31.10.03

CENAS DO NOSSO ESTADO LUNAR

O casto dispositivo. Eu não sabia mas existe por aí uma Associação dos Farmacêuticos Católicos. Esta piedosa gente recusa-se a vender dispositivos anti-natal. É claro que nada tenho contra o facto de serem católicos. Porém, com os seus argumentos, parece que não conseguiram sair da idade da pedra lascada. Recomendo-lhes, pois, para se descontrairem e para se actualizarem, a leitura em livro de O MEU PIPI (Oficina do Livro, com direito a marcador). Entretanto, e se querem colocar a sua crença no lugar do "dispositivo", não exerçam farmácia.

A casta diva. Quando a célebre Maria Elisa se "chegou" ao PSD, eu até achei alguma piada, dentro da lógica da biodiversidade do "somos todos Portugal" do Dr. Barroso. Chegou a deputada mas não se deu muito por ela, nem ela parece ter dado por isso. Apesar de não possuir o dom da ubiquidade, quis estar em S.Bento, na RTP, de atestado médico e em Paris. Acabou em Londres, sem que se lhe reconheça, apesar dos inúmeros talentos, qualquer vocação para "conselheira cultural". Agora consta que não pretende renunciar ao mandato parlamentar, com a desculpa de que é uma opção "dolorosa". Para não fugir ao contexto, por que é que Elisa não se aconselha com esse novo paladino da psiquiatria nacional chamado Frade?

A verdade e a imaginação. Segundo a também casta Comissão Europeia, Portugal, este ano e nos que se seguem, vai apresentar um déficit nas contas públicas superior ao do "pacto", e os níveis de desemprego não vão parar de crescer. Isto quer dizer que é de esperar o pior relativamente à execução do orçamento para 2004. É aliás muito divertido acompanhar as explicações dos vários ministros, no Parlamento, acerca das respectivas "fatias" orçamentais. Lembram-me uma frase de Graham Greene no seu Cônsul Honorário: "a verdade é quase sempre cómica, a tragédia é o que as pessoas se maçam a imaginar ou a inventar".

O navio fantasma. Ocorreu-me que termina logo à noite o ciclo de concertos para piano e orquestra de Beethoven, da mini-temporada outonal do São Carlos, no S. Luiz. Toca o Burmester que, para além de "conselheiro artístico" na Casa da Música, também é pianista. Dada a figura e o concerto ( o 5 º), é natural que, entre convites e bilhetes vendidos, a coisa esgote. Eu, se fosse da direcção dos teatros nacionais, não exultava com o propalado "reforço" no orçamento da Cultura. A "execução orçamental" falará por si, a partir de 1 de Janeiro, e a "gestão flexível", tão cara a quem trata da intendência de Roseta e de Amaral Lopes na Ajuda, estará literalmente sem "fundo" e "nas lonas". Quanto ao mais, a Companhia Nacional de Bailado prossegue inteligentemente a sua digressão e Ricardo Pais defende-se como pode no S. João. A "programação" da comissão de gestão do D. Maria "aconchega" o público à Catarina Furtado no palco da Sala Garrett, como se aquilo fosse um vulgar "teatro-estúdio" ou uma garagem reaproveitada, sem que se vislumbre o final da novela "A lei orgânica", um guião picaresco de Amaral Lopes. Lembro que o local era conhecido por Teatro Nacional D. Maria II e é pago pelo orçamento dos contribuintes. O outro também nacional, mas de ópera, aguarda pelo segundo episódio da apresentação da temporada, com uma direcção errática e um maestro titular ausente. Talvez seja para o mês que vem, num intervalo de uma das viagens do seu director.

30.10.03

A ÁRVORE E A FLORESTA

O Sr.Theias, um cavalheiro com ar distinto que ocupa por ora o cargo de Ministro do Ambiente, decidiu mostrar que tem conteúdo político. Manifestamente não tem. Aterrou directo da burocracia cinzenta de Bruxelas num ministério que não lhe diz nada. Por causa do Instituto de Conservação da Natureza, e para tentar mostrar que está vivo, insinuou "interesses". Ou seja, disse a palavra mágica que o condenará a prazo curto ou médio. Durão Barroso nem pôde saborear a generosa viagem a Angola. Já anteriormente a escolha de um "amigo do eucalipto" para secretário de Estado das Florestas não tinha sido feliz. Será que não começa a haver demasiadas "árvores" no governo que não deixam a D. Barroso ver a "floresta"?

29.10.03

SOPHIA

Já aqui trouxe a sua poesia mais do que uma vez. A distinção conferida por um prémio limita-se a realçar a permanente elegância, distinta e altiva, da sua letra. Sem mais, fica uma poesia de há anos, mas, como é próprio das palavras maiores, a ler sempre.

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andresen

28.10.03

O MEU BIBI II

Desta vez estou tentado a acompanhar moderadamente a Dra. Catalina. Está a ser criada uma ansiedade insustentável em quem vai ter que testemunhar sobre assuntos completamente desagradáveis e seguramente traumáticos. O frio calculismo do Dr. Martins e o seu ar de contentamento, mesmo que se limite a aproveitar o que a lei lhe permite, incomodam. Também gostei de a ouvir chamar à colação a responsabilidade do Estado por este laxismo criminoso. A aplicação, "a seco", da lei, tem destas coisas. Hoje ficou a Dra. Catalina "desiludida". Outros também já ficaram e porventura ainda estão. Não deixa de ser uma lição para quem, seja quem for, passe o tempo a dizer que tem "confiança" na justiça e nos seus "operadores". Eu, pelo sim e pelo não, permaneço desconfiado e não digo nada.
O MEU BIBI

Se o advogado alentejano de Carlos Silvino, com ar de pantomineiro, não conseguir convencer o colectivo de juízes que vai julgar o seu constituinte, o famigerado Bibi entrará numa nova fase da sua vida de arguido. Mais do que ele, é o Estado e as suas responsabilidades, face às crianças acolhidas à sua guarda, que estão a ser julgados. A triste história de Carlos Silvino é a história de uma persistente demissão e de um indesculpável desleixo, acumulados em anos e anos de "deixar andar". Silvino entrou, menino e moço, numa cadeia perversamente instituída e nunca verdadeiramente combatida de abusos morais e físicos, em que participou, primeiro como vítima, e depois, como carrasco. Olhando para ele e ouvindo-o, custa a perceber como é que aquela alma pode ser o cérebro de uma "rede". Parece que o homem está amedrontado e que daria o céu e a terra para não ir a tribunal. Sente-se acabrunhado e só. Na realidade, porém, não é bem assim. Bibi é o filho bastardo de uma impunidade larvar, tacitamente consentida e incómoda, a que nunca ninguém quis prestar muita atenção. Foi preciso o "escândalo" para que a beatice hipócrita e a condenação fora de tempo surgissem. É caso para perguntar o que é que tantos agora "indignados" andaram lá a fazer este tempo todo. Por isso, podem perfeitamente chamar-lhe "seu".

27.10.03

A VAIA

O Dr. Barroso recebeu este fim de semana a sua primeira grande vaia. Foi prolongadamente assobiado na abertura do novo estádio do Benfica. Convém dizer que, de uma forma geral, os políticos presentes - todos - foram relativamente mal tratados pela turba. Eu, que não gosto nada de futebol, considero ser de uma imensa ingratidão este tipo de manifestações. As "massas associativas", de facto, em vez de demonstrarem o seu agradecimento pela circunstância de os seus clubes andarem permanente e promíscuamente associados à vida político-partidária, assim que podem, brindam os "políticos" com assobios e insultos. Não se deve atribuir grande significado político a isto, até porque a barulheira faz parte da "festa", na cabeça da "massa". No entanto, e considerando que só praticamente o governo e Barroso existem na paisagem política, graças à autofagia do PS, a vaia, ensaiada por 65 mil almas e transmitida em directo na tv, significa que o "povo" se está rigorosamente nas tintas para quem manda e para quem julga que vai "reformar" alguma coisa. Será que os nossos "pastores" ainda não perceberam que não se "muda" nem "reforma" ninguém contra a sua vontade? Barroso teve ali uma amostra do País que comanda sem verdadeiramente comandar: uma horda malcriada de impenitentes irreformáveis, com cachecóis multicores ao vento.

26.10.03

NÓS SOMOS O MUNDO, NÓS SOMOS AS CRIANÇAS II

1. Ontem foi o dia de todas as alegrias. À meia noite, o Panteão - imagine-se - abriu as portas para um sarau dedicado ao feiticeiro da Sra. Rowling, lançado em versão portuguesa. A imitação grotesca do que se tinha passado em Junho, na América e em Inglaterra, deu nisto: Potter lado a lado com Vasco da Gama e Amália Rodrigues, e um bando de adolescentes espertinhos e precoces aos berros por todo o lado. Mais tarde, e sob as vistas e auspícios do Estado, nas pessoas dos seus mais lídimos representantes, abriu a nova "catedral" do Benfica. Ao menos serviu para, durante umas horas, substituir o estafado ruído em trono da justiça e do PS, pelos urros e pela gritaria da vermelha "massa associativa", que não se coibiu de vaiar Durão Barroso. Como acho que vem bem a propósito, repito um post dos primeiros tempos, que deverá ser lido com as devidas adaptações.

