10.9.10

MYSTIC RIVER

Eduardo Cintra Torres* acredita na justiça portuguesa. É um direito genérico à credulidade apesar de tudo distinto de, contemplando uma mesa, ter-se a expectativa de que aquilo seja mesmo uma mesa e não uma chávena de chá. Nunca, nos posts que tenho dedicado (e tenciono continuar a dedicar) ao processo Casa Pia - porque me parece um "caso de estudo", a vários níveis, do que é este país -, usei termos como "inocente" ou "culpado" contrariamente à generalidade daqueles que comentam, mais ou menos oficiosamente, o caso. Repito-me, perguntando. O que é a verdade? O que é um facto? Aparentemente os que mais exultaram com as condenações de há oito dias atrás satisfizeram-se com aquilo. Para resumir: acabou, palavras da dra. Catalina, do dr. Namora e de um ou outro assistente brevemente mediáticos (duvido que voltemos a ver alguns deles). Cintra Torres fala em abolvição mediática tentada pelos condenados em 1ª instância num momento em que, talvez com a excepção do senhor juiz desembargador Rangel (cujas contantes aparições televisivas não incomodam Cintra Torres como incomodam as de Cruz ou do bastonário incontinente: «é impressionante que um advogado, para mais bastonário, comente na TV um processo judicial que desconhece»; pois é, e um desembargador que pertence à instância de apreciação de recursos?), se desconhece o objecto da decisão. Parece que assim é (e é mal porque é nos labirintos da justiça portuguesa que a coisa continua). Mas o contraponto da busca de uma absolvição mediática não será a condenação mediática dos últimos anos? Ouvi pessoas, que reputo inteligentes, dizerem que bastava olhar para a cara deste ou daquele para ver lá estampado um abusador de menores ou um pedófilo, coisas bem distintas de lá ver, por exemplo, um censor ou um "amigo do alheio". Cintra Torres, por regra e obrigação, sempre tão perspicaz na análise do que comunicam as televisões, não tem uma palavra para o espectáculo de sexta-feira passada a não ser na parte em que "entraram" os arguidos e os seus advogados, também eles inequivocamente cúmplices do miserável espectáculo por terem consentido num talk show cujo guião ainda agora é desconhecido. «Só que, no momento em que os juízes decidem, separam-se as águas entre o tribunal de direito e o tribunal da opinião pública», escreve Cintra Torres. Engana-se até porque ainda não foi proferida uma única última palavra e nada acabou. Nunca as águas se misturaram tanto. Vai ver.

*«A súmula do acórdão do processo da Casa Pia, evitando ao tribunal a leitura de 2000 páginas, criou mais uma situação kafkiana de limbo judicial e mediático. Apesar de legal, condenados e seus advogados aproveitaram a leitura resumida para armar um escabeche dos diabos. No fundo, foi mais um recurso em que foram pródigos, este não em sede do tribunal, mas em sede mediática. E antes de conhecerem a fundamentação judicial, já anunciavam novos recursos judiciais. Os advogados e os condenados enevoaram as condenações - a essência destes anos -, fazendo da súmula uma espécie de crime da besta nazi-fascista que seria a justiça portuguesa. A leitura resumida do acórdão serviu de pretexto, porque, de facto, não atendeu ao interesse público. Tendo o país acompanhado o processo durante seis anos, foi agora sujeito sem necessidade a novo suspense judiciário e à demagogia das "vítimas" dos juízes. O tribunal proporcionou o circo mediático de condenados e seus advogados. Era obrigação dos media dar a máxima atenção a um dos mais importantes processos da história da justiça em Portugal, mas deixaram-se levar pela intoxicação de condenados e advogados. Perderam o controlo dos acontecimentos e soterraram a sentença sob a prosápia dos mais profissionais e mediáticos arguidos e advogados portugueses. A situação kafkiana prolongou-se no Prós & Contras (RTP1), que visou menos esclarecer do que baralhar e inquinar. Marinho Pinto, que se comporta como bastonário de apenas alguns advogados do processo, estava ali com a missão de defender o ponto de vista dos arguidos e do PS-Governo para desmerecer o tribunal e a sua decisão. Usou o seu método habitual de apresentar o mundo como apocalíptico, a justiça como injusta e ele como o justiceiro. Disse desconhecer totalmente o processo e os seus documentos mais significativos, incluindo a súmula do acórdão. É impressionante que um advogado, para mais bastonário, comente na TV um processo judicial que desconhece. A confusão em torno do processo acresceu com a presença de Carlos Cruz no programa, em noticiários, em entrevistas. Não é habitual condenados à cadeia sentarem-se em debates públicos. Normalmente, a TV mostra-os a caminho da prisão. Mais uma originalidade portuguesa: um recém-condenado da véspera desdobra-se em presenças televisivas comentando a própria condenação. São aparições patéticas, pois Cruz tenta refazer o julgamento nos media. Ele é o condenado que mais perde, para lá da pena de prisão. Tinha como mais importante capital a "imagem", a celebridade. O processo corroeu-a, a condenação destruiu-a. Agora, muitos vêem o seu trabalho retrospectivamente à luz deste processo. O apresentador do 1,2,3 tornou-se para eles o homem que gostava de fazer bluff. As participações televisivas de Cruz e do seu advogado esta semana procuraram na opinião pública a absolvição que não obtiveram no tribunal. Só que, no momento em que os juízes decidem, separam-se as águas entre o tribunal de direito e o tribunal da opinião pública. Durante seis anos os dois julgamentos correram a par. Torna-se quase impossível inverter a decisão judicial nos media. Se foi possível algo do género durante esta semana, tal deveu-se à imprudência do tribunal. Se é certo que a lei lhe permite a súmula, o desfecho de um caso como este, obrigatoriamente mediático, deveria ter sido preparado com todo o cuidado e rigor, nomeadamente prevendo manobras a que os envolvidos poderiam recorrer. Como esta, de fingir que o julgamento prossegue.» (Público)

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