28.12.07

VIVER DOS RESTOS

Quase no fim de um ano sem interesse algum, recomendo a leitura da entrevista de Jonathan Littell no suplemento Ípsilon do Público (sem link, se alguém o tiver...). "Esses valores em que vivemos, do consumismo, do ganhar dinheiro, não são nada. A nossa sociedade desliza pela memória que lhe resta de ter feito parte dos bons. Vive dos restos."

5 comentários:

Anónimo disse...

... o FUTURO é um PUZZLE cujas PEÇAS se vão adquirindo, DIA após DIA ...
... que as PEÇAS do ANO 2008 tragam a CHAVE de muitos ENIGMAS ...
... EXCELENTE 2008 ...

Anónimo disse...

Leitura obrigatória para os "TUBARÕES" , os "BANQUEIROS" e os "POLÍTICOS" deste estranho país.

Leitura obrigatória ao levantar e ao deitar, antes das orações ao senhor dos Aflitos, padroeiro do povo.

Anónimo disse...

O livro desse Littell é intragável. Mas o lobby a que ele pertence tem muito poder. Beurk!

fado alexandrino. disse...

Link não há, é uma zona reservada a pagantes.
Vai aí a entrevista que editará como melhor entender.

Poderíamos descrevê-lo como um renegado.

Como assim?

Renegado pode aplicar-se a uma pessoa que se recusa a escrever na sua língua materna, por exemplo.

Bom, o francês é também como se o fosse. Foi cá que estudei.

Quer dizer que é bilingue desde criança.

Sim, sim.

Mas elegeu o francês como idioma de expressão literária e isso significa alguma coisa. Por que é que o fez?

Sei lá. Porque gosto, é a única explicação que consigo dar-lhe.

Gosta ou é um compromisso estético?

Bem, tenho uma relação especial com a tradição literária francesa, mas com a norte-americana também. Um dos meus escritores preferidos é Herman Melville. Não é uma coisa exclusiva. Também domino bem o russo, mas nunca escreverei em russo.

Por que é que escreveu um romance sobre o nazismo, quando é um tema em que já tanto se insistiu?

Ainda bem que se escreveu muito sobre esse tema. Mas isso não significa que se tenha já respondido a todas as perguntas. Em "As Benevolentes" o tema é o carrasco, o assassino, sobre o que também já muito se escreveu, mas quero abordá-lo de um ponto de vista diferente, de uma outra perspectiva. E a questão continua sem respostas adequadas. Fascina-me o tema do carrasco em geral, e mais ainda no mundo nazi, onde se pode estudar a fundo, porque há muito material, documentos, uns à disposição dos alemães, outros que estavam na mão dos soviéticos... Foi por isso que situei o meu romance nesse período. Não queria centrá-lo numa época actual, mais contemporânea. Podia tê-lo feito, mas...

Além disso, entra também verdadeiramente em profundidade, na cruzada russa, que, de tudo o que a história da humanidade conheceu, é o mais parecido com o Apocalipse.

Certo. O que constituiu o âmago da guerra ocorreu no Leste. Eu, que cresci em França, sei que se deu muita importância à ocupação, à Resistência, etc., mas isso pouco mais foi do que um episódio comparado com o confronto entre soviéticos e alemães. Foi isso a essência da guerra.

Todavia, para o romance, a Rússia cumpre o papel de cenário, também porque é lá que se desenrola a acção, mas serve para abordar o que foi inteiramente um fenómeno como o nazismo.

Era esse o objectivo. Não sei se o consegui ou não, mas tentei.

Uma das coisas mais marcantes no livro é que a filosofia, a ideologia nazi, a sua maneira de conceber o mundo assentava em bases culturais muito fortes. O protagonista da história, Max, prova isso mesmo.

Alguns historiadores estarão seguramente em desacordo com isso.

Sim, mas mais consigo, que o analisa perfeitamente no seu livro.

Sim, fui criticado precisamente por isso.

Claro que as conclusões a que chegaram foram cruéis, mas as bases eram muito fortes.