2. Era ontem a notícia do dia. A Sra. JK Rowling dava à luz, em Inglaterra, por volta da meia noite, mais um "filho" da linhagem Harry Potter. Para que o acto tivesse o brilho que o cometimento exige, as livrarias londrinas terão ficado abertas até depois da meia noite, hora oficial do parto. Escusado será dizer que as nossas tv´s nos brindarão abundantemente durante o dia com estas mágicas peripécias. Por cá, a FNAC também deu um ar da sua graça, e terá posto à disposição dos mais ávidos, logo ontem à mesma londrina hora, 200 exemplares da aventura no original. Consta que esta nobre linhagem de "Harry Potters" tem em muito contribuído para o bem-estar financeiro da Sra. Rowling que, rezam as crónicas, é mais uma rapariga que "subiu a vida a pulso", mas que, em boa hora, descobriu o seu maná. Eu nunca me deixei atrair por este género de literatura, porém admito que, por esse mundo fora, milhões de adultos e crianças o façam. Nada de que nos devamos admirar. Os grandes escritores dos séculos XIX e XX que anunciaram a destruição, o abandono, a solidão, a incomunicabilidade ou o suicí­dio, na sequela da debandada de Deus, pouco ou nada devem dizer à generalidade dos humanos da era 2000. Rowling e a maior parte dos seus leitores serão por certo insensí­veis ao grito desesperado de Moisés, no final do "Moses und Aron" de Schoenberg: O Wort, du wort das mir fehlt. A propósito disto, lembrei-me de Heidegger, num pequeno livrinho, "Serenidade" ( trad. do Instituto Piaget, de "Gelassenheit"): a ausência de pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda a parte. E também de Alain Finkielkraut, em "A derrota do pensamento" , reflectindo sobre a então emergência dos mega concertos rock e citando Paul Yonnet, "L' esthétique rock" ( trad. pelas Ed. D. Quixote ):

Face ao resto do mundo, o povo jovem não defendia apenas gostos e valores especí­ficos. Mobilizava igualmente, diz-nos o seu grande turiferário "outras zonas cerebrais para além das da expressão linguística. Conflito de gerações, mas também conflito de hemisférios diferenciados do cérebro (o reconhecimento não verbal contra a verbalização), hemisférios durante muito tempo cegos, neste caso um para o outro". A batalha foi dura, mas o que chamamos hoje comunicação, atesta-o: o hemisfério não verbal acabou por vencê-la, o clip triunfou sobre a conversa, a sociedade "tornou-se por fim adolescente"(....) ela encontrou (...) o seu hino internacional: we are the world, we are the children. Nós somos o mundo, nós somos as crianças.

25.10.03

ILUSTRES CONHECIDOS

1. Por mero acaso, provocado por esta inesperada invernia outonal, numa sessão de zapping, ontem, ao fim da tarde, fui parar à TVE onde decorria a sessão de entrega dos Prémios Príncipe de Astúrias, da Fundação com o mesmo nome, relativos ao ano em curso. E deu-me pena, e julgo que não foi uma provinciana pena, que aquilo se estivesse a passar aqui ao lado, com toda aquela solenidade confortável, e com aquelas personagens. E dá-me mais pena ainda quando penso em tudo o que nos conduz entretidos desde há meses, transformando a nossa sociedade e o nosso imbecil quotidiano num reles reality show, em que já praticamente nada nem ninguém se aproveita. A quebra de audiências do Big Brother de Teresa Guilherme deve justificar-se por aí mesmo. Para quê espiar meia dúzia de adolescentes anónimos, de ambição e verbo domesticados, quando podemos ter o mesmo, em pior e por más razões, com ilustres conhecidos?

2. Voltemos, pois, aos Prémios. Destinam-se a galardoar "o labor científico, cultural e social realizado por pessoas, grupos de trabalho ou instituições cujos logros constituam um exemplo para a Humanidade", especialmente na comunidade ibero-americana de nações. Estes "ilustres conhecidos" reconfortam-nos através dos seus diversos saberes e atitudes, e ajudam a enfrentar a descrença e a miséria intelectual que está instalada, como uma lapa, entre nós. Os Prémios foram entregues em Oviedo e este ano distribuiram-se assim:

Prémio Príncipe de Astúrias da Comunicação e Humanidades
Ryszard Kapuściński
Gustavo Gutiérrez Merino

Prémio Príncipe de Astúrias das Letras
Fatema Mernissi
Susan Sontag

Prémio Príncipe de Astúrias das Ciências Sociais
Jürgen Habermas

Prémio Príncipe de Astúrias de Investigação Científica e Técnica
Jane Goodall

Prémio Príncipe de Astúrias dos Desportos
Tour de France

Prémio Príncipe de Astúrias das Artes
Miquel Barceló

Prémio Príncipe de Astúrias da Cooperação Internacional
Luiz Inácio Lula da Silva

Prémio Príncipe de Astúrias da Concórdia
Joanne Kathleen Rowling (não se pode ser perfeito).

24.10.03

INCONFORMADO E RARO

Manuel Maria Carrilho tem um pequeno livro, assaz interessante, O Que é a Filosofia, que começa com esta frase provocadora: "É rara, entre nós, a palavra dos filósofos". Lendo-o, percebe-se que, mais do que tentar explicar o que é a filosofia, Carrilho apresenta uma perspectiva sobre a filosofia, muito assente na crítica ao seu lastro mais tradicional, o "metafí­sico" e "intemporal", e convicta das vantagens da contingência e de mais "mundos" lá dentro. É assim na filosofia, deve ser assim na política. Isto vem a propósito do claro afastamento de Carrilho em relação à direcção PS/Ferro Rodrigues. A sua altiva e "rara" palavra, embora límpida e objectiva, dificilmente colhe no terreno partidário básico. Carrilho, sozinho, constitui-se como uma "elite", e isso raramente gera "amor" nos militantes e nas direcções partidárias, normalmente votadas ao autismo satisfeito. Já tinha sido assim quando foi ministro da Cultura e em relação a Guterres. Ainda hoje a sua sombra paira, sorridente e irónica, no actual "museu de cera" instalado no Palácio da Ajuda, dirigido por Pedro Roseta e Amaral Lopes. A "carta aberta" que Carrilho dirigiu aos socialistas revela a sua maneira de ver as coisas, fiel, aliás, à formação académica e às suas efectivas "afinidades" filosóficas. É óbvio que não será completamente entendido nem apoiado. As "circunstâncias ocorrentes" e o irrealismo político do acossado secretário-geral, continuam. Entre a "espada" e a "parede", o novo "dilema" de Ferro, o PS voltou a escolher o abismo. Quanto a Carrilho, espero apenas que continue do "bom lado", inconformado e raro, o único que interessa verdadeiramente.

23.10.03

BILL, O AMERICANO TRANQUILO

Quando começou a aventura do então governador do Arkansas, na direcção da Casa Branca, havia alguma interrogação. Lutava contra o respeitável pai Bush, que queria que lhe "lessem os lábios", e cujo filho mais notório lhe parece ter saído inteiramente "ao lado", tal como a famosa tirada. William teve uma infância e uma adolescência difíceis, desprovidas da felicidade calculada da família ideal americana. Fez-se à vida, a uma curso de direito e à política. Conheceu entretanto a ambiciosa e leftist Hillary, que se lhe tornou indispensável daí para diante. Carregando o bom fantasma de Kennedy, Bill aterrou em Washington para se tornar num dos melhores presidentes dos EUA. Até ao episódio do "vestido azul", eu achava Bill Clinton um simples americano cheio de sorte que a "esquerda caviar" na Europa não se cansava de adular. Podia ter-se poupado à mentirola inicial, mas a calma e a sinceridade, entremeadas com coca-colas "light", com que se apresentou, em directo, ao júri do "escândalo", transfiguraram definitivamente o homem. Bill Clinton, o chefe da nação mais poderosa do planeta, era não apenas um bom presidente, como respondia com sucesso a banais estímulos sexuais. Apesar da vulgaridade das eleitas - ou se calhar por isso mesmo -. aos olhos dos americanos e do mundo, Clinton aproximou-se ainda mais do "povo", sem deixar nunca de "saber estar" como chefe de Estado. Esteve entre nós há dois dias, numa conferência, e encontrou-se com os nossos poderes genericamente deprimidos e deprimentes. Ora, justamente, Bill demonstrou que há mais vida e alegria para além da política, e que é possível dar "vida" à política, sem abdicar dos princípios, mesmo que sob o fio da navalha. Refeito do turbilhão e puxadas as calças para cima, deixou uns EUA prósperos e satisfeitos com a sua sociedade livre. O desditoso sucessor, George W. , com a subtileza que se lhe reconhece, tem vindo a levar tudo isso alegremente para o fundo, deixando emergir uma América "profunda" e preconceituosa. Para nós, que permaneça a imagem da alta figura de Bill Clinton, arguto, sorridente, optimista e, sobretudo, "humano". É uma excelente imagem de um americano tranquilo.

22.10.03

PÔR NO LUGAR

No comentário semanal na TVI, Miguel Sousa Tavares teve finalmente que encostar Manuela Moura Guedes à sua demagogia barata. Ela não está ali para dar opiniões, embora condene, julgue e comente diariamente. Os seus "jornais nacionais" são o exemplo do contrário do que deve ser "informar", mesmo quando até consegue ter graça. Presta um mau serviço à cidadania e descredibiliza a missão supostamente nobre da comunicação social em audiovisual. Faço-lhe a justiça de pensar que não está ali a fazer fretes a ninguém. Provocar é saudável. Ir mais além, conhecendo o efeito devastador da insinuação e da ligeireza nas mentes incautas, ligeiras e tantas vezes mesquinhas de quem vê, é qualquer coisa de intelectualmente abjecto. Explorar o primarismo é allgo decididamente obsceno. Os esforços da jornalista para apoucar a comunicação de Jorge Sampaio não surtiram efeito. Eu voto num Presidente da República para que ele, sempre que necessário, ponha as coisas no seu devido lugar. De uma forma enxuta e exemplar, foi o que Sampaio fez ontem à noite. Oxalá os principais destinatários da mensagem - e foram tantos - tenham percebido que é mais do que tempo de se "porem" no seu devido lugar.

