IDEIA DA MÚSICA
A nossa sensibilidade, os nossos sentimentos, já não nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado, faustosos e inúteis como animais domésticos de apartamento. E a coragem - perante a qual o niilismo imperfeito do nosso tempo não cessa de bater em retirada - consistiria precisamente em reconhecer que já não temos estados de alma, que somos os primeiros seres humanos não afinados por uma Stimmung, os primeiros seres humanos, por assim dizer, absolutamente não musicais: somos sem Stimmung, ou seja, sem vocação. Não é uma condição alegre, como alguns desgraçados no-lo querem fazer crer, nem sequer é uma condição, se por condição entendermos necessariamente, e ainda, um destino e uma certa disposição; mas é a nossa situação, o sítio desolado onde nos encontramos, absolutamente abandonados por toda a vocação e por todo o destino, expostos como nunca antes.
E se os estados de alma são na história dos indivíduos aquilo que as épocas são na história da humanidade, então aquilo que se anuncia na luz de chumbo da nossa apatia é o céu, jamais visto, de uma situação não epocal da história humana. O desvelamento da linguagem e do ser em termos apenas epocais, que os deixam sempre não ditos em toda a abertura histórica e em todo o destino, está talvez a chegar ao fim. A alma humana perdeu a sua música - e por música entende-se aqui a marca na alma da inacessibilidade destinal da origem. Privados de época, esgotados e sem destino, chegamos ao limiar feliz do nosso habitar não musical no tempo. A nossa palavra regressou verdadeiramente ao princípio.
Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, tradução, prefácio e notas de João Barrento. Edições Cotovia
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