1.3.08

O "POVO"


«Não penso que o "povo" - esse mito romântico - jamais tivesse chegado à Índia sem um Dias ou sem um Gama, que os Gregos se tivessem disposto ir até aos confins do mundo se não tivessem a loucura grandiosa de Alexandre a espicaçá-los. Ter-se-iam ficado, quando muito, pelo primeiro saque e com a barriga cheia de vinho e violações das primeiras conquistas. O povo quer sardinhas na brasa, um copo de vinho e uma broa. O grande mito do nosso tempo reside precisamente aqui: o de fazer crer que somos todos iguais. O grande erro é o de fazermos das elites povo, atrelando-as ao estômago e à sardinha a fumegar numa broa saída do forno. Antes, ensinava-se na academia que morrer era um privilégio reservado àqueles que serviam as pátrias. Hoje, ensina-se-lhes tabelas remuneratórias, sociologia e outras fantasias. As estátuas que povoam os nossos jardins, praças e avenidas não são propriamente as de comedores de caracóis ou libadores de néctares.»

Miguel Castelo-Branco, in Combustões

6 comentários:

Anónimo disse...

Dias , Gama, Alexandre não sao povo ?? Sao alienigenas destinados a reconduzir hordas de humanos desgovernados ?? Que concepção mais restrita de "povo" ... AS revolucoes americana e francesa nao conseguiram mudar certas mentalidades ...

lb disse...

É pena que aqueles que se apressam para morrer ao serviço da pátria nunca se contentam de morrerem sozinhos.
E se os feitos de um Dias ou Gama, e a "loucura grandiosa" de Alexandre resultavam em algo mais do que numa carnificina inútil de um Genghis Khan, isso deve-se a homens como Sócrates, Aristoteles, Solon, Jesus, esses sim comedores de caracóis ou libadores de néctares.

joshua disse...

Penso que o Miguel está certo: o Povo, Ente Cego e Aleatório em tudo, nada teve a ver com iniciativas visonárias decisivas de raiz e génese individual.

Mas se calhar teve tudo a ver com hecatombes perpetradas por anti-visionários, temendo-os, subscrevendo-lhes o sangue e a sanha, submetendo-se-lhes alarvemente.

Fora da perspectiva romântica afagadora de colectivos que não se podem afagar, tudo germina, Dias, Gama, Alexandre, por haver um Povo a quem agradar. Agradar ao Povo, ainda que superficialmente e ilusoriamente.

O Povo é a derradeira sedução para quem tem Um Olho e quer Reinar: para quem escrevemos? Para quem falamos? Quem podemos influenciar? Quem podemos seduzir? De que PescaNovas se faz a Política? De que Fim da Publicidade na RTP? De que entretenimentos e alienações não se lança mão por causa de uma ideia aparvalhante de Povo?

Cuidado, João! Temos de ter cuidado com o encerramento para obras do Rosto de um Povo.

O conceito de Povo Eleito não é nada romântico, mas tecitura histórica com genealogia e nome próprio, com impressões digitais e heroísmos imperceptíveis, sangue derramado, decisões extraordinárias. Nem é preciso remontar a conceptualizações românticas para reconhecer isto.

PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

Curiosamente, foi um dos fundadores da Sociologia que disse isto, há muitos anos.

Anónimo disse...

Ora, perceberam muito bem o que o Miguel quis dizer com "povo". Muito simplesmente, aquela gente bem retratada no Museu Carnavalet, a delirar de gozo diante da guilhotina. Aquela gente que Goya tão bem pintou em feiras ou saturnais (quase indestrinçáveis); Aqueles tipo que surgem nas fotos do 5 de Outubro, com carabinas na mão e logo, com as tesouras e medidores frenológicos; e, para não me alongar, lembram-se do PREC (vão ao Youtube, delirarão de gozo com as imagens da "comprativa", da "dinamização cultural", etc.)? É essa mesma gente que vemos aos berros no Preço Certo, nos Donos da Bola, nas Noites da Má Língua e Eixo do Mal, no Big Show Sic... Se acham que podem governar o país, avisem. É uma forma de ir finalmente solicitar o novo passaporte.
Nunio Castelo-Branco

Combustões disse...

O Nuno, porque me conhece, sabe e acertou. Todos devemos entender o povo como unidade e a ele pertencemos. Contudo, esse povo "ventre-ao-sol" dos outros tempos, já não existe. Em seu lugar temos a ralé e a canalha, alguma com muito dinheiro, cheia de si e sem humildade para adquirir civismo na proporção das inegáveis facilidades que a vida moderna oferece. Falava dessa canalha, mas sobretudo daquela que se passeia pelos clubes de empresários, pelas televisões e pelos corredores do poder. Essa, sim, é perigosa.