21.10.03

FELLINI ENTRE NÓS

1. Há notícia de vários crimes associados à violência doméstica e à violência sexual doméstica. Nas estradas, conduzem assassinos. Estas manifestações patológicas do apregoado "sossego familiar" e do "equilíbrio" do português médio, deitam diariamente para a sarjeta os abnegados esforços de psicólogos, sociólogos e outros distintos cultores das ciências ditas sociais. Num livro que, na altura, julgo não ter sido "clonado", Clara Pinto Correia falava da perversão que se escondia por debaixo dos malmequeres. Essa perversão anda à solta na nossa contentinha e inconsciente sociedade. Potencia, em cada um de nós, um monstro sempre pronto a agredir e, no extremo, a matar.

2. A indecência pública em torno das "escutas telefónicas" só não é própria de um "estado totalitário" porque, apesar de tudo, isto é formalmente uma palhaçada. Aparentemente ninguém é responsável pela sua divulgação. Desde o PGR, aos advogados, desde essa indefinível figura que é o director da PJ, até aos tribunais, toda esta gente sacode a água do capote para cima de chavões em que não se pode mais acreditar. O gravame, porém, está atrás. Reside no próprio princípio da realização das ditas escutas e do objectivo sibilino da sua publicitação. Ferro Rodrigues não pode ser derrubado por ter dito "merda" ao telefone. Que saia pela "política" que não sabe ou que não pode defender e praticar, ou por ter conduzido o seu "projecto" pela via errada da confusão com uma situação pessoal. Quem tem que fazer essa avaliação é ele e os seus pares. Não são as cassetes apanhadas no lixo da nossa colectiva inconsequência.

3. Para "dourar" a pílula, o imaginativo Dr. Portas trouxe os mancebos - machos e fêmeas, presume-se - , até junto da instituição militar, para se irem habituando aos "bons costumes". Não percebeu que aos rapazes e raparigas de 18 anos, hoje, aquela agitação de fardas e de armas, não lhes diz nada. Foram lá apenas para não pagar uma multa. O serôdio discurso patrioteiro também não os comove minimamente. Os saudáveis princípios da solidariedade e da fraternidade viris, aprendidos nas "fileiras" e noutros tempos, não fazem parte do cardápio de valores desta gente. E a "constituição europeia", por outros motivos, colocará oportunamente uma pedra sobre tudo isto. É por estas e por outras que eu sou "federalista".

20.10.03

O GÉNIO PORTUGUÊS

Como se esperava, Timor, essa bandeira da bondade e do porreirismo nacional, exibida nas ruas, em comícios e em cantorias comovidas, trocou o nosso magnífico direito pela aplicação do direito indonésio. Assim decidiu o parlamento timorense. Na longínqua ilha, Portugal será cada vez mais uma memória distorcida associada a uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. O inglês australiano triunfará oportunamente sobre a língua de Camões. E, quando menos se esperar, a Indonésia poderá voltar, sob uma qualquer forma, devidamente perdoada e travestida. É muito bem feito. É só mais uma ilustração a juntar à imensa galeria histórica da nossa crónica figura de parvos. Como a propensão para o dislate é infinita, segue-se o "auxílio" ao Iraque, cuja "administração" não poderia seguramente sobreviver sem o concurso de Portugal. Na realidade, quem é que neste mundo pode dispensar o "génio português"? Os "amigos timorenses" já deram a resposta.

19.10.03

OUTONAIS

Uma. Ler no Abrupto posts sobre a contraditória e voluptuosa Istambul. Começa-se a perder um deputado europeu livre e com qualidade, e a ganhar um excelente observador (des)comprometido que, aliás, nunca o deixou de ser. Quando, um dia, virmos isto tudo em livro, perceberemos que, nem ele, nem nós, perdemos nada com o previsto abandono da "política". JPP está out do "pacto de geração" que nos pastoreia.

Duas. Ler o Crítico. O São Carlos e o seu coro na mira.Tem razão. Foi penoso. O secretário de Estado da Cultura estava lá para ouvir. O problema não é esse. Ele ouve mas não vê.

Três. Estavam milhares de anónimos, convictos e crentes no terço de homenagem ao Papa. Visto da televisão, foi bonito. Dispensava-se a opinião do Dr. Félix e a mostra do piedoso friso governamental. O Estado ainda é laico, suponho.

Quatro. Os jornalistas perguntaram à D. Catalina se continuava a confiar na justiça. A veneranda senhora respondeu: "confio em vocês". Referia-se, naturalmente, aos novos "órgãos de soberania", os jornais e a SIC.

Cinco. O Dr. Ferro está-se "cagando" (sic) . É tempo de, no PS, alguém lhe fazer o favor de puxar definitivamente o autoclismo.

Seis. O Dr. Pedroso, que até lê umas coisas, devia conhecer a "máxima" de Mitterrand. É preciso dar tempo ao tempo. Ao contrário do que possa pensar, a Pátria não suspira por ele. A seu "tempo" perceberá.

18.10.03

A ERA DA SUSPEITA

A Fundação Mário Soares trouxe hoje a Lisboa Gianni Vatimo. Vatimo é um estudioso da chamada "pós-modernidade" ou mesmo do seu sempre anunciado "fim". É um interessante filósofo contemporâneo, atento às evoluções do nosso tempo e às contradições e perplexidades que esse avanço sempre comporta. Seja no pensamento, seja na tecnologia, seja na política. Entre nós, dada a excitação reinante, é bom regressar ao silêncio dos filósofos. Vatimo falou acerca da "Palavra" e da "Verdade". Vivemos - desde não se sabe bem quando - uma era de perturbação e de vazio. Desde que Nietzsche decretou a "morte de Deus", instituiu simultaneamente a pequena morte do Homem. A filosofia pós-moderna e, sobretudo, os pragmatistas, casmurram - e bem - em torno do valor "histórico" e "contingente" das nossas crenças, sejam elas quais forem. É a resposta inteligente, sem metafísica, à tal pequena morte a que aludi. O texto de Vatimo que publico, alerta para as "vantagens da suspeita" e do "nihilismo", uma noção de recorte nietzchiano e que, desenvolvida e matizada por grandes outros pensadores e filósofos do século XX, mais ou menos seus sequazes conscientes ou inconscientes, bem caracteriza os tempos de agora.

Lo que Nietzsche llamó "escuela de la sospecha" es quizá lo que caracteriza de manera más general el pensamiento de este siglo, a tal punto que puede considerarse su principal "descubrimiento" o herencia para el próximo siglo. Es como si nos hubiéramos dado cuenta de que, como escribe Nietzsche en Más allá del bien y del mal, detrás de cada caverna se esconde otra caverna y así sucesivamente. Entendida de esta manera, la escuela de la sospecha no se identifica ni con la simple crítica de la ideología de sello marxista, ni con el psicoanálisis freudiano, según la cual iluminar el inconsciente significa también apoderarse de él y disolver su poder de condicionarnos.

Marxismo y psicoanálisis freudiano encajan, por cierto, dentro de la definición pero, sin la radicalización que sugiere Nietzsche, seguirían siendo sólo nuevas teorías de la verdad y la realidad. Una sospecha muy limitada, por ende, que no se apartaría, en esta versión, de la sospecha que siempre caracterizó la búsqueda -platónica, pero también de los presocráticos- de las "esencias" de las cosas. La sospecha de este siglo -reconocible en tantas posiciones intelectuales de estas últimas décadas- sospecha también de la verdad "verdadera". Heidegger nos enseñó a llamar a este proceso el fin de la metafísica. Efectivamente, si de todo se debe preguntar el por qué, la noción misma del ser se transforma radicalmente. Ya no hay nada ante lo cual el pensamiento pueda aquietarse como frente a un dato definitivo, a un fundamento, a una autoridad indiscutible. Dado que esa imposibilidad de encontrar un fundamento sólido también es insoportable, no se puede eludir la pregunta acerca de las buenas razones que tiene, si las tiene, la escuela de la sospecha.

¿No habrá que sospechar ante todo de la sospecha (demasiado) generalizada? Es la tesis de quienes (iglesias, ideologías tranquilizadoras, autoridades varias) lamentan la tendencia nihilista de la cultura del siglo XX. Y sin embargo, cuesta oponer a esta tendencia nihilista la indicación de algo que posea títulos como para resistirla. Dicho de otro modo: ¿no es acaso experiencia común la caída de los absolutos en nuestra época? Los creyentes objetarán que no es cierto que "Dios ha muerto", como pretendió anunciar Nietzsche. Sin embargo, tampoco la teología cristiana pudo asistir al Holocausto y a los tantos otros horrores del siglo sin tener que rever sus propias ideas acerca de Dios. Pese a ser difícil de soportar porque parece no dejarnos ningún terreno sólido bajo los pies, el nihilismo tiene sus "ventajas". La disolución de los absolutos metafísicos implica también el fin de las autoridades indiscutibles. Si no al triunfo de La Razón, que no llega nunca a certezas definitivas, asistimos por lo menos al triunfo de Las Razones, o sea de la exposición, de tanto en tanto, de los motivos y los argumentos que hacen recomendable una elección más que otras.

