«De onde vem este fascínio pela transparência? Ele decorre da convergência de três factores: em primeiro lugar, da generalização da infidelidade que acompanha a desenvolta afirmação do individualismo moderno, que sacudiu todas as fidelidades tradicionais, sejam elas ideológicas ou amorosas, religiosas ou políticas. Depois, da "pipolização" mediática, que consagrou na prática o voyeurismo como um direito de saber tudo, transformando assim automaticamente todo o segredo em algo de suspeito. E, por fim, da desafeição dos cidadãos em relação à democracia representativa, em geral vista como indiferente em relação aos seus problemas mais prementes. O fascínio pela transparência vem de que, em todos estes casos, ela compensa um défice de confiança. Mas essa compensação é ilusória porque, ao contrário do que tantas vezes se diz, só há confiança quando, justamente, há segredo. É precisamente o facto de não se saber tudo - na amizade, nos negócios, na política, etc. - que dá sentido à confiança. Confiar é, sempre, acreditar para lá do que se sabe*. O que acontece num mundo em que a fidelidade se tornou descartável e em que a inconstância se transformou num valor social positivo é que a transparência emerge como a mais consoladora - mas também, talvez, a mais enganadora - das respostas às mais variadas formas de desconfiança que atormentam os cidadãos, quer elas se traduzam em insegurança ou em ciúme, em inveja ou em suspeita, em cólera ou em revolta. A força da transparência vem, em boa parte, do que ela esconde: é quando a sociedade da desconfiança triunfa que a exigência de transparência mais se impõe. É por isso que é necessário valorizar o segredo pessoal, a reserva social e a confidencialidade política. Mas fazê-lo ligando esse esforço a uma inequívoca afirmação da responsabilidade, que deve ser feita, mais de informação do que de manipulação, mais de humildade do que de prepotência, mais de respostas do que de escutas. A revitalização da responsabilidade é o único antídoto eficaz para as patologias da transparência.»
*Como algúem inequivocamente do campo do pessimismo antropológico, e ao contrário do autor, desconfio sempre para além daquilo que sei. E mesmo daquilo que sei desconfio.
2 comentários:
Carrilho é, mais uma vez, lapidar. "A revitalização da responsabilidade...". Sem dúvida, mas ela só é possível com a revitalização do castigo exemplar - o que não é exactamente a mesma coisa. De resto, o mecanismo da exigência de transparência, que anda nas bocas de todos os superficiais, é, à partida, coisa inquinada: no actual estado de coisas, pede-se portanto aos infractores reais, e infractores potenciais, que mostrem a roupa branca por iniciativa própria (biberónico!). Carrilho é superior e eu é que estou, prosaicamente, a querer referir coisas que ele terá pensado, mas que não tem necessidade de escrever (merdas práticas...).
Assim como sem polícia, tribunais e armas de fogo, a sociedade destruir-se-ia em poucos dias, também enquanto não regressam os princípios e a educação, a revitalização da responsabilidade, a existir num futuro próximo, terá de ser acompanhada por pancadaria retaliatória e retroactiva, se necessário.
Ass.: Besta Imunda
Nem tudo que luz é ouro...
O discurso falacioso,
entre ambages e ilusões,
ganha valor oficioso
para quem lhe faltam as razões.
A lealdade descartável,
e de obscuras aparências,
é de todo insuportável
fedendo a incoerências.
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