«Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos penetrantes que viam o fundo das coisas. Era o poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante.»
Jorge de Sena, "Antigas e novas andanças do demónio" (do conto "Super Flumina Babylonis"), Edições 70
3 comentários:
ainda o leio na edição da "portugália". belíssimo conto esse.
«Diz-me devagar coisa nenhuma
Assim como a só presença
com que me perdoas esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim que o dizes.
E os destinos vivem-se como outra vida ou como solidão. E quem lá entra? E quem lá pode estar mais que o momento de estar só consigo?
..................................»
(Pequena homenagem aos cavaquistas deste blogue que - honra lhes seja feita - gostam de Jorge de Sena).
Eu também gostava de gostar de Jorge de Sena - já não consigo ser cavaquista - mas não posso ignorar o que o arquitecto Nuno Portas disse, numa longa entrevista, em que, honestamente contrafeito, "confessou" que ele e Jorge de Sena (enquanto engenheiro na Junta Autónoma das Estradas) "...não queriam a construção da ponte sobre o Tejo -em sessenta e poucos- pois isso levaria à especulação na margem Sul e conduziria os ricos ao Algarve..." (!!!); ou seja: os supostos progressistas mais não eram que "engenheiros-sociais-do-marxismo-quinquenalismo-que-procuravam-controlar-a-sociedade" com ideias pré-concebidas; afinal o adiantado mental era o mui-tacanho Professor Salazar (que sabiamente ordenou que o nome da Ponte - o seu - fosse aplicado em letras removíveis e não gravadas no betão, pois isso facilitaria a esperada mudança). Ainda está para nascer o Primeiro-ministro (ou o escritor) que consiga ver para além de duas semanas.
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