Aqui, aqui e aqui, o Francisco José Viegas deu-se ao trabalho - muito bem feito, aliás - de "balancear" o ano que termina. Não faria nem diria seguramente melhor ou muito diferente. Permito-me, no entanto, acrescentar dois temas que marcaram o ano nacional. O aborto, em cuja campanha contra o "porque sim ou porque me apetece" participei, e a independência de espírito, ou melhor, a falta dela. O absolutismo democrático do PS calou a sua esquerda e enrouqueceu o dr. Louçã com a aprovação da lei do aborto para melhor poder assentar esse seu absolutismo ensimesmado na vassoural figura do chefe. Foi um passo em frente no "progresso" - reparem como o ano encerra com um país mais rico, próspero e confiante justamente em homenagem ao retórico "progresso" e prenhe de excelentes perspectivas de renovação populacional - e um passo atrás noutras coisas que agora não interessam nada. Aliás, a cumplicidade da hierarquia cortesã da igreja neste "progresso" ficou bem ilustrada na eloquência do seu silêncio. Depois, a falta de independência de espírito que marcou, e marca como uma doença incurável e terminal, toda a sociedade portuguesa. Senti isso de perto quando vi amigos de anos e de intimidades feitas afastarem-se, rendidos e vendidos à insolência dos tempos e curvados aos altares da correcção. Sente-se isso todos os dias no nepotismo primitivo com que se embala a pretensa democracia caseira, onde pequenos ogres prosperam como varejeiras sobre a merda. Sente-se isso na fala dos "comentadores" do regime, falsos "independentes" sempre de bem com quem e com o que está. Sente-se isso na gente que ocupa lugares e na gente que distribui os lugares. A falta da independência de espírito corroi e infantiliza. Jamais chegaremos a uma democracia madura com gente vergada, mansa ou amansada pela tirania do correcto. Também pouco importa que cheguemos a lado algum. Tempo de chacais e não de leopardos, tempo de Sedaras e não de príncipes de Salina, este é um momento impróprio para os verdadeiros aristocratas de espírito que aqui saúdo. Pertencer a outra coisa que não a isto, mesmo continuando a falar disto, é a vantagem deles. É ficar - ou sair, como preferirem - por cima.
5 comentários:
excepcional texto. Um guiao do que foi a sociedade portuguesa e do que ela, sem dúvida, continuará a ser. O principe de Salina, algures no livro mostra ao sobrinho a podridaõ da nova itália burguesa e ofuscada com o brilho bafoerento dos titulos e dos salões da velha itália. Aqui, a espuma dos dias é isso mesmo: tudo muda para que tudo fique na mesma.
mtg
«(...)A nova elite, essa faz na imprensa aquilo que os velhos a não deixam fazer na vida política. Destaco o papel de Rui Ramos, combatido, criticado mas entendido por aqueles que nada querem mudar. No fundo, a nova elite nunca chegará ao poder, o que é duplamente triste, pois não haverá rotação na esfera do poder nem fixação de novos valores alternativos. É por isso que os regimes, em Portugal, estão condenados a morrer de reumático(...)».
MCB, in «Combustões»
Por a tónica na existência ou ausência de independência é inteligente e, num certo, restritivo sentido, de acordo com a real fantochada que, nos dizeres de alguns, foi o Referendo ao aborto.
Mas, inteligente ou não, adequada ou não, o texto transpira (involuntariamente?)
a ideia base do Não: o desespero.
Mas, na América latina, o desespero costuma estar do lado da verdade.
o desespero não esta ao lado da verdade. A verdade é que desesperadamentwe tem que ser o rumo. seja não ou sim. a verdade.
exactamente. porque como é sabido 'a verdade não está nem num lado nem noutro, mas sim na constatação deste facto em si'. Yada yada, arco-iris de baú ao fundo para todos.
Enviar um comentário