Así, en el nihilismo del siglo XX entran también teorías que parecen alejadísimas de él, como la del "actuar comunicativo" propuesta por Habermas, según la cual la racionalidad no es sino la "presentabilidad" de una tesis, de un valor, a otros, en términos capaces de ser discutidos "razonablemente" y eventualmente aceptados, y las muchas teorías de la argumentación que se desarrollaron sobre la base de la reflexión sobre la lógica y el lenguaje. Ya no encontramos fundamentos últimos e indiscutibles, sino que debemos tener en cuenta las expectativas, los intereses, el consenso de nuestros semejantes.

Podríamos decir, quizá, que al ser y la realidad ya no les interesa la objetividad de las cosas sino más bien la caridad y la atención hacia las personas. De todos los legados que deja el siglo XX, en muchos casos densos y negativos, el nihilismo tal vez sea justamente el más productivo y cargado de futuro.

17.10.03

O SEGREDO NO LIXO

Os jornalistas que se acotovelam à porta do tribunal de instrução criminal de Lisboa, à espera de novas do "processo", tiveram a grata surpresa de poder consultar processos...nos caixotes do lixo. Folhas soltas de autos, onde constavam nomes, moradas , telefones e telemóveis, deitadas ao lixo, fizeram as delícias da rapaziada, até recolherem os caixotes na garagem. Apareceu um alto dirigente do ministério da Dra. Celeste para "averiguar" sumariamente. Amanhã há-de vir um "inquérito" e depois uma qualquer admoestação, porventura, a uma senhora da limpeza. Que destino funesto, o do "segredo de justiça" : um caixote do lixo. Até um cão o pode violar e mijar-lhe em cima.
MAIS DO MESMO

O Orçamento de Estado. Com umas pequenas nuances e folgas, o OE para 2004 mantém os "apertos" em vigor. Nuns casos, dá-se com uma mão o que se tira com a outra. No Ministério da Cultura, o que se acrescenta em PIDDAC, diminui-se em funcionamento. Haverá, pelo caminho, o habitual recurso a cativações. De uma forma geral, o famoso "investimento público", o tal que "ajuda" a economia, fica a aguardar melhores dias. Tudo continua circularmente à volta do déficit. O espectro das receitas extraordinárias para o diminuir, paira como quase realidade. O desemprego também. O cenário não é empolgante.

Os estudantes. A Dra. Graça Carvalho ainda não terá intuído o sarilho em que se meteu. Os "capa e batinas" não lhe vão dar tréguas. Nunca irão mais longe do que o que se conhece. Não são nem "realistas", nem "pedem o impossível". Até no protesto são vulgares. Eu é que não tenho que lhes pagar o desforço. Nem a generalidade dos contribuintes. No meio desta algazarra, seria bom que a Sra. Ministra esclarecesse se manteve o bizarro Director Geral do Ensino Superior. Ou que, entre dois apitos e três berros de megafone, os alunos lhe perguntassem. Esse, sim, merece o olho da rua.

O Presidente da Câmara de Lisboa. O amor ao Parque Mayer fez esquecer Santana Lopes de que precisava fazer umas continhas. O arquitecto do Gugenheim de Bilbao paga-se naturalmente caro. Lopes chegou agora à conclusão de que não está disponível para pagar tanto. A saga do casino e do Parque, promete, portanto, continuar. Este "sempre querer e não querer o mesmo", valia um cartaz a Santana Lopes. Ele, que ainda outro dia disse que tinha muita queda para "executivo". Apesar deste solene desabafo, temo que Lopes, por causa do tropismo belenense, comece a estar-se nas tintas para a Câmara. Era bom que acertasse de vez no "perfil". Só para o seu próprio bem estar polí­tico. Nada mais.

O rumor tagarela. O porventura maior filósofo do século passado, Martin Heidegger, incomodava-se com o ruído tagarela da vulgaridade discursiva. Não querendo ir tão longe, fico-me por um dizer de um célebre cómico brasileiro, lembrando tanto do desperdício tagarela vigente: "mais vale passar por parvo estando calado, do que abrir a boca e acabar com as dúvidas".

16.10.03

O "INOCENTE"

O Sr. Louçã, do Bloco, pessoa com quem eu raramente concordo e com quem muitas vezes embirro, fez ontem uma intervenção no Parlamento absolutamente acertada acerca das confusões suscitadas aquando da libertação de P. Pedroso. É legítimo que Pedroso tenha uma ambição política e que a desenvolva. Até prova em contrário, é um homem inocente, embora seja arguido num processo. Porém, e ao contrário do que me parece sensato, Pedroso está a dar sinais de que quer "fazer política" a partir do seu problema pessoal. Com aquele ar de anjinho sonso, vai dando entrevistas muito bem estruturadas e vai "aparecendo" mais ou menos em todo o lado. É péssimo para o PS que se continue a associar o destino "processual" da criatura aos objectivos "políticos" do partido, e vice-versa. Mesmo que Pedroso seja inocentado, e é muito provável que venha a sê-lo, dificilmente resistirá a "cavalgar" a situação. O que tem saído da boca da tonta Ana Gomes, faz esperar o pior. A recuperação apressada do lugar de deputado, também. Uma vez que Pedroso quer restaurar o lugar de "delfim" de Ferro, há que lhe dar combate político, nessa exacta medida, e não através de insinuações rasteiras relativas à sua posição de "arguido" ou da exploração da teoria do "coitadinho". De facto, Pedroso está associado à actual má direcção política da maior alternativa à maioria. E isto é bom que não seja esquecido no meio do embaciamento geral. Porque aí, no terreno em que verdadeiramente se gosta de mover, Pedroso não é seguramente um inocente.

15.10.03

O BURRO, AS PUTAS E O VINHO VERDE

Quando uma revista internacional famosa dedicou uma reportagem a Portugal, na qual este era retratado como ainda andando de burro, escandalizou-se meio mundo com o suposto insulto à honra pátria que, na altura, já se considerava muito "desenvolvida". A avaliar pela reportagem publicada na Time, demos uns passos significativos em frente. Segundo aquela revista, Bragança, a pacata e austera cidade transmontana, é a nova Amsterdão. Tudo por causa das "meninas" brasileiras que desassossegaram o "quentinho das famílias" bragantinas, para utilizar a expressão da psicóloga Gabriela Moita. Esta emergência de raparigas ditas de "alterne" , provocou na altura a maior indignação junto de um grupo de "senhoras" auto-denominadas "mães de Bragança". Julgo que as referidas "senhoras" não se devem ter apercebido do ridículo desta designação. Segundo elas, os maridos estavam a escapar-se-lhes por causa destas "desavergonhadas" imigrantes. Os pobres teriam, pois, caído em tentação e era indispensável expurgar a cidade daqueles diabos com pernas, ainda por cima boas. Estas desgraçadas "mães" não captaram o óbvio. O seus amados esposos estarão muito provavelmente fartos da vida insossa e monótona que levam ao lado de mulheres que, talvez um dia, foram interessantes e desejáveis, mas que a usura do tempo tornou chatas e desagradáveis. Em troca de uns copos e de umas notas, as "meninas", numa ou duas horas, fazem a pequena felicidade destes homens médios, coisa que eles há anos não sabem o que é. Ninguém "dorme" com a família. Eu sei que nos bares se finge a alegria. No entanto, a sobrevivência também passa por pequenos momentos lúdicos que aparentemente se esgotam ali mesmo. A hipocrisia farisaica das "mães" de Bragança não evitou a publicidade e o "escândalo". E eis, então, o "esplendor de Portugal", devidamente "internacionalizado": o burro, as putas e o vinho verde.

14.10.03

GERAÇÃO "DAH..."

Num daqueles estudos comparados sobre literacia, já lá vão uns anos, e se não erro, Portugal emergia nos primeiros lugares no amor demonstrado à "literatura" que acompanha os fármacos. Os portugueses, segundo aquele estudo, adoram ler as indicações, contra-indicações e a posologia dos medicamentos que consomem. E fogem de ler jornais e livros como o diabo da cruz. Soube pelo Francisco que andam para aí a circular uns manuais escolares de português em que coisas como o Big Brother e peripécias de telenovelas, são textos de "referência" , a "estudar" no 10 º ano de escolaridade. Eu já nutria um profundo asco por aqueles enxovalhos do tipo "Os Maias em 30 minutos", ou a "Aparição em 20". O resultado está à vista no analfabetismo funcional da maioria dos nossos estudantes universitários, os tais dos "cadeados" e das "ocupações". É de arrepiar ter de corrigir exames no ensino superior, segundo me contam. Não devemos, no entanto, admirar-nos excessivamente com nada disto. Há muito que as hesitações e os equívocos novo-riquistas no sector da educação apontavam para tristezas deste género. Na verdade, os "manuais" limitam-se a ir ao encontro dos "manuseadores". O "novo homem português" está dentro da casa do Big Brother e anda alternadamente à porrada e aos beijos nas telenovelas portuguesas. O mundo, para os nossos frívolos adolescentes, pode reduzir-se a isto, a um telemóvel e a uns quantos monossílabos. Nos próximos "manuais", os exemplos vão ser seguramente as "sms". Para a geração "dah..." chega e sobra.

13.10.03

ESTADOS DE ALMA

Um. "Os socialistas não estão deprimidos". O Dr. Ferro deve dizer isto todos os dias a si próprio. A sua direcção delirante, com a azougada Ana Gomes à cabeça, não caminha para lado nenhum. A sua única causa chama-se Paulo Pedroso e isso não faz nenhuma "alternativa". É um mero problema "humano", até mais ver. É por isso bom que Jorge Coelho, por exemplo, um prático com os pés bem assentes na terra, tenha regressado. Em breve, o PS terá que desatar este "nó górdio". Se quiser que o "futuro" passe por ali.

