«Quando se estuda o século XIX ou se lê um escritor do século XIX, o que espanta não é que as coisas tivessem mudado muito, é que no essencial tivessem mudado tão pouco. A dívida e o défice, por exemplo. Toda a gente falava da dívida e do défice longamente, constantemente, obsessivamente. Falava o Parlamento, falavam os jornais, falavam os particulares (também eles, como hoje, em aflições). Não havia semana em que não aparecesse um novo plano e um novo salvador. E não havia semana em que não se anunciasse um desastre próximo: vinha aí o dia, e não andava longe, em que as receitas do Estado não iriam chegar para pagar os juros dessa enorme dívida que não parava de crescer e cada vez crescia mais depressa. Já estávamos bem abaixo da Grécia e talvez mesmo do Egipto. Que fazer? Claro que se percebia a evidência: o Estado não podia gastar o que gastava. Mas depois de se estabelecer um acordo fervoroso e geral sobre esta verdade básica e depois de os políticos jurarem a pés juntos que o cumpririam, as despesas aumentavam sempre. Para uma parte da opinião (da direita e da esquerda), só acabando com o regime se podiam pôr as finanças na ordem. Os partidos não passavam de centros de negócios (e, consequentemente, de corrupção) e de agências de empregos. Com eles no poder, ou alternando no poder, nada mudaria. Portugal precisava de um remédio ardente, de uma revolução (fosse ela qual fosse), que o purificasse. Bastava olhar para os deputados e para os ministros, um bando sem letras, sem moral e sem vergonha, saído de um canto obscuro da província para enriquecer em Lisboa. Roubavam? Claro que roubavam. E distribuíam a família (o sobrinho, o tio, o primo e o cunhado) por um Estado, como se dizia, a saque. E quem pagava? Pagava o contribuinte, o sacrificado e sofredor contribuinte, que de resto também se endividava e uma vez por outra também passava fome. Claro que, sendo o país rural, com crise ou sem ela, em parte se alimentava a si próprio (embora nunca produzisse trigo e milho que bastasse). Quem sofria era principalmente a plebe urbana, que, fora o desporto nessa altura popular de achincalhar o rei e os padres, não via para ela um lugar no mundo. Durou isto à volta de 60 anos. Quase o dobro do tempo desta nossa amável e gloriosa República.»
Vasco Pulido Valente, Público
6 comentários:
Por alturas da Primeira Grande Guerra o Estado era 7% do PIB. Ou seja a maior parte das pessoas vivia fora dos impostos.
Hoje o Estado é mais de 50%.
O poder de cobrar devido à evolução tecnológica e ao crescimento exponencial da burocracia e corrupção legal do Estado é muito diferente.
lucklucky
no séc. XIX iniciou-se a destruição do que havia de bom no 'ancient regime'.
substituiu-se o regime por outro ainda mais podre. tocou a saque e este ainda não terminou.
o largo dos ratos organizou a mexicanização do regime
«Para uma parte da opinião (da direita e da esquerda), só acabando com o regime se podiam pôr as finanças na ordem. Os partidos não passavam de centros de negócios (e, consequentemente, de corrupção) e de agências de empregos. Com eles no poder, ou alternando no poder, nada mudaria. Portugal precisava de um remédio ardente».
Para uma parte da opinião ?
Só se a outra parte fosse os que mamavam no regime.
Com que então 60 anos ? Que bela perspectiva !
«O líder do PSD pediu ao Governo para identificar as empresas públicas que dão "prejuízos crónicos" e que devem por isso encerrar».
Esta é mesmo para rir.
Então o PSD não sabe quais são as empresas públicas que dão "prejuízos crónicos" ?!
Os partidos dão prejuízos crónicos.
Releio "Os devoristas" de Pulido Valente.
Não raras vezes dou por mim a perguntar-me se estou a ler o DN de hoje... Depois, caio em mim e vocifero contra aqueles que propalam que a história não se repete!
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