Para a Constança Cunha e Sá
Após várias interrupções, acabei a leitura da encíclica Spe Salvi, de Bento XVI, a segunda em menos de dois anos. O título arranca da Epístola aos Romanos: «Spe Salvi facti sumus » – é na esperança que fomos salvos.» Ratzinger retoma o apostolado do seu antecessor que, em diversos textos, deu corpo a uma proposição dos primeiros anos do seu pontificado: "I hope against all hope", "tenho esperança contra toda a esperança." A encíclica é uma meditação devidamente fundamentada sobre o papel da fé - da salvação pela esperança - na vida humana, ou seja, sobre a necessidade de comungar, com a Igreja trinitária, no mistério da vida, esta e a eterna. Aquando da publicação da Deus Caritas Est, exprimi aqui o resultado do que li. Estaria, na altura, menos atento à vida porque a confundia demasiado com a tagarelice do quotidiano. E esse estado significava - só agora o sei - uma subtracção atrevida ao seu "sentido". Há vida para além da fé? Naturalmente que sim. Acontece que a vida jamais será plenamente "humana" sem fé ou sem esperança. O "humano" da vida encontra-se na fé porque a fé "humaniza" a vida. Deus foi, primeiro menino, depois homem justamente para nos "explicar" esta evidência que, não apenas através da fé mas com a razão (tão humana, tão demasiadamente humana), nos compete enxergar. Foi essa a mensagem de Ratisbona. A esperança, tal como a define o Papa, não substitui a minha "vida material", a minha luz, a minha noite ou o meu fracasso. Não melhora a minha relação com o mundo, com os outros, nem a anula. A dado passo, porém, verifico que ela - a esperança - é simultaneamente essa luz, essa noite, esse fracasso, o "inteiramente Outro". Em cada passo perdido, em cada abandono, em cada canto não mais visitado, subsiste a minha esperança "contra toda a esperança". Sem ela seria seguramente um homem morto. Vivo mas "humanamente" morto. Creio e duvido, como sempre. Acredito menos no homem e mais no Filho do Homem. Nestes tempos em que já se deixou de ser e ainda não se é outra coisa - não tenho a certeza de ter tempo para essa "outra coisa" por causa da "canseira do caminho" -, a esperança é a minha fé: «A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.» Isto porque "o céu não está vazio" e "a vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor", uma fé que "confere à vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiança na riqueza material, relativiza-se". Ao contrário de Marguerite Yourcenar - tão admirada nos meus intensos vinte anos -, o "humano" não me satisfaz. Nem tão-pouco o "progresso". Bento XVI diz-me porquê. «A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de João: «Eu hei-de ver-vos de novo; e o vosso coração alegrar-se-á e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria » (16,22). Devemos olhar neste sentido, se quisermos entender o que visa a esperança cristã, o que esperamos da fé, do nosso estar com Cristo.» A esperança, que é fé, revela-me a "ambiguidade do progresso" e apresenta-me "a vitória da razão sobre a irracionalidade" já que «a razão necessita da fé para chegar a ser totalmente ela própria: razão e fé precisam uma da outra para realizar a sua verdadeira natureza e missão.» E Deus é o fundamento da minha esperança, "não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu conjunto. O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a sobriedade dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos: a vida que é «verdadeiramente» vida." A encíclica termina com uma referência a "Maria, estrela da esperança", porque Ela recebeu uma "nova missão" da cruz, esse escândalo que todos os dias me interpela, me comove e me levanta. «A partir da cruz ficastes mãe de uma maneira nova: mãe de todos aqueles que querem acreditar no vosso Filho Jesus e segui-Lo. A espada da dor trespassou o vosso coração. Tinha morrido a esperança? Ficou o mundo definitivamente sem luz, a vida sem objectivo? Naquela hora, provavelmente, no vosso íntimo tereis ouvido novamente a palavra com que o anjo tinha respondido ao vosso temor no instante da anunciação: «Não temas, Maria!» (Lc 1,30). Quantas vezes o Senhor, o vosso Filho, dissera a mesma coisa aos seus discípulos: Não temais! Na noite do Gólgota, Vós ouvistes outra vez esta palavra. Aos seus discípulos, antes da hora da traição, Ele tinha dito: «Tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16,33).»