Dois. O Dr. Marques Mendes, um dos poucos "políticos" que o Dr. Barroso tem no governo, acha que o OE para 2004 já irá repercutir o "início da recuperação económica". Mesmo que não seja bem assim, é bom dizê-lo. Marques Mendes é um optimista bem informado. O que, num provérbio russo antigo, quer dizer "pessimista".

Três. Por causa da libertação de Paulo Pedroso, estão a suceder-se manobras de informação e de contra-informação em torno do processo Casa Pia. De facto, o acordão da Relação foi impiedoso para com a investigação, revelando-a medíocre e leviana. Como se previa, o ar em torno do processo ficou mais pesado e mais nublado. Entretanto, joga-se como que à bola com um assunto que devia ser sério. E os jogadores estão em todo o lado, na defesa, na acusação e nos órgãos de comunicação social. Fazer demagogia com as "crianças" ou com a "inocência" ainda não anunciada, é um mau serviço à cidadania. A serena inteligência de Pedroso devia levá-lo a, para já, não aceitar voltar a ser deputado e a respirar, tranquilo e atento, o ar da liberdade.

Quatro. O ministro da Cultura, Pedro Roseta, esteve na Feira de Frankfurt. Parece que se impressionou com uma tradução alemã do "Livro do Desassossego", de Bernardo Soares/Fernando Pessoa. Não sei se isto é um bom ou um mau sinal.

Cinco. O maestro Miguel Graça Moura, afinal, não se demite. A orquestra metropolitana de Lisboa e a escola que lhe anda associada, estão paradas. A megalomania devia ter limites, quando estão em causa interesses de terceiros. O folhetim vem demonstrar aos que ainda não tinham percebido, que o mundo da "cultura", dos "agentes culturais" e de muitos "intelectuais", está minado por interesses pessoais, intrigas e vaidades que nada têm a ver com o "distanciamento" que se lhes atribui relativamente à "vida material". Ganhar honestamente a vida é uma coisa. Na "cultura", então, é uma bela coisa. Fazer do ofício um bazar trapalhão, é que é feio.

Seis. O crítico musical continua atento aos concertos da mini temporada do São Carlos, no Teatro S. Luiz. E a persistir no anonimato. Desta vez- e uma vez mais - vira-se para o coro. É natural que a direcção musical do dito já não tenha a mesma frescura que tinha quando começou. Sempre mais do mesmo também cansa. A questão é que as relações de poder dentro do Teatro estão praticamente invertidas. Há "poderes fácticos" que mandam mais do que os "políticos". Na "reestruturação" em curso, pode ser que se lembrem de ir mais além do que atalhar apenas os "elos" mais frágeis e óbvios. Os bons exemplos começam "por cima".

Sete. Disse aqui outro dia que o Sr. secretário de Estado da Cultura bem que podia agradecer os préstimos ao actual director do teatro de ópera nacional, e escolher outro nome para o substituir, a partir do segundo trimestre do ano que vem. Quem diz o director, diz a direcção toda. Deixo uma sugestão. Conhece bem o sector, trabalhou no corpo legislativo do Ministério da Cultura tal como ainda está desenhado (e não está mal desenhado), é dedicado, competente e sabe de música. Chama-se Rui Vieira Nery.

Oito. O mesmo secretário de Estado da Cultura anda obcecado com a "gestão empresarial" dos teatros nacionais e organismos afins, depois de os ter deixado transformar, para efeitos de gestão, em autênticas direcções gerais simples. Parece que pôs uns quantos assessores a "navegar" pela internet e que consultou uns "conselhos artísticos e jurídicos" para chegar ao "modelo" de legislação adequada àqueles organismos. Esse "modelo" anda a "passear-se" pelos caminhos da burocracia estatal, e é suposto que venha a servir primeiramente no Teatro D. Maria. Como em Portugal não abundam "conselhos artísticos", seria interessante saber com quem Amaral Lopes se "aconselhou". Terá sido com Ricardo Pais, Ana Pereira Caldas ou Carlos Vargas, P. Pinamonti, Jorge Vaz de Carvalho, João Grosso ou A. Lagarto? Não consta. E quais serão os "paí­ses europeus que são referência para nós" ? Ninguém sabe. Quando, na gestão Carrilho/Nery se tratou das orgânicas destes organismos, houve, de facto, quem fosse ouvido, e ligado "artisticamente" ao assunto. Eu suspeito que agora as coisas tenham ficado apenas entre amáveis e "amigos" juristas, defensores do tal "caldo empresarial", que também ninguém sabe muito bem o que é.

Nove. Nem tudo é completamente mau. Leio no DNA do Diário de Notícias de sábado, uma entrevista com Gabriela Moita, psicóloga, cuja tese de doutoramento se intitula "Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico". Não conheço a senhora de parte alguma, mas a entrevista é muito inteligente. O que diz sobre a família, sobre a sexualidade, sobre a "aceitação" ("quem ama, aceita") e sobre os fantasmas que estes assuntos sempre despertam na nossa pequena burguesia de espírito, vale a pena ler. "Mesmo as pessoas mal tratadas dentro da família continuam com o discurso interiorizado de que a família é o local mais quentinho do mundo e o melhor e aquele que nos apoia. Ainda que levem pancada e vão parar ao hospital todos os dias. Penso que o controlo da sexualidade passa pela tentativa de impor esta estrutura social ao ser humano". Infelizmente não há link.

12.10.03

A POESIA CANTADA

Venho de ouvir Carlos do Carmo, nos 40 anos de carreira celebrados no Coliseu, na presença de Jorge Sampaio. No final, teve direito a venera municipal das mãos de Santana Lopes. Eu gosto de fado e aprecio a voz de Carlos do Carmo. Gere com inteligência a sua carreira e apresenta um espectáculo com profissionalismo. Escolheu bem os seus poetas: Bocage, O' Neill, Pedro Tamen ou Ary dos Santos. Sobretudo Ary dos Santos, de quem era amigo, e que acompanhou nas suas últimas horas de vida. Para o ano, passam 20 anos sobre o desaparecimento de José Carlos Ary dos Santos. Era um homem insubmisso, irreverente e terrivelmente caprichoso. Tinha um talento raro para as letras das cantigas, que lhe surgiam, por vezes, num fôlego. Não era, a meu ver, um extraordinário poeta. No entanto, "cantou" e amou Lisboa de uma forma excessiva e terna, em poemas a que Carlos do Carmo também emprestou a sua voz. Quando morreu, em Janeiro de 1984, Baptista Bastos escreveu sobre ele, dizendo que Ary morrera "cheio de álcool e de solidão". Um destino funesto, o destes homens e mulheres, sensíveis e inconformados nesta era de plástico e de marionetas frívolas. Às tantas convencem-se de que já não andam aqui a fazer nada, apesar da exaltação da "vida" que ressuma dos seus versos. E acabam com a facilidade com que escreviam uma linha. Dele deixo este Soneto:

Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?

Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.

11.10.03

LEVAR A SÉRIO ?

Falei aqui em mediocridade larvar para dizer dos tempos que correm entre nós. Esta semana acentuaram-se os sinais. Praticamente ninguém se salvou. No episódio da "libertação" de Paulo Pedroso, só se aproveitou a sua postura discreta e o o seu discurso sensato e equilibrado. Aquele "prec" parlamentar, açulado pelas televisões, limitou-se a ser mais uma rude farpa auto infligida pelo PS. Culminou, para aqueles lados, na apagada intervenção do Dr. Ferro no debate sobre a construção europeia. Não cintila naquela alma uma chama, não desponta daquele discurso qualquer fulgor ou esperança. As coisas, porém, também não foram melhores para a contentinha "maioria". Barroso não soube gerir a pequena crise doméstica e ela rebentou-lhe no debate que ele queria que fosse sobre "assuntos sérios". Lá longe, nos EUA, Portas terá rido a bom rir. Em poucos dias, viu o seu parceiro auto-flagelar-se, e perder o tino, e ganhou, sem se mexer, listas conjuntas. Voltou a meter Barroso no bolso do seu fato às riscas. O PGR persiste no seu vício de fala intempestiva, sabendo perfeitamente que é "parte" nos processos, e que não "paira" angelicamente sobre a terra. E etc, etc. Fenece, pois, a confiança e a vontade de "participar". Em quê e para quê, não é verdade? No seio desta civitas confrangedoramente perdida em trevas, há quem ainda queira discutir o "referendo", por exemplo. Ou a "constituição europeia". Será que é para levar a sério?

10.10.03

PORTUGAL EM ACÇÃO?

1. Consta que o orçamento de Estado para 2004 vai aumentar as verbas em PIDDAC, entre outros, para o ministério da Cultura. O PIDDAC serve fundamentalmente para obras e equipamentos. No caso da cultura, dada a escassez dos orçamentos de funcionamento, o PIDDAC tem vindo a ser usado nos "produtos" específicos do sector. Este "desvio" na vocação primária daquelas verbas, permitiu a diversos organismos satisfazer compromissos relativos às suas actividades e produções, como forma de aliviar a asfixia geral. No entanto, julgo que esta generosidade é enganadora. Não é o reforço do "orçamento/PIDDAC" - sempre agradecido, naturalmente - que me parece essencial para as instituições sob a tutela do MC. Acresce que os orçamentos, por causa do "déficit em vigor", estão sempre à espera de"cativações", seja em PIDDAC, seja em funcionamento, o que baralha constantemente tudo isto. Repito o que aqui tenho escrito. Enquanto se entender que se deve manter um departamento governamental com a chancela "MC", o orçamento de funcionamento tem que ser mais sólido, sob pena de o "MC" nâo passar de um emblema na lapela do governo, e os organismos dependentes, não passarem de campas rasas.

