26.10.03

NÓS SOMOS O MUNDO, NÓS SOMOS AS CRIANÇAS II

1. Ontem foi o dia de todas as alegrias. À meia noite, o Panteão - imagine-se - abriu as portas para um sarau dedicado ao feiticeiro da Sra. Rowling, lançado em versão portuguesa. A imitação grotesca do que se tinha passado em Junho, na América e em Inglaterra, deu nisto: Potter lado a lado com Vasco da Gama e Amália Rodrigues, e um bando de adolescentes espertinhos e precoces aos berros por todo o lado. Mais tarde, e sob as vistas e auspícios do Estado, nas pessoas dos seus mais lídimos representantes, abriu a nova "catedral" do Benfica. Ao menos serviu para, durante umas horas, substituir o estafado ruído em trono da justiça e do PS, pelos urros e pela gritaria da vermelha "massa associativa", que não se coibiu de vaiar Durão Barroso. Como acho que vem bem a propósito, repito um post dos primeiros tempos, que deverá ser lido com as devidas adaptações.

2. Era ontem a notícia do dia. A Sra. JK Rowling dava à luz, em Inglaterra, por volta da meia noite, mais um "filho" da linhagem Harry Potter. Para que o acto tivesse o brilho que o cometimento exige, as livrarias londrinas terão ficado abertas até depois da meia noite, hora oficial do parto. Escusado será dizer que as nossas tv´s nos brindarão abundantemente durante o dia com estas mágicas peripécias. Por cá, a FNAC também deu um ar da sua graça, e terá posto à disposição dos mais ávidos, logo ontem à mesma londrina hora, 200 exemplares da aventura no original. Consta que esta nobre linhagem de "Harry Potters" tem em muito contribuído para o bem-estar financeiro da Sra. Rowling que, rezam as crónicas, é mais uma rapariga que "subiu a vida a pulso", mas que, em boa hora, descobriu o seu maná. Eu nunca me deixei atrair por este género de literatura, porém admito que, por esse mundo fora, milhões de adultos e crianças o façam. Nada de que nos devamos admirar. Os grandes escritores dos séculos XIX e XX que anunciaram a destruição, o abandono, a solidão, a incomunicabilidade ou o suicí­dio, na sequela da debandada de Deus, pouco ou nada devem dizer à generalidade dos humanos da era 2000. Rowling e a maior parte dos seus leitores serão por certo insensí­veis ao grito desesperado de Moisés, no final do "Moses und Aron" de Schoenberg: O Wort, du wort das mir fehlt. A propósito disto, lembrei-me de Heidegger, num pequeno livrinho, "Serenidade" ( trad. do Instituto Piaget, de "Gelassenheit"): a ausência de pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda a parte. E também de Alain Finkielkraut, em "A derrota do pensamento" , reflectindo sobre a então emergência dos mega concertos rock e citando Paul Yonnet, "L' esthétique rock" ( trad. pelas Ed. D. Quixote ):

Face ao resto do mundo, o povo jovem não defendia apenas gostos e valores especí­ficos. Mobilizava igualmente, diz-nos o seu grande turiferário "outras zonas cerebrais para além das da expressão linguística. Conflito de gerações, mas também conflito de hemisférios diferenciados do cérebro (o reconhecimento não verbal contra a verbalização), hemisférios durante muito tempo cegos, neste caso um para o outro". A batalha foi dura, mas o que chamamos hoje comunicação, atesta-o: o hemisfério não verbal acabou por vencê-la, o clip triunfou sobre a conversa, a sociedade "tornou-se por fim adolescente"(....) ela encontrou (...) o seu hino internacional: we are the world, we are the children. Nós somos o mundo, nós somos as crianças.

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