A POESIA CANTADA
Venho de ouvir Carlos do Carmo, nos 40 anos de carreira celebrados no Coliseu, na presença de Jorge Sampaio. No final, teve direito a venera municipal das mãos de Santana Lopes. Eu gosto de fado e aprecio a voz de Carlos do Carmo. Gere com inteligência a sua carreira e apresenta um espectáculo com profissionalismo. Escolheu bem os seus poetas: Bocage, O' Neill, Pedro Tamen ou Ary dos Santos. Sobretudo Ary dos Santos, de quem era amigo, e que acompanhou nas suas últimas horas de vida. Para o ano, passam 20 anos sobre o desaparecimento de José Carlos Ary dos Santos. Era um homem insubmisso, irreverente e terrivelmente caprichoso. Tinha um talento raro para as letras das cantigas, que lhe surgiam, por vezes, num fôlego. Não era, a meu ver, um extraordinário poeta. No entanto, "cantou" e amou Lisboa de uma forma excessiva e terna, em poemas a que Carlos do Carmo também emprestou a sua voz. Quando morreu, em Janeiro de 1984, Baptista Bastos escreveu sobre ele, dizendo que Ary morrera "cheio de álcool e de solidão". Um destino funesto, o destes homens e mulheres, sensíveis e inconformados nesta era de plástico e de marionetas frívolas. Às tantas convencem-se de que já não andam aqui a fazer nada, apesar da exaltação da "vida" que ressuma dos seus versos. E acabam com a facilidade com que escreviam uma linha. Dele deixo este Soneto:
Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?
Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.
Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.
Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.
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