2. Os organismos do MC, sobretudo os teatros, não podem funcionar sem orçamentos plurianuais. Cabe à tímida tutela da Cultura esclarecer as Finanças de que as temporadas, não só intersectam dois orçamentos de estado, como trabalham na base de uma programação de médio e de longo prazo, que envolve compromissos bem distintos de uma vulgar direcção geral que "ande ao papel". Não se desenvolve o sentido da beleza e da qualidade de vida individual e colectiva, através da chamada "cultura", aos solavancos. Como temos a "sociedade civil" que temos, indigente e medíocre, é ainda o Estado, sem complexos de "propaganda" ou de outra coisa qualquer, que pode assegurar este tipo de bem-estar. O tal "Portugal em acção" também passa por aqui.

3. Por falar em campas casas, houve um pequeno frisson , esta semana, em torno do Teatro Nacional D. Maria II. O Secretário de Estado da Cultura jurou pela enésima vez pela nova lei orgânica da casa. E foi adiantando que a lei em vigor não prevê "director artístico", uma maneira airosa de (não) explicar por que é que António Lagarto espera sentado a nomeação anunciada em Julho. É que está por resolver se vão coincidir na mesma pessoa os cargos de director - ou de presidente do conselho de administração, que é mais "neoliberal" - e de director artístico, coisa em que, penso, divergem o indigitado Lagarto e o governo. No meio desta trapalhada , o Sr. SEC deixou para Novembro a apresentação da temporada teatral, à semelhança do que já tinha feito no São Carlos. O extraordinário nisto tudo, São Carlos incluído, é que não se antevê, por mais geniais que os dirigentes sejam ( e não são ), como é que se prepara, material e financeiramente, uma temporada de teatro ou de ópera que não é para "amanhã" e que já era para "ontem". Será esta a ideia do "Portugal em acção" do Sr. Secretário de Estado ?
BREVES LITERÁRIAS

A primeira. Reponho um post de Junho, quando li O Paraíso na Outra Esquina, de Mario Vargas Llosa, recentemente traduzido e editado pelas Edições D. Quixote.

(...) "El Paraíso en la otra esquina". Trata-se de um romance arquitectado em torno das vidas da feminista Flora Tristán e do seu neto, o pintor Paul Gauguin. Gauguin começou por ser um bem sucedido corretor da bolsa de Paris, fez o que se chamaria um relativamente bom casamento, com uma nórrdica e, de repente, começou a pintar. Conheceu Van Gogh e, atraí­do pela expontaneidade da natureza e das criaturas do Tahiti, para ali embarcou, abandonando a, até então, sua civilização. A sua obra reflecte esta vivência e a sua errância algo desregrada e libertina que Llosa bem descreve no seu livro, em que alterna o percurso do neto com o da avó, anos antes. Flora foi o que podería­mos chamar uma mulher cosmopolita, parece que bonita, e empenhada na sensibilização social e na emancipação de homens e mulheres nos finais do século passado. Também ela abandonou a sua primitiva condição de esposa e de mãe para se lançar, mundo fora, na utopia da libertação. Os capí­tulos dedicados a Flora Tristán revelam uma mulher com uma audácia interior e uma coragem moral e física impressionantes, ao mesmo tempo que insinuam a imensa solidão do seu combate.O mundo de hoje não permite mais "fabricar" criaturas como Gauguin ou Flora. O texto de Vargas Llosa tem o mérito de nos remeter para os caminhos inacabados de ambos, cada um à sua maneira, em busca do paraíso na outra esquina.

A segunda. Num dos mais bonitos blogues, o Almocreve das Petas, encontro poesia de Cesariny, devidamente ilustrada, que é coisa que eu não sei fazer.

Poema do Encontro de Joachim de Flora com Emmanuel Swedenborg; e de Ambos com William Blake; e de Blake com Dante Gabriel Rossetti.

I am eu sou the immaculate a
Imaculada conception concepção.
The Virgin A Virgen of Lourdes
de Lourdes

I am eu sou the first a primeira and the last e a última
I am eu sou the honored one a venerada and the scor-
ned oane e a execrada
I am eu sou the whore a puta and the holy oane e a
santa
I am eu sou the wife a esposa and the virgin e a virgem
I am eu sou the mother a mãe and the daugther e a filha
I am eu sou the members o clã of my mother da minha mãe
I am eu sou the barren oane a estéril and many e
muitos are hers sons são os seus filhos
I am eu sou she whose wedding aquela cuja núpcia
is great é grande and I have not taken e não a-
ceitou a husband marido
I am eu sou the bride a noiva and e the bridegroom
o noivo
and it is my husband e é meu marido who begot
me quem me gerou
I am eu sou the the mother a mãe of my father
de meu pai and the sister e a irmã of my
husband de meu marido and he is e ele é
my offspning a minha descendência

A Deusa Ishtar
(mais tarde Ísis). Suméria
the Godess Ish-
tar, (later Isis), Sumeria

[Mário Cesariny de Vasconcelos, 89, in Via Latina]

9.10.03

OUTRA COISA

Durão Barroso não aproveitou a segunda saída intempestiva de um membro do seu governo para mexer nele. Fez mal. Recorreu ao inner circle, na tradição dos seus antecessores imediatos, para substituir o embotado Martins da Cruz. Teresa Gouveia, que o ano passado não se deixou tentar pela cultura - e tinha razão, tentar-se com o quê? - , acha-se agora em condições de emprestar o seu ar amável à diplomacia portuguesa, logo a seguir ao "primeiro". Até aqui não há nada de particularmente excitante. Acontece que Barroso também decidiu juntar o CDS/PP às listas do PSD nas eleições europeias de 2004, prometendo longa vida e venturas a esta "aliança". Naturalmente que o porta-voz desta bem-aventurança não podia ser outro senão Santana Lopes. Isto é um mau sinal. Desde logo, porque parece que o PSD tem receio de ir a votos sozinho. Primeiro rombo na tradição da vocação maioritária do partido, conquistada por Cavaco. A seguir, porque está montado o cenário para Santana poder avançar para onde se sabe. Segundo rombo, através do afastamento do mesmo Cavaco do eventual caminho para Belém. E finalmente o terceiro rombo, que consiste no conluio com Portas, daqui para diante. Eu estou no PSD há 20 anos. Não ligo pevas a militâncias, mas presto alguma atenção a valores. Como tal, terei que estornar o meu voto de 2002 nas europeias de 2004. Neste cenário, o futuro nada terá a ver com o PSD. Há que passar adiante e pensar em outra coisa.
FICAR NA SUA

O analfabetismo imaginativo das nossas gentes manifesta-se amíude em "debates públicos" temáticos propiciados pelas rádios e pelas televisões. O pretexto último é a libertação de Paulo Pedroso. Por mais que se explique que tudo resultou, desta vez, do correcto funcionamento do Estado de Direito e dos mecanismos das garantias de defesa de qualquer cidadão, há quem continue a ver nisto o dedo dos "poderosos". Ou uma manobra contra o "juiz" ou contra "as crianças". É claro que a ida ao Parlamento não ajudou em nada a percepção da coisa, pois ninguém está disponível para compreender um gesto "simbólico". Nem isso, nem nada. O Sr. Namora também apareceu, no seu habitual registo "lança-chamas", bem como o inevitável e ubíquo Dr. Rogério Alves. E mais uns quantos. Não adianta "debater" ou "tentar explicar". O post em baixo ajuda a perceber porquê. A "intensidade de consciência" não é propriamente o "forte" dos espectadores ou dos ouvintes. E os "animadores" raramente estão verdadeiramente interessados em esclarecer. Falam essencialmente "para dentro". Cada um fica sempre na "sua".

8.10.03

OLHANDO A TELEVISÃO

Uma imagem é esvaziada da sua força dependendo do modo como é usada, de onde e de quantas vezes é vista. As imagens mostradas na televisão são por definição imagens que, mais tarde ou mais cedo, cansam. O que parece ser insensibilidade tem a sua origem na instabilidade da atenção que a televisão está organizada para despertar e saciar através do seu excesso de imagens. A fartura de imagens mantém a atenção leve, móvel, relativamente indiferente ao conteúdo. O fluxo de imagens exclui uma imagem privilegiada. O que conta em televisão é que se pode mudar de canal, que é normal mudar de canal, ficar-se insatisfeito. aborrecido. Os consumidores desanimam. Têm de ser estimulados, de ser empurrados, continuamente. O conteúdo não é mais do que um destes estimulantes. Uma atenção mais reflexiva ao conteúdo exigiria uma certa intensidade da consciência - precisamente aquela que é atenuada pelas expectativas atribuí­das às imagens disseminadas pelos media cujo despojamento de conteúdo contribui decisivamente para o amortecimento das emoções.

