29.11.08

A VIDA A DOIS ANOS DOS CINQUENTA




«Não há transição. A infalibilidade e a confiança perdem-se de repente. Ontem corria tudo bem, hoje corre tudo mal. Ontem não se fazia um erro, hoje só se fazem erros. A pessoa é a mesma: o corpo e a cabeça. As circunstâncias são as mesmas, os outros são os mesmos. Por mais que se procure, nada mudou. Só mudou o efeito que se produz no mundo. Um homem deita-se com o mundo aos pés e acorda com ele às costas. As mulheres fogem, os amigos desaparecem, os telefones desligam-se. Dantes andava-se e esquecia-se. Agora, a vida pára. Repete-se. Um mês é igual ao anterior e ao próximo e ao seguinte. Não acontece nenhuma coisa diferente, só acontecem coisas indiferentes. Por qualquer razão obscura, não se consegue descobrir o sítio onde as coisas acontecem; e elas já não acontecem onde aconteciam.(...) Um pequeno pânico instala-se. Ao princípio pensou-se que era um estado passageiro, uma época de azar ou de mau jeito. Mas depois o estado não passa, a sorte não vem e o mau jeito continua. Conta-se com angústia o tempo para trás e, a certa altura, conta-se com terror o tempo que sobra. Deixa-se de ter quarenta e três ou quarenta e sete anos e têm-se treze anos até aos sessenta ou dezoito até aos sessenta e cinco. E não será optimismo os sessenta e cinco? E vale a pena? Acontecem coisas aos sessenta e cinco? Não com certeza as que acontecem aos trinta.(...) Eu penetrei na impropriamente chamada meia idade desta maneira: ou seja, aflito. O céu caiu-me em cima sem aviso. Nestas crises, segundo o costume, as pessoas agarram-se: à família, ao trabalho, às ambições. Reparei que os meus amigos se agarravam. Um a um, consoante a sua natureza, transformaram-se em secretários de Estado, políticos respeitáveis, académicos triunfantes, altos funcionários ou pais extremosos. Vários preferiram a virtude, ideológica ou sexual. Com meritórias excepções, quase todos se encaminharam. Mas precisamente eu não pretendia encaminhar-me. Deus sabe que eu nunca fui assim.»

Vasco Pulido Valente, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim

(Clip: Renato Bruson,Verdi, Macbeth. Ópera de Berlim, 1987)

8 comentários:

joshua disse...

Pois, isto auto-retrata-me.

Anónimo disse...

Então...parabéns! Ou Happy Birthday como diriam os ingleses, muito mais apropriado.

Anónimo disse...

do macbeth lembro-me sempre do encontro com as bruxas.
as bruxas do meu tempo são os socialistas que voam de tacho em tacho e precisavam duma boa vassourada.
por falar no veneno das bruxas há grande número de solanáceas por essa lisboa.
a solanum dulcamara foi transplantada por qualquer aldabrão da politica para fabricar o elixir "largo dos ratos".
PQP

radical livre

Nuno Castelo-Branco disse...

Como estou de acordo com ele!

Pedro disse...

Copinho de leite kafkiano. Como se a vida pudesse ser de outra maneira, como se por qualquer milagre fôssemos ficando mais velhos, e mais bonitos, mais cansados, e mais fortes, como se os outros ficassem (ou tivessem de ficar) à espera da nossa morte, para depois, poupando-nos à angústia, irem eles. E o mais ridículo de tudo isto é alguém pensar que esta amargura psicomarianesca vale a pena ser contada, como se de novidade se tratasse.

Anónimo disse...

Vai, minha geração, explica bem alto a toda a gente / que és por demais inteligente, para sujar as mãos neste (...) processo (...)De fingir que o nosso destino é ser um bocadinho melhor que antes.
Ext. A Minha Geração, JP Simões, 1970

Tony Vieira disse...

Temos o Portugal que votamos, os políticos de chinelo arrastar enquanto vendem o seu peixe longe da ASAE!

VANGUARDISTA disse...

Caro João,
A vida a um ano dos 50 tem mais "charme", mais "glamur" outra "vitesse" ...
Um abraço,
Por experiência própria.
Vive la vie!