É você que o diz, o que é que posso acrescentar? Não me compete comentar o resultado. Existem muitas opiniões. Eu tenho a minha, mas.... Não vou ser eu a julgar. Tentei, logo desde o início, penetrar nas bases da sua ideologia, li imensas coisas sobre essa matéria, mas obviamente que não li tudo, e não li em alemão. Por exemplo, fui incapaz de acabar de ler "Mein Kampf" ("A Minha Luta"). Creio que compreendo o sentido de muitos dos aspectos da sua ideologia, mas há muitos outros que não conheço. Os mais emocionais são os que me parecem mais estranhos, por exemplo.

Sim, mas essa abordagem surpreende, parece muito inovadora e ousada para um romance.

Desde muito jovem recordo que parecia ser ponto assente que o comunismo foi uma ideologia mais séria do que o fascismo; que tinha a sua própria racionalidade e sentido interno e ninguém levava os nazis muito a sério. Quando comecei a investigar, apercebi-me de que os seus ideais também se baseavam em raízes sólidas. As suas diferenças em relação ao fascismo, o pensamento económico, tudo isso é bastante complexo. Pareceu-me uma visão do mundo bastante elaborada, que não se reduzia apenas ao que um louco vociferava na rádio, embora isso também funcionasse.

Ter-se-á cometido o erro de menosprezar o inimigo nesse campo?

Não. Basta prestar atenção ao que pensavam os intelectuais da época. Os franceses, por exemplo. Nos anos 1930, o estalinismo havia já eliminado milhões de pessoas, enquanto os nazis ainda iam em alguns milhares de vítimas. No início do ano de 1937, Hitler afigurava-se a muitos como uma opção válida, isto sem analisar o factor classe social. Quem pertencesse a uma família abastada, o mais provável era que se aliasse à direita e não à esquerda, salvo algumas excepções. Suponho que em Espanha acontecia o mesmo. Nesse momento, com essa situação, o nazismo era uma opção que depois perdeu todo o crédito devido aos resultados. Nessa altura também o comunismo devia ter caído, mas como ganharam a guerra, conseguiram sobreviver quase mais 50 anos.

Uma das conclusões que se pode tirar deste aspecto é a de que não podemos sentir-nos seguros nem sequer protegidos pela cultura.

Obviamente. Só os ingénuos acreditam que a cultura ajuda a ser requintado.

Nem isso nos vale?

A cultura não nos protege de coisa nenhuma. Os nazis são a prova disso. Pode sentir-se profunda admiração por Beethoven ou Mozart e ler o "Fausto", de Goethe, e ser-se uma porcaria de ser humano. Não existe ligação directa entre a cultura com C maiúsculo e as opções políticas.

Ou éticas...

Isso mesmo. O que pretendo demonstrar, de todas as formas, com uma personagem como Max é que, também num período da história, aliar-se aos nazis foi, para muita gente, uma opção ética. Não se trata de ter escolhido ficar do lado dos maus. Tal como os comunistas, optava-se por uma coisa ou por outra. Ser democrata, também. Inclusivamente agora, que ser democrata implica fazer parte de um lado que às vezes defende coisas horríveis, que comete os seus erros. Os que escolheram os nazis fizeram-no conscientes de que tomavam um caminho para eles ético, cujos erros ou imperfeições deviam ser melhorados.

Mas todo aquele fracasso, aquela queda ideológica tornou-nos muito mais vulneráveis, inseguros, deixou-nos despidos.

A vida é assim mesmo.

Queria provar no seu livro que não fica nada a que se agarrar depois daquilo?

Não sou relativista.

Pois não.

De forma alguma. O que o meu trabalho pretende é ajudar a compreender melhor as decisões que cada um toma e por que é que as toma. Eu tenho as minhas, a minha própria ética, e não creio que apenas disponhamos de duas alternativas. Se se tiver sorte, escolhe-se as mais decentes - mesmo em tempos difíceis se pode optar por coisas adequadas - e isso é que é difícil. Hoje já praticamente ninguém questiona o valor ético do capitalismo ou da democracia, e olhe que há coisas que se podem questionar. O que eu gostava que este livro trouxesse é a percepção de que hoje existem caminhos éticos que se podem seguir graças a lições como aquela. Mas acontece também que muitos rapazes e raparigas de qualquer estado americano escolhem ir para o Iraque torturar pessoas. Eticamente estão muito confusos, claro. Mas é uma confusão compreensível, pois o que é que se pode esperar quando existem juristas nesse país que legitimam a tortura? Quando se lhes dá treino militar em conformidade com isso? Se passam os limites, que importância tem? Ou quando se contrata mercenários para fazer o trabalho sujo, não deviam surpreender-nos quaisquer atrocidades. Não há regras. O problema é que as barreiras que nos colocam não são sociais. Não se pode esperar que alguém não torture por ser boa pessoa e ter piedade; tem de se exigir que ninguém torture ninguém, simplesmente porque existem leis que o proíbem e que isso seja castigado.