Susan Sontag, Olhando o Sofrimento dos Outros ( Regarding the Pain of Others ), trad. de José Lima, Gótica, 2003.
POLÍTICA DE CAÇA

Eu fui dos que votaram em Durão Barroso. O estilo mole e razoavelmente inconsequente de Guterres incomodava-me. E o Dr. Ferro manifestamente não impressionava e pouco tinha - e tem - de estimulante. Já em 1995 eu achava que Barroso devia ter sucedido a Cavaco, mas isso ainda não estava "escrito nas estrelas". A persistência foi premiada o ano passado, e eu acreditava que o nem sempre feliz candidato a primeiro-ministro, iria com certeza tornar-se um bom chefe de governo. No entanto, da vasta parafernália de apoiantes da campanha e de "nomes sonantes", pelas suas qualidades pessoais, polí­ticas ou técnicas, que imaginávamos que pudessem vir a ser escolhidos, muito poucos ou nenhum chegou a ser "eleito". É aqui que aparece a metáfora marcelista de que "quem não tem cão, caça com gato". Na realidade, o conjunto de governantes que foi apresentado à Pátria, entre ministros e secretários de estado, suscitou quase unanimemente um enorme bocejo. Faltava ali qualquer coisa. Em geral, não havia nem densidade política, nem grande preparação. Era - e é - quase tudo bastante fraquinho. E há demasiado amadorismo nisto tudo. Estes últimos desenvolvimentos, que lhe saíram péssimos, demonstram que é necessário inverter a "política de caça". Barroso precisa de predadores de largo porte, leais, mas sem temores reverenciais e, de preferência, que não sejam venais. Doutro modo não irá muito longe. Definitivamente não pode ir à caça com "gatos". Arrisca-se a acabar arranhado e de sacola vazia.

7.10.03

CALMA DE MORTE

No final das "notas musicais" de ontem, apelei para que o Ministério da Cultura despertasse do estado letárgico em que se encontra. Dou um exemplo. No princí­pio de Julho, mal João Grosso se tinha demitido do Teatro D. Maria II, foi anunciado que António Lagarto o iria substituir. Passaram três meses, e Lagarto continua de fora. Supostamente está-se à espera de uma nova lei orgânica para o Teatro. Para ser testada e para ver se, com uma nuance aqui ou ali, pode servir de "modelo" para os restantes teatros nacionais. É o ímpeto "reformador" no seu melhor estilo. Diz-se que se vai fazer, mas mesmo que não se faça, já ficou dito. A técnica do "passar do tempo" é muito antiga, mas tenho sérias dúvidas de que, a final, frutifique. Quase todos os organismos estão praticamente parados e desmotivados. Nestes termos, os actuais responsáveis políticos do MC acabam por dar razão a quem vem defendendo a inutilidade da existência de um ministério da cultura. Não sopra dali um rasgo, uma ambição ou uma ideia. Se é só para "gerir" e "poupar", mais vale chamar a Direcção Geral do Orçamento e "fechar" o ministério. Sai mais barato aos contribuintes e aliviam-se dois governantes. Um dia eles serão os primeiros a entender que a "calma" onde insustentavelmente reinam, é uma perversa "calma de morte".

6.10.03

NOTAS MUSICAIS

1ª Amália. Há quatro anos, Amália lançou um olhar derradeiro da sua janela com vista para o mar, lá para baixo, no litoral alentejano, e veio morrer à  sua casa da Rua de São Bento. Provavelmente já não lhe interessava continuar a viver, depois de já não poder cantar. Em certo sentido, no entanto, está aí, viva, magní­fica nos seus discos, com os seus poetas, a sua cidade e o seu "povo". Respeito os esforços destas novatas cantadeiras. Mas, por favor, não façam confusões. Não há mais "amálias".

2ª Demissão. Terminaram, a contento do Presidente da Câmara de Lisboa, os "jogos florais" que o opunham a Miguel Graça Moura, o dispendioso director da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Por mais valiosa que tivesse sido a prestação deste maestro em prol da causa da Orquestra e da Escola de música ali erigida, os lamentáveis episódios relativos à sua gestão e à forma narcísica como interpretava o seu papel de director e de mais não sei quantos papéis que acumulava, redundaram neste desfecho anunciado, o que não o abona particularmente. Esperemos agora que a Câmara, os "sponsers" e a nova direcção, não dêem cabo da Escola de música, e que continuem a promover o desempenho da Orquestra. Como primeira consequência desta telenovela, o concerto de encerramento do Festival Internacional de Órgão que deveria ter lugar esta noite, na Sé de Lisboa, sob a direcção de Graça Moura, foi cancelado.

3ª A crítica do crítico. Na sequência da crítica ao concerto inaugural da "Temporada de Outono" do Teatro Nacional de São Carlos, no São Luiz, a semana passada, o Crítico fez finalmente o seu "comentário" ao actual "estado da arte" naquele Teatro. Desta vez, eu optei por não reproduzir aqui o texto, remetendo antes para a sua leitura directa no blogue do Crí­tico. Isto como forma de criticar o "crítico" pela sua persistência em manter o anonimato. Percebo perfeitamente o incómodo que, por vezes, o "dar a cara" representa. Eu já o senti quando, há uns tempos, fui alvo de uma tentativa mesquinha e enviesada de censura ao Portugal dos Pequeninos, justamente por causa do que aqui se tem exposto sobre o São Carlos. Mas, quando se quer ter uma posição pública, ainda por cima "técnica", sobre determinados assuntos ou pessoas, e até por puras determinantes éticas e cívicas, é bom que não nos escondamos sob a capa de uma mera possibilidade. Quanto ao comentário do Crí­tico, apenas duas notas. A Orquestra Sinfónica Portuguesa é um grande corpo musical, constituído por bons e competentes músicos, e que, de facto, merecia outro registo na sua direcção musical. Zoltán Peskó está na fase crepuscular da sua carreira. Porém, sendo ainda e claramente um maestro de qualidade e com qualidades, a forma como ele e o director artístico têm gerido a sua prestação de director musical da OSP, não parece ser a mais eficaz e eficiente, na perspectiva dos interesses da Orquestra e do Teatro de São Carlos. A Orquestra não pode ser "comandada à distância". Por isso, antes de sair, propus (está escrito) que se ponderasse uma alteração ao contrato celebrado entre o Estado português e Peskó, no sentido de reequilibrar a relação custo/benefí­cio para ambas as partes. Desconheço o seguimento dado ao assunto pela actual direcção do TNSC. Seria interessante que o Ministério da Cultura despertasse da sua aflitiva letargia e, entre muitas outras coisas, prestasse alguma atenção a este assunto. É que - bolas! - só temos este teatro de Ópera. E directores...há muitos.

5.10.03

ESTAR MAL

A democracia portuguesa está a passar por um momento de mediocridade larvar. É bom lembrá-lo à data de hoje, fundadora de um regime que se queria generoso e "reformador", e que acabou como acabou, minado por dentro e por fora, sem piedade ou remorsos. Note-se que eu sou claramente republicano e acredito nos valores "republicanos" no exercício da acção política. O rosto tenso de Durão Barroso, ontem, em Roma, ao lado de um patético Ministro dos Negócios Estrangeiros, fazendo de conta de que não se passa nada, é significativo. A conversa mole e ambígua do PS acerca do episódio da "colocação" ou acerca do referendo europeu, também não ajuda. E aquele porta-voz do Dr. Ferro pura e simplesmente não existe. Como não existe o porta-voz menino do PSD, um tal Pedro Duarte. No CDS/PP soube-se que no apoteótico congresso, cerca de 600 e tal congressistas é que votaram, num total de 1700, apesar da fidelidade canina ao líder. A recorrente sociedade civil, retratatada diariamente nos intermináveis telejornais, e que a "política" quer pujante, liberta e dinâmica, é a indigência material e intelectual que se vê. Já não é só uma questão geral de "mal estar", a que aludiu Mário Soares, um eterno optimista. O problema desta pobre República é mesmo "estar mal". Isto não está de se recomendar a ninguém.
5 DE OUTUBRO

Este feriado que é domingo, está explicado em poucas palavras na nova frente. Para mais detalhes, recomendo a leitura do livro de Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo - A Revolução de 1910, que, em tempos, foi publicado pela D. Quixote e reeditado anos depois, pela Gradiva. Deverá agora estar esgotado. Foi a sua tese de doutoramento, em Inglaterra, algures entre 1973 e 1974.

4.10.03

UM ADEUS CHIC

Quando, há cerca de quase dois anos, Yves Saint Laurent se despediu do mundo da "alta costura", proferiu perante os jornalistas umas breves, intensas e belas palavras que hoje, não sei bem por que razão, me apetece aqui deixar. Se calhar por muito modestamente também pertencer à categoria dos "nervosos" de que falava Proust.

J'ai vécu pour mon métier et par mon métier. En ouvrant en 1966, pour la première fois au monde, une boutique de prêt-à-porter à l'enseigne d'un grand couturier, j'ai conscience d'avoir fait progresser la mode de mon temps et d'avoir permis aux femmes d'accéder à un univers jusque-là interdit. Comme Chanel, j'ai toujours accepté la copie et je suis très fier que les femmes du monde entier portent des tailleurs-pantalons, des smokings, des cabans, des trench-coats. Je me dis que j'ai participé à la transformation de mon époque. Je l'ai fait avec des vêtements, ce qui est sûrement moins important que la musique, l'architecture, la peinture et bien d'autres arts. On me pardonnera d'en tirer vanité (...). J'ai voulu me mettre au service des femmes. C'est-à-dire les servir. Servir leur corps, leurs gestes, leurs attitudes, leur vie. J'ai voulu les accompagner dans ce grand mouvement de libération que connu le siècle dernier.(...) J'ai conscience d'avoir, pendant ces longues années, accompli mon travail avec rigueur et exigence. Sans concessions. J'ai toujours placé au-dessus de tout le respect de ce métier qui n'est pas tout à fait un art mais qui a besoin d'un artiste pour exister. Je pense que je n'ai pas trahi l'adolescent qui montra ses premiers croquis à Christian Dior avec une foi et une conviction inébranlables. Cette foi et cette conviction ne m'ont jamais quitté. Tout homme pour vivre a besoin de fantômes esthétiques. Je les ai poursuivis, cherchés, traqués. Je suis passé par bien des angoisses, bien des enfers. J'ai connu la peur et la terrible solitude. Les faux amis que sont les tranquillisants et les stupéfiants. La prison de la dépression et celle des maisons de santé. De tout cela, un jour je suis sorti, ébloui mais dégrisé. Marcel Proust m'avait appris que "la magnifique et lamentable famille des nerveux est le sel de la terre". J'ai, sans le savoir, fait parti de cette famille. C'est la mienne. Je n'ai pas choisi cette lignée fatale, pourtant c'est grâce à elle que je me suis élevé dans le ciel de la création, que j'ai côtoyé les faiseurs de feu dont parle Rimbaud, que je me suis trouvé et compris que la rencontre la plus importante de la vie était la rencontre avec soi-même. Pourtant j'ai choisi aujourd'hui de dire adieu à ce métier que j'ai tant aimé.
OS MEUS MENINOS

