado por comentários aparentemente despropositados (sigo BB) da jornalista envolta em casacos de peles. Há muito que Soares faz parte da paupérrima iconografia da democracia portuguesa. Ele, Cunhal e vaga e tragicamente Sá Carneiro, é o que existe. Nos militares, e por muito que isso custe aos jacobinos do regime e aos "soaristas" mais frívolos, haverá sempre Ramalho Eanes. Resmas de programas em praticamente todos os canais, têm sido protagonizados por Mário Soares, nas suas diversificades encarnações. Já estamos, por isso, bem servidos, muito obrigado. Todavia, talvez a RTP queira "redimir-se" e, por tabela, "recuperar" simbolicamente Soares como contraponto à iconografia salazarista em que a mesma RTP participou com o concurso da D. Elisa. Mário Soares nunca teria sido quem foi no país se não tem ocorrido Oliveira Salazar. Todos os "ícones" do "25 de Abril" são o outro lado da moeda cunhada pelo morto de Santa Comba Dão. Adubou-os a todos, sem excepção. Todos "cresceram" politicamente por causa de Salazar, muito mais do que apesar dele. O esquizofrénico resultado final do concurso da D. Elisa e da RTP, se calhar, não foi tão esquizofrénico assim. Quer Salazar, quer Soares, mostraram que efectivamente "o caminho se faz caminhando". Nem que se seja em sentido contrário.

IMPREVISIBILIDADE - 2

Conforme previsto, Chávez já recomeçou a sua "revolução" privada. "Uma vitória de merda", foi assim que este grande amigo de Soares, Sócrates e de Portugal - por esta ordem - classificou o resultado do referendo de domingo. Quem conhece minimamente a América Latina sabe que "cultura democrática" é matéria que não abunda. O sargentão joga com o petróleo e com as melhorias que introduziu nas condições de vida dos mais pobres para olhar com sobranceria um acto eleitoral decidido pela classe média. Esta que se prepare para o pior.

5.12.07

AO CUBO

O mais recente factotum do regime, o melífluo dr. Júdice, "avisou" os seus colegas advogados que, ao escolherem Marinho Pinto para seu bastonário - como efectivamente acabaram por escolher -, estavam a optar por uma "tragédia ao quadrado". A potência matemática inclui o bastonário cessante, Rogério Alves, que, na devida altura, ajudou Júdice a ser eleito chefe da corporação. Não vale a pena recordar que José Miguel Júdice é "senior partner" de uma das maiores firmas de advocacia do país. E que a recomendou publicamente como interlocutora adequada para prestar assessoria jurídica ao Estado, o que lhe valeu um processo na Ordem que ele "arrumou" com um comício promovido nas respectivas instalações aquando da defesa. Júdice saiu do PSD de Marques Mendes para se aproximar de Sócrates. O sinal mais evidente desta transumância em direcção ao poder consistiu em ser mandatário do actual presidente da CML. Neste edificante contexto, é natural que Júdice ressuma o seu ódio de classe - sim, ele é fundamentalmente um homem de negócios - contra o filho do polícia (Rogério Alves) e contra o filho da camponesa e do alfaiate (Marinho Pinto). As mais recentes posições públicas do dr. Júdice reclamam um congresso extraordinário na sua cabeça. Ao contrário do que ele imagina, a nação sobrevive bem sem os seus conselhos e sem as suas opiniões. Sobrevive ao cubo.

PRETOS

Vem a aí a extraordinária "cimeira". Depois dela, que resta? Nada, a não ser ter-se gasto não sei quantos milhões a organizá-la, ter-se sido maçado com as restrições de circulação e ter-se prejudicado os comedouros da Expo durante três dias. Tudo fecha para ver passar os beduínos nas suas viaturas à prova de humanidade. África continuará a ser a mesma terra queimada e abandonada, primeiro pelo "homem branco", depois pelos que "salvaram" a alma africana do dito "homem branco". Nos idos de setenta também fomos "exemplares" na matéria e continuamos a ser com os negócios que alimentam as nomenclaturas perpétuas que lá deixámos. Os apertos de mão e as fotografias trocados entre democratas e ditadores, beneficiam sempre estes últimos. Há coisas em que somos mais pretos que o preto. Nem sequer é preciso explicador.

4.12.07

MÓNICA E CESÁRIO



Maria Filomena Mónica escreveu um livrinho sobre Cesário Verde que não tenciono ler. Por causa da proeza, Mónica não tem parado de conceder entrevistas e, num artigo do Público de hoje, dá conta das suas melancólicas deambulações aos locais onde nasceu, viveu, trabalhou, passou e morreu o poeta de "o sentimento de um ocidental". Sempre gostei de Cesário mas jamais me passaria pela tola erguê-lo a "exemplo" da melhor poesia portuguesa. Joel Serrão redigiu uma bela "explicação" sobre o bardo para a velhinha edição da Portugália e, se bem me lembro, Jacinto Prado Coelho tem um ou dois ensaios concludentes. Mónica apenas se "apaixonou", como uma previsível adolescente, pelos versos de Cesário e, evidentemente, pela sua curta vida, aliás, pouco entusiasmante. O artigo do Público é esdrúxulo e não põe nem tira nada ao que interessa para a "compreensão" da poesia de Cesário Verde ou da já mencionada inexcitante vida do autor. Ao falar de Cesário, como de costume, Mónica fala dela própria e do seu caprichismo burguês. Deu voltas e voltas e acabou na Lapa, mais exactamente no quentinho pequeno-burguês da casa dela. Ficam-lhe mal estes ademanes solipsistas. Experimente antes um piquenique.

REPRESENTAÇÃO E SUPERFÍCIE


O desemprego já vai quase nos quinhentos mil. Somos o quarto glorioso país da Europa a vinte sete nesta matéria. Mesmo assim, as universidades continuam a chutar cá para fora milhares de desempregados "altamente qualificados", as sondagens atribuem maiorias absolutas ao senhor engenheiro e o PSD de Menezes e de Ribau mostra diariamente o que vale. Significa isto que os portugueses estão satisfeitos com a sua vida de merda? Parece-me que não. Significa antes que têm medo de pior. A nossa raça nunca se distinguiu especialmente pela griffe "sangue, suor e lágrimas". Sou até tentado a pensar que o que se seguiu ao fantástico desembarque de 1415 em Ceuta foi fruto de uma circunstância feliz e rara a que, adequadamente, os espanhóis puseram termo em 1580. Daí em diante - não é preciso ser Bandarra para constatar o óbvio - "decaímos". A decadência foi a fórmula jeitosa encontrada para definir a nossa impotência e a nossa larvar estupidez. A democracia não melhorou as coisas, apenas as tornou mais transparentes. Vivemos de representações e à superfície. Sócrates, até mais ver, representa melhor do que os outros e flutua sobre as nossas cabeças como uma pena de peru de natal. Acabará, um dia, não sei quando, como o referido peru, servido quente ou frio.