O facto é que, mesmo sendo contra o relativismo, também não vamos ressuscitar um absolutismo de brancos e negros. Qual é a saída?

Quando Deus desaparece, coloca-se-nos um dilema. Os valores devem referir-se a algo, devem vir de algum lugar. Num mundo sem Deus, era difícil implantar um sistema ético e moral. As ideologias vieram fazê-lo, substituí-lo, mas também fracassaram, e é por isso que agora não temos nada. E os iPod não vão construí-lo. Nem a compra e venda ou a publicidade. Esses valores em que vivemos, do consumismo, do ganhar dinheiro, não são nada. A nossa sociedade desliza pela memória que lhe resta de ter feito parte dos bons. Vive dos restos.

E, quando diz que deslizamos, nem sequer você afirma contar com uma moral sólida?

Não digo que eu não a tenha, mas acho que a sociedade precisa disso.

Nos Estados Unidos, há actualmente mais pregadores que nunca na televisão. De onde vêm?

Enquanto os Estados Unidos se voltam para a religião, a Europa regressa ao nacionalismo, às políticas de identidade. A Catalunha é um bom exemplo. Os bascos, os belgas... Inclusivamente os franceses, com esse Ministério da Imigração e Identidade nacional que o novo Governo criou. Há crispação com os valores de identidade, o que me parece muito negativo. Por outro lado, as intenções de construir ideologias positivas, que se baseiam na ecologia, na antiglobalização, etc., são muito infantis, imaturas.

A que se pode chamar "bonismo" [de Bono]?

Não quer dizer que se baseiem nisso, há críticos, como Chomsky, muito brilhantes. Também não digo que tenha de se criar uma nova ideologia; digo simplesmente que, se existe a possibilidade de emergirem novos valores, baseados no respeito pelos seres humanos e por este mundo, sejam bem- vindos.

Mas a batalha ideológica mantém-se. Mais suavizada, mas mantém-se. E aí, os neoconservadores, que serão a extrema-direita dos nossos dias, parecem estar em vantagem.

Os "neocon" estão acabados. Nos Estados Unidos, sem dúvida, resta-lhes um assalto.

Bush arrasou com tudo?

Sim, se virmos bem, o que são os "neocon"? São gente que tentou assaltar o poder já com Nixon, Reagan e Bush pai e fracassaram, porque ninguém os levava a sério. Com Bush filho conseguiram implantar-se e a sua gestão foi um retumbante fracasso. E pronto, acabou-se. Fracassaram.

Tentaram há muitos anos, não conseguiram, mas com o tempo acabaram por conseguir. Quem é que nos diz que agora não existem outros mais radicais que poderão chegar ao poder dentro de alguns anos?

Nessa altura não os admitiam por serem radicais. Reagan e Bush eram muito de direita, mas não tanto como Richard Pearl, Cheney ou Rumsfeld e Wolfowitz. Por isso Bush não pôde contar com os apoiantes do pai. Bush Jr. e Rove conseguiram uma aliança no Partido Republicano entre os "neocon", os fundamentalistas religiosos e os liberais. Mesmo os fundamentalistas e os "neocon" são diferentes. O que interessa aos primeiros são os comportamentos culturais, abortos, moral, e não querem saber de invadir países ou da política externa. São propostas "neocon" e fracassaram totalmente. Lixaram tudo, foram para o caraças e deixaram o país muito pior do que o encontraram. Para eles, a questão é como sair do Iraque ou do Afeganistão o mais depressa possível.

Pois, mas quem nos garante que não vão voltar?

Sim, mas o que temos neste momento são os fundamentalistas religiosos. Os "neocon" eram um grupo de universitários que não representava ninguém. Os outros teceram toda uma teia de poder, com muito dinheiro. São verdadeiramente perigosos. Gente que promove exércitos privados, o uso de armas. Esses, sim, constituem um perigo.

Nos nossos dias, são o que há de mais parecido com um nazi?