A D. Catalina Pestana, veneranda provedora, dá uma entrevista no Expresso. Para além de nos prometer "terramotos" e cataclismos piores para o desfecho do "processo", jura pela credibilidade das "suas" testemunhas e destila o seu profundo pensamento acerca do que se está a passar, dentro e fora dos muros da "casa", esta sim "a mais vigiada de Portugal". Lá entendeu que nem tudo correu bem na "marcha branca", mas que o propósito valeu o circo. O que Sampaio disse esta semana sobre justiça, mereceu-lhe o comentário desdenhoso de que "os meus meninos não ouvem os discursos do PR". Catalina, pelos vistos, julga-se "dona" dos rapazes e das raparigas postos à guarda do Estado e sua (deles) "padeira de Aljubarrota". No passado, quando os teve sob sua responsabilidade num dos colégios da instituição, não parecia tão aguerrida. Nem mesmo agora, quando, por causa de um processo disciplinar de um funcionário, o mandou arquivar, provavelmente, entre outras coisas, pela falta da consistência da prova, ou seja, das "testemunhas". Ficamos a saber que, para Catalina, as testemunhas, "os meus meninos e meninas" são todos iguais, só que há umas mais iguais do que outras.
MINUDÊNCIAS

Mário Soares fez o seu balanço mensal na Antena 1, da RDP. Referiu-se ao nosso momento social e político como de "mal-estar" e chama a atenção para a falta de atenção que nós prestamos à questão europeia. Voltou a verberar o "populismo" que se abriga irresponsavelmente por detrás de pessoas com o ar mais respeitável deste mundo, e sustenta que este não gira, nem pode girar, em torno do homem do Texas. Quanto à peripécia do "tumor/bolor", Soares limitou-se a citar um brocado latino e a evocar a sua idade, querendo dizer, com humor, que o "pretor" não se ocupa com minudências. Infelizmente - digo eu - são as minudências que vão fazendo escola na nossa vida quotidiana. As minudências e os seus protagonistas, também eles, quase sempre menores. De vez em quando, porém, há uma elevação ou um rasgo. Por exemplo, Pedro Lynce, uma pessoa que não se destaca pela eloquência, esteve à altura das suas responsabilidades cívicas e éticas, e partiu. Pelo contrário, o seu colega MNE assobiou para o alto e invocou a "honra" para ficar. Deve julgar que tudo não passou de uma "minudência".

3.10.03

BREVES

1. A paródia. O Dr. Jaime Gama, ao arrepio do "núcleo duro" do seu partido e, ao que creio, de algum PSD, disse que um eventual referendo acerca da Constituição Europeia, seria uma "paródia democrática". Tem razão. Gama tem a virtude de falar pouco. É dos poucos políticos no activo que tem a tal "dimensão de Estado". É um institucionalista e mede bem cada palavra. É uma pena que não consiga "crescer" dentro do partido, e depois deste, que não consiga "crescer" para a Nação. Pode sempre tentar.

2. A cunha. O Dr. Martins da Cruz terá metido uma "cunha" ao pobre do Dr. Lynce para que a filha entrasse em medicina, com base nas regras excepcionais previstas para familiares de diplomatas, quando estas já não se lhe aplicavam. E Lynce terá excepcionado a excepção. Imagino que centenas de candidatos à entrada naquele curso também tenham tido o mesmo pensamento. Só que não "conhecem" o Dr. Lynce, nem são seus colegas no Governo. Estar episodicamente no governo, a servir a chamada "causa pública", não faz de ninguém dono "disto". É de elementar bom tom não o esquecer e, de preferência, não abusar.

3. Desertificação. No seu artigo de ontem do Público, José Pacheco Pereira explica, e bem, quais os efeitos a médio e a longo prazo, para o PSD, da deslocação para a "direita", via aliança com o PP. A mais evidente é a "secagem" do centro-esquerda, do célebre "centro" onde se ganham e perdem eleições. A manobra presidencial do "pacto de geração" que envolve Portas, Santana Lopes e respectivas ordenanças, só serve para acentuar esta desertificação, e destina-se a ser o seu acme. Felizmente ainda há quem perceba isso. Aprende-se muito com os mais "velhinhos".


4. Desgraça. É o título de um notável "romance" do novo Prémio Nobel, o sul-africano J. M. Coetzee. Está traduzido pelas Edições D. Quixote.

2.10.03

RUÍDO

Detesto tradições universitárias. Aquelas hordas de corvos que exibem o chamado "traje académico" pelas ruas das cidades, num mimetismo insuportável, não me despertam qualquer simpatia. E as praxes idiotas, em tantos casos vexatórias, limitam-se a revelar os níveis de subtileza intelectual dos futuros "pastores" da Pátria. Desta vez - como sempre - o pretexto para o folclore, são as propinas. Mete papel higiénico pelo meio e invasões de salas de reuniões, oportunamente acompanhadas por uma câmara de televisão. Eu sou claramente a favor das propinas, admitindo naturalmente as necessárias variações pecuniárias em função da equidade e da chamada "capacidade contributiva" devidamente comprovada. Para além de quererem andar a arrastar infinitamente o rabo pelos bares das universidades, os nossos "corvos" também acham que lhes devemos sustentar as extravagâncias. Escudam-se sempre nos colegas anónimos e indigentes que dizem defender. O ministro Lynce está a milhas do seu colega David Justino. É claramente desajeitado para isto. Tem um discurso pobre e de pouca receptividade. É claro que, fosse quem fosse o ministro, esta gente não o ouviria na mesma. Porém, é mais um ruído que começa.

1.10.03

A QUALQUER PREÇO

Ontem dei-me ao trabalho de ver o Jornal Nacional da TVI, por causa do comentário do Miguel Sousa Tavares. Calhou ter havido uma intervenção do Presidente da República acerca da justiça, glosada e aplaudida pelo comentador. No essencial, Sampaio pediu cautela e ponderação aos agentes judiciais, particularmente aos detentores da acção penal (o MP, e a sua "guarda avançada", a PJ) e aos administradores da justiça, os juí­zes. Moura Guedes quase que batia em Sousa Tavares e, virtualmente, em Jorge Sampaio, recorrendo a argumentos demagógicos, populistas e de efeito fácil, que não honram a jornalista e que deslustram a jurista que ela também é. É-me penoso ver como uma boa profissional de televisão se pode deixar arrastar para o terreno viscoso da insolência e da insinuação, esse local sempre tão mal frequentado. Para tudo deve haver um limite. Não se pode querer "fazer sangue" a qualquer preço.
TEMPORADAS II

Há dois dias, o Teatro Nacional de São Carlos ainda não tinha actualizado a sua página electrónica. Entretanto, uma "mão invisível", já fez o favor de lá colocar a chamada Temporada de Outono. Em parceria com o Teatro Municipal S. Luiz, começa hoje o ciclo "Cinco Pianistas Portugueses para os Cinco Concertos de Beethoven", com o Concerto n º 2. Ao piano vai estar Artur Pizarro. Participa igualmente no programa a cantora Elisabete Matos, em obras de Gluck, Marcos Portugal, Beethoven e Mozart. Dirige a Orquestra Sinfónica Portuguesa o Maestro Riccardo Frizza.
IDEIA DA MÚSICA

A nossa sensibilidade, os nossos sentimentos, já não nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado, faustosos e inúteis como animais domésticos de apartamento. E a coragem - perante a qual o niilismo imperfeito do nosso tempo não cessa de bater em retirada - consistiria precisamente em reconhecer que já não temos estados de alma, que somos os primeiros seres humanos não afinados por uma Stimmung, os primeiros seres humanos, por assim dizer, absolutamente não musicais: somos sem Stimmung, ou seja, sem vocação. Não é uma condição alegre, como alguns desgraçados no-lo querem fazer crer, nem sequer é uma condição, se por condição entendermos necessariamente, e ainda, um destino e uma certa disposição; mas é a nossa situação, o sítio desolado onde nos encontramos, absolutamente abandonados por toda a vocação e por todo o destino, expostos como nunca antes.
E se os estados de alma são na história dos indivíduos aquilo que as épocas são na história da humanidade, então aquilo que se anuncia na luz de chumbo da nossa apatia é o céu, jamais visto, de uma situação não epocal da história humana. O desvelamento da linguagem e do ser em termos apenas epocais, que os deixam sempre não ditos em toda a abertura histórica e em todo o destino, está talvez a chegar ao fim. A alma humana perdeu a sua música - e por música entende-se aqui a marca na alma da inacessibilidade destinal da origem. Privados de época, esgotados e sem destino, chegamos ao limiar feliz do nosso habitar não musical no tempo. A nossa palavra regressou verdadeiramente ao princípio.


Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, tradução, prefácio e notas de João Barrento. Edições Cotovia