Após várias interrupções, acabei a leitura da encíclica Spe Salvi, de Bento XVI, a segunda em menos de dois anos. O título arranca da Epístola aos Romanos: «Spe Salvi facti sumus » – é na esperança que fomos salvos.» Ratzinger retoma o apostolado do seu antecessor que, em diversos textos, deu corpo a uma proposição dos primeiros anos do seu pontificado: "I hope against all hope", "tenho esperança contra toda a esperança." A encíclica é uma meditação devidamente fundamentada sobre o papel da fé - da salvação pela esperança - na vida humana, ou seja, sobre a necessidade de comungar, com a Igreja trinitária, no mistério da vida, esta e a eterna. Aquando da publicação da Deus Caritas Est, exprimi aqui o resultado do que li. Estaria, na altura, menos atento à vida porque a confundia demasiado com a tagarelice do quotidiano. E esse estado significava - só agora o sei - uma subtracção atrevida ao seu "sentido". Há vida para além da fé? Naturalmente que sim. Acontece que a vida jamais será plenamente "humana" sem fé ou sem esperança. O "humano" da vida encontra-se na fé porque a fé "humaniza" a vida. Deus foi, primeiro menino, depois homem justamente para nos "explicar" esta evidência que, não apenas através da fé mas com a razão (tão humana, tão demasiadamente humana), nos compete enxergar. Foi essa a mensagem de Ratisbona. A esperança, tal como a define o Papa, não substitui a minha "vida material", a minha luz, a minha noite ou o meu fracasso. Não melhora a minha relação com o mundo, com os outros, nem a anula. A dado passo, porém, verifico que ela - a esperança - é simultaneamente essa luz, essa noite, esse fracasso, o "inteiramente Outro". Em cada passo perdido, em cada abandono, em cada canto não mais visitado, subsiste a minha esperança "contra toda a esperança". Sem ela seria seguramente um homem morto. Vivo mas "humanamente" morto. Creio e duvido, como sempre. Acredito menos no homem e mais no Filho do Homem. Nestes tempos em que já se deixou de ser e ainda não se é outra coisa - não tenho a certeza de ter tempo para essa "outra coisa" por causa da "canseira do caminho" -, a esperança é a minha fé: «A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.» Isto porque "o céu não está vazio" e "a vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor", uma fé que "confere à vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiança na riqueza material, relativiza-se". Ao contrário de Marguerite Yourcenar - tão admirada nos meus intensos vinte anos -, o "humano" não me satisfaz. Nem tão-pouco o "progresso". Bento XVI diz-me porquê. «A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de João: «Eu hei-de ver-vos de novo; e o vosso coração alegrar-se-á e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria » (16,22). Devemos olhar neste sentido, se quisermos entender o que visa a esperança cristã, o que esperamos da fé, do nosso estar com Cristo.» A esperança, que é fé, revela-me a "ambiguidade do progresso" e apresenta-me "a vitória da razão sobre a irracionalidade" já que «a razão necessita da fé para chegar a ser totalmente ela própria: razão e fé precisam uma da outra para realizar a sua verdadeira natureza e missão.» E Deus é o fundamento da minha esperança, "não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu conjunto. O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a sobriedade dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos: a vida que é «verdadeiramente» vida." A encíclica termina com uma referência a "Maria, estrela da esperança", porque Ela recebeu uma "nova missão" da cruz, esse escândalo que todos os dias me interpela, me comove e me levanta. «A partir da cruz ficastes mãe de uma maneira nova: mãe de todos aqueles que querem acreditar no vosso Filho Jesus e segui-Lo. A espada da dor trespassou o vosso coração. Tinha morrido a esperança? Ficou o mundo definitivamente sem luz, a vida sem objectivo? Naquela hora, provavelmente, no vosso íntimo tereis ouvido novamente a palavra com que o anjo tinha respondido ao vosso temor no instante da anunciação: «Não temas, Maria!» (Lc 1,30). Quantas vezes o Senhor, o vosso Filho, dissera a mesma coisa aos seus discípulos: Não temais! Na noite do Gólgota, Vós ouvistes outra vez esta palavra. Aos seus discípulos, antes da hora da traição, Ele tinha dito: «Tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16,33).»
5 comentários:
Excelente e "sentido" texto,que faz boa companhia ao artigo do João Bénard no Público de Domingo. Nem sempre concordo consigo (v.g. M. Moura Guedes) mas aqui produziu uma meditação com grande nivel.
“Acontece que a vida jamais será plenamente "humana" sem fé ou sem esperança”.
Fé e esperança, são coisas um pouco diferentes. Eu posso não ter fé numa qualquer divindade mas ter esperança nos homens na humanidade. Isto é, a vida pode, segundo o seu ponto de vista, ser “plenamente humana” quer para ateus quer para crentes.
Não sei se seria este o sentido que queria dar ao seu discurso.
Bateu certo ao que me parece no ponto o autor do artigo supra. Tempo e Eternidade, Espaço e Infinitude, Instante e Vivência da Plenitude do Espírito, Criatura e Criação, dedo de Deus aos Novos Céus e Nova Terra APESAR DO MAL!
Não temais o Homem Novo é o Cristo em cada por Maria Mãe em qualquer lugar onde se respire a Mãe no dizer de Gregório de Monfort.
Parusia Aqui e Agora. Espera e Posse, João!
Texto sublime!
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