Não gosto de fazer comparações, é diferente. Não digo que um belo dia não façam um golpe de Estado. O que os anima é gente armada até aos dentes que para um democrata pode chegar a causar danos. Os exércitos privados assustam. Já passei por algumas experiências na Tchetchénia.

Passou parte da sua vida na Rússia.

Sim, cinco anos. Dois anos na Tchetchénia e o resto em Moscovo.

Acha que se descuidou a atenção a dar à Rússia e que aconteceram lá coisas graves, enquanto o mundo olhava para outros lados?

A Rússia, definitivamente, converteu-se num Estado fascista. É óbvio. A ideologia oficial é extremamente racista.

O que é que se podia esperar de um dirigente do KGB como Putin?

Pois, mas não me parece que esta situação possa perpetuar-se. É uma situação muito frágil. Mas é possível uma saída para a Rússia. Este é o último suspiro do sistema anterior e podem perder o controlo ao ponto de poder surgir algo interessante. Os democratas russos não estão de todo desesperados, vêem que vale a pena, porque se pode fazer alguma coisa.

Sim, mas, entretanto, todo o panorama é muito assustador.

Claro, a Rússia é um país aterrador. Tenho um amigo íntimo árabe que vive lá a quem deram umas punhaladas quando ia para casa, em Moscovo. É horrível.

Chegou a ter problemas com as autoridades?

Na Tchetchénia, constantemente. Contra a minha vontade, acabei lá o meu trabalho em 2001, quando ainda não havia tanto conflito.

O que é que fazia?

Trabalhava para uma ONG. Acção contra a Fome.

Quando terminou, para onde é que foi?

Trabalhei no terreno durante uns anos e depois decidi deixar para, por exemplo, escrever este livro.

Quanto tempo demorou? Embora seja um desses livros que se escrevem na cabeça ao longo de uma vida.

Já me perguntaram isso umas 20 vezes, portanto já deve saber.

Sim, mas conte lá.

Passei muitos anos a pensar sobre ele, demorei uns cinco anos a trabalhar a fundo nele, incluindo a investigação a escrita, a correcção... Sim, escrevê-lo propriamente demorei pouco.

E não acha que o resultado é demasiado?

O quê?

Talvez seja preciso menos do que escreveu para deixar tudo claro.

Não estou a perceber.

O seu trabalho talvez intimide.

Não. Por quê?

Às vezes parece excessivo.

Olhe, é o que tem de ser... Não sei.

Claro que cada livro tem a sua própria medida, o seu volume.

Bom, eu empenhei-me em conseguir aquilo a que me propus. Se o consegui, é outra questão.

E o que é que queria conseguir? Algo parecido com o que se disse, um "Guerra e Paz" dos nossos dias?

Não, não, não, caramba! Apenas responder a uma simples pergunta que se me colocava. E que conduziu a algo demasiado grande para conseguir uma resposta.

Qual era a pergunta, a grande pergunta que se lhe colocou?

A natureza do crime de Estado.

A natureza do mal também?

Para mim, o que é o mal não tem tanta importância. Isso é melhor deixar nas mãos de perspectivas religiosas. O mal é um resultado, não é algo transcendente. Tal como o bem também não é. São acções que não permitem estados estranhos ao ser humano, dependem da vontade das pessoas.

Seguramente, leu o que Vargas Llosa disse do seu livro.

Não me recordo.

Disse que era um livro impressionante, mas que não deixava quaisquer resquícios de esperança.

Pois, é que eu não acredito na esperança. Não tenho esperança em nada. E se nos fixarmos no mundo, tudo é um espanto. Ser uma pessoa decente torna-se difícil. No Ocidente acreditávamos ter encontrado um equilíbrio, mas para o resto da humanidade a vida é um pesadelo.

E não existe solução? Não vê solução?

Todos vamos morrer, O que é que quer que esperemos?

Não há um pouco de espaço para a beleza?

Sim, claro. A beleza está por todo o lado.

Menos no seu livro.

Há muitíssima beleza no meu livro.

Talvez arrasada por tudo o que a rodeia.

Há muita, um pôr do sol bonito é-o, aconteça o que acontecer.

Talvez sejam os olhos de quem observa que podem sujar tudo, até o belo. Resistimos a ver o mundo através desses olhos.

