30.1.11

"CONTINUIDADES"


«Quando se estuda o século XIX ou se lê um escritor do século XIX, o que espanta não é que as coisas tivessem mudado muito, é que no essencial tivessem mudado tão pouco. A dívida e o défice, por exemplo. Toda a gente falava da dívida e do défice longamente, constantemente, obsessivamente. Falava o Parlamento, falavam os jornais, falavam os particulares (também eles, como hoje, em aflições). Não havia semana em que não aparecesse um novo plano e um novo salvador. E não havia semana em que não se anunciasse um desastre próximo: vinha aí o dia, e não andava longe, em que as receitas do Estado não iriam chegar para pagar os juros dessa enorme dívida que não parava de crescer e cada vez crescia mais depressa. Já estávamos bem abaixo da Grécia e talvez mesmo do Egipto. Que fazer? Claro que se percebia a evidência: o Estado não podia gastar o que gastava. Mas depois de se estabelecer um acordo fervoroso e geral sobre esta verdade básica e depois de os políticos jurarem a pés juntos que o cumpririam, as despesas aumentavam sempre. Para uma parte da opinião (da direita e da esquerda), só acabando com o regime se podiam pôr as finanças na ordem. Os partidos não passavam de centros de negócios (e, consequentemente, de corrupção) e de agências de empregos. Com eles no poder, ou alternando no poder, nada mudaria. Portugal precisava de um remédio ardente, de uma revolução (fosse ela qual fosse), que o purificasse. Bastava olhar para os deputados e para os ministros, um bando sem letras, sem moral e sem vergonha, saído de um canto obscuro da província para enriquecer em Lisboa. Roubavam? Claro que roubavam. E distribuíam a família (o sobrinho, o tio, o primo e o cunhado) por um Estado, como se dizia, a saque. E quem pagava? Pagava o contribuinte, o sacrificado e sofredor contribuinte, que de resto também se endividava e uma vez por outra também passava fome. Claro que, sendo o país rural, com crise ou sem ela, em parte se alimentava a si próprio (embora nunca produzisse trigo e milho que bastasse). Quem sofria era principalmente a plebe urbana, que, fora o desporto nessa altura popular de achincalhar o rei e os padres, não via para ela um lugar no mundo. Durou isto à volta de 60 anos. Quase o dobro do tempo desta nossa amável e gloriosa República.»

Vasco Pulido Valente, Público

6 comentários:

Anónimo disse...

Por alturas da Primeira Grande Guerra o Estado era 7% do PIB. Ou seja a maior parte das pessoas vivia fora dos impostos.
Hoje o Estado é mais de 50%.
O poder de cobrar devido à evolução tecnológica e ao crescimento exponencial da burocracia e corrupção legal do Estado é muito diferente.

lucklucky

floribundus disse...

no séc. XIX iniciou-se a destruição do que havia de bom no 'ancient regime'.
substituiu-se o regime por outro ainda mais podre. tocou a saque e este ainda não terminou.
o largo dos ratos organizou a mexicanização do regime

Anónimo disse...

«Para uma parte da opinião (da direita e da esquerda), só acabando com o regime se podiam pôr as finanças na ordem. Os partidos não passavam de centros de negócios (e, consequentemente, de corrupção) e de agências de empregos. Com eles no poder, ou alternando no poder, nada mudaria. Portugal precisava de um remédio ardente».


Para uma parte da opinião ?
Só se a outra parte fosse os que mamavam no regime.
Com que então 60 anos ? Que bela perspectiva !

Anónimo disse...

«O líder do PSD pediu ao Governo para identificar as empresas públicas que dão "prejuízos crónicos" e que devem por isso encerrar».

Esta é mesmo para rir.
Então o PSD não sabe quais são as empresas públicas que dão "prejuízos crónicos" ?!

joshua disse...

Os partidos dão prejuízos crónicos.

Anónimo disse...

Releio "Os devoristas" de Pulido Valente.
Não raras vezes dou por mim a perguntar-me se estou a ler o DN de hoje... Depois, caio em mim e vocifero contra aqueles que propalam que a história não se repete!