18.8.10

É TUDO GENTE MORTA*


Um acaso de montagem de estantes para albergar livros – mais livros – obrigou uma série deles a dormirem no chão por cima uns dos outros. Alguns desses livros circularam entre Cascais e Lisboa e Lisboa e Cascais, estabelecendo-se definitivamente em Lisboa uma vez fechada, para sempre, a casa de Cascais. A história de um livro não é apenas a que lá vem dentro – seja o livro sobre que matéria for. É, também, a história de quem os comprou, recebeu, manuseou, cheirou, leu, releu, deu a ler e dos lugares por onde eles passaram. Num certo sentido, só os livros e os cães nos são fiéis e podem “contar” a nossa história. Por isso o seu silêncio é tão perturbador como o das sereias. Ao folheá-los, é a nós que folheamos e aos momentos a que eles ficaram irremediavelmente associados. Um livro, qualquer um por vir, na feliz expressão de Blanchot, é a única coisa que pode condensar o tempo: o que já passou, o que passa e o que há-de passar. E à medida que se envelhece e em que pouco ou nada sobra de gestos ou pessoas, eles, os livros, dobrados, riscados, sujos ou imaculados, são o perpétuo presente de que mais custa despedirmo-nos, um dia, quando tudo finalmente acabar de acabar. Uma das pessoas que mais me ensinou a amar os livros disse-me uma vez, contemplando a sua prodigiosa biblioteca (e tinha filhos, netos, noras e genros) e com amargura - «que vai se deles quando eu morrer?». Muitos dos meus livros que andaram pelo chão são evidentemente de mortos. Peguei nas “Crónicas no Fio do Horizonte”, de Eduardo Prado Coelho. É um livro de 2004 e estive no lançamento que ocorreu no D. Maria do António Lagarto com pessoas que entretanto desaparecerem de tanto desaparecer. Li a dedicatória e umas quantas crónicas que vinham do jornal Público. Seguramente hoje temos à vontade uns vinte ou trinta “cronistas”, diários ou hebdomadários, espalhados pelos jornais. É impossível, com uma ou duas excepções, reter-lhes uma linha. É do imediato que elas todas falam numa redacção única que só é alterada pelas ténues diferenças na velocidade sináptica de cada um. Não escrever hoje num jornal ou não botar faladura numa televisão é praticamente um luxo. O livro de Prado Coelho surpreendeu alguns momentos – que viriam a ser os últimos – dessa voracidade do imediato só que apenas com um talento que os batalhões actuais raramente conseguem atingir. Até por isso os seus herdeiros deviam coligir o que ficou e colocar tudo sob a forma irredutível de um livro. Cada vez mais só sei falar de gente morta e agradeço isso aos livros e a pessoas como o Eduardo e às suas contradições, birras, afectos e desafectos. É, aliás, desse “metal fundente” que os livros são feitos. E é dentro dele que, todas as manhãs e noites do mundo até às derradeiras, apetece morrer.


5 comentários:

iupi disse...

por vezes calha a pôr aí pelo canto deste sítio um tal de 'regras para o parque humano', onde se começa por dizer que os livros são longas cartas escritas aos amigos. talvez seja a melhor maneira, ou a mais feliz, de dizer o que os livros são.

APC disse...

Caro João Gonçalves

O seu texto é magnífico. E sobre a história de cada livro - os que tem algo para contar, claro - muito haveria a escrever.

Sim, os livros são o que nos suporta, depois de decidirmos desistir de tudo o resto.

PSC disse...

Muito obrigado, muito obrigado João Gonçalves. Haja alguém que perceba o que são os livros e o que é uma Biblioteca seja ela de que tempo for.

MINA disse...

Os livros constituem o que resta. Tudo o mais passa. "Sic transit gloria mundi". Quando entre os amigos sobrantes com quem às vezes nos reunimos, se fala de terceiros, na maioria dos casos é tudo gente morta. Ou morta fisicamente ou morta espiritualmente para nós. Mas os livros permanecem. E talvez, também, os cães.

floribundus disse...

não leio mortos-vivos portugueses por causa dos 'cadáveres nos armários'.
na 'banca de cabecêra' tenho:
Walter Benjamin;je déballe ma bibliothèque
Aristote; petits traitésn d'histoire naturelle
Jean Delumeau; la peur en occident

a capa do meu livro terá foto da pintura de Lecomte du Noüy-sonho do fumador de haxe