Talvez. A beleza existe apesar dos seres humanos. Se todos desaparecêssemos deste mundo, não acabaríamos com ela. A beleza não depende de quem a observa. É certo que contamos com ela criada pelos seres humanos, a arte, sem ir mais longe, mas a beleza existe, naturalmente.

Personagens como estas também podem retorcer a beleza.

Quem?

Os nazis.

Não, isso é demasiado simplista. É próprio dos psicopatas. Procurar a beleza ou a excitação no crime. Mas no caso do nazismo, até os crimes, que eram uma estratégia de Estado, tinham de ser executados por pessoas do mais comum que há.

O que é que pensa daqueles intelectuais, críticos, vítimas que não acham legítimo escrever sobre o Holocausto sem nada ter a ver com essa experiência? Não os receia?

Importa-me pouco as reacções, e também acho que não se deva limitar ninguém. Todos temos direito a um ponto de vista.

E encontrou as respostas que se lhe colocaram?

Diria que alguns elementos se tornaram mais claros. Mas não creio que exista uma resposta. Enfim, já sabem como funciona esse sistema, como se organiza o terror de Estado. Posso ter percebido melhor algumas coisas, embora persistam, para mim, mistérios.

Consegue imaginar como foi?

Continua a ser para mim um mistério. O facto de se organizar assassinatos maciços, o facto de que uma pessoa possa matar outra é que acho estranho, raro, que enquanto aqui estamos alguém possa estar a torturar, num qualquer sótão, um ser humano. E o facto de me ter cruzado na vida com gente que o faz, com gente que matou, torturou com as suas próprias mãos. Cruzei-me com muitos. Mas ainda assim parece-me estranho que na cabeça dessa gente possa caber a possibilidade de amar os filhos, a família e ao mesmo tempo torturar os seus semelhantes ou filhos de outros. Tentei analisar e ver através dos olhos de Max, inclusivamente ele tenta compreender quem lhe dá as ordens.

Por que é que deu à estrutura do livro uma forma musical?

Parece-me bem contar com o contraponto.

Ao ponto de Bach ter muito a ver com este livro.

Sim, certamente. Gosto muito.

Mas disse que não lhe resta esperança e Bach proporciona bastante.

Proporciona-me beleza, não esperança. É bom saber que existiram pessoas que concebem o mundo como Bach. Ele acreditava em Deus, criava para Deus, a sua música depende de inspirações teológicas, daquilo em que acreditava. Não compartilho da mesma opinião, mas fico com toda a beleza. Bach é precioso, mas nunca evitaria que uma pessoa fizesse mal a outra, embora eu possa estar enganado.

A questão é que Bach transcende o teológico. Atravessa o divino e também toca a alma de agnósticos e de ateus.

A fuga é uma expressão musical do mistério da Santíssima Trindade. Três partes numa.

A Trindade não é puro relativismo?

Claro, claro, mas para os cristãos é fé.

Sim, um dogma. Mas um dogma que vem a ser relativo: três partes para um fim, três prismas para um objectivo. É o cúmulo da relatividade. Toca algum instrumento?

Não, não. Gosto de música antiga e barroca, Purcell, Monteverdi. Do século XIX, já não tanto.

Wagner?

Wagner? Não, por amor de Deus. Que horror! O meu limite está em Beethoven. Depois disso, perco-me, consigo aguentar Chopin.

Por que é que não gosta de Wagner?

Porque é insuportável. É como uma papa, pesada, pastosa. A sorte é que depois, com Debussy e Schönberg, regressa a forma, embora seja uma forma discutível. Mas é uma forma.

Para além da busca de respostas, este livro denota uma profunda ambição. Qual era, em termos artísticos?

Fazer uma obra bem feita.

Além disso ganhou o Prémio Goncourt...

Fiz tudo para o evitar, mas, infelizmente, sim, atribuíram-mo.

Mas não o foi receber.

Não o queria.

Porquê? Por que é que recusa um prémio que tanta gente ambiciona?

Não acho que os prémios tenham a ver com a literatura. Têm mais a ver com a publicidade e com o marketing, mas não com a literatura. Não é coisa que me agrade.

Sim, mas, bem, é um bom prémio, pode viver agora em Barcelona tranquilamente graças ao seu impacto...

Vim para cá antes. Sim, o dinheiro está bem, é outra coisa. Acontece que não me agrada a competência e esse lixo todo, a não ser que interesse mais o estatuto social do que a arte. Também não escrevi este livro para ganhar dinheiro, isso posso garantir.

O que é para si a literatura? Como é que ela o contagiou?

Lendo.

E o que é que leu que lhe fez desejar ser escritor? Porque há livros que contagiam e outros que não.

Para já, há autores que me marcaram: Bataille, Kafka, Beckett, Melville... e outros tantos.

É dos que acham que o romance morreu?

Se esse debate existe, não lhe encontro grande sentido. Os meus gostos literários são de prosa, inclusivamente, continuo a descobrir coisas que me surpreendem. Não vejo que o género esteja em risco.

Esse desprezo que dizem que tem mostrado pela cultura norte-americana é verdade?

Não, não.

Foi mal interpretado?

Escreveu-se tanta porcaria a meu respeito que não ligo nenhuma. Há elementos dessa cultura de que não gosto nada, mas não me posso queixar. Desprezo certas maneiras conservadoras, retrógradas e fascistas da cultura norte-americana, esse consumismo obsessivo, mas existem coisas muito interessantes.

Sente-se um membro desse clube de Bartlebys que Enrique Vila-Matas fundou?

Bartleby, o escrevente, é um livro que me fascina. Essa personagem que não deixava de dizer que preferia não o fazer de uma certa forma foi a imagem que passaram de mim, a atitude para com o Prémio Goncourt.

Em que é que está envolvido neste momento?

Em nada. Apenas tenho tempo para me concentrar em coisas sérias com tudo isto.

Mas está a escrever?

Não.

Não quer escrever outro romance?

Veremos. Passo a vida em coisas que me vêm deste maldito livro, estou farto.

Maldito livro? Já o detesta?

Não, tê-lo escrito, não. Mas tudo o resto. Repetir esta entrevista 30 ou 40 vezes...

Não dá muitas.

Demasiadas para o que gostaria. Não lhes vejo sentido, a menos que surjam coisas novas. Tem de as fazer, faz parte do seu trabalho e devem vender jornais. É puro comercialismo, não tem nada a ver com outra coisa. Dei algumas entrevistas interessantes, em que surgiram alguns elementos novos e por isso valem.

E nesta disse alguma coisa de novo?

Não.

Então acrescente.

Não tenho mais nada a acrescentar.

Tradução de Ana Isabel Palma da Silva
Exclusivo PÚBLICO/ "El País"

DESTAQUES

"Escreveu-se tanta porcaria a meu respeito que não ligo nenhuma. Desprezo certas maneiras conservadoras, retrógradas e fascistas da cultura norte-americana, esse consumismo obsessivo, mas existem coisas muito interessantes"

"Em "As Benevolentes"" o tema é o carrasco, o assassino, sobre o que também já muito se escreveu, mas quero abordá-lo de um ponto de vista diferente, de uma outra perspectiva. E a questão continua sem respostas adequadas. Fascina-me o tema do carrasco em geral, e mais ainda no mundo nazi, onde se pode estudar a fundo, porque há muito material, documentos, uns à disposição dos alemães, outros que estavam na mão dos soviéticos"

"O que o meu trabalho pretende é ajudar a compreender melhor as decisões que cada um toma e por que é que as toma. Eu tenho as minhas, a minha própria ética, e não creio que apenas disponhamos de duas alternativas. Se se tiver sorte, escolhe-se as mais decentes - mesmo em tempos difíceis se pode optar por coisas adequadas - e isso é que é difícil. Hoje já praticamente ninguém questiona o valor ético do capitalismo ou da democracia, e olhe que há coisas que se podem questionar"

"Não há regras. O problema é que as barreiras que nos colocam não são sociais. Não se pode esperar que alguém não torture por ser boa pessoa e ter piedade; tem de se exigir que ninguém torture ninguém, simplesmente porque existem leis que o proíbem e que isso seja castigado"

"É bom saber que existiram pessoas que concebem o mundo como Bach. Ele acreditava em Deus, criava para Deus, a sua música depende de inspirações teológicas, daquilo em que acreditava. Não compartilho da mesma opinião, mas fico com toda a beleza"

"A nossa sociedade desliza pela memória que lhe resta de ter feito parte dos bons. Vive dos restos"

Anónimo disse...

Intragável 'AS Benovolentes', Vitor? Para mim foi o melhor livro que li nos últimos tempos.