5.5.10

GRANDEZA

«Não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da vida. São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.»

in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares

5 comentários:

Unknown disse...

Grandeza do vazio, pois claro, que quem cai não gosta, geralmente, de ir só.

Esse desassossego, com a depressão que se aproxima, tenta espíritos mais fracos mas, para nihilistas, já bastam os iluminados que nos governam, sem nenhum desse talento.

Para além do mais, quem coloca a sua esperança nos homens está à espera de quê? É preciso errar, é preciso lutar, é preciso persistir na certeza das nossas limitações e na certeza da imensurável grandeza do poder de concretização do ser humano. Se alimentado pelo fogo certo, está bem de ver, consoante o que se coloca no centro...

O versículo que tinha aqui não há muito... faltam-me as palavras... falta-me tb a Esperança talvez...

Que Portugal seja um país triste tb já não espanta, mas os portugueses é outra coisa. Para ver isso bem é preciso sair de Lisboa, e cair no país real, nesse que (ainda) produz merdas e não estudos. Pode haver casas revestidas a azulejos, mas as almas, muitas ainda, não o estão!

Paz de Cristo, que vamos precisar dela, para dar a outros.

Anónimo disse...

Palavras lúcidas. E se alguma coisa vai mudando nesta merda é sempre para pior...

Floribundus disse...

o momento actual lembra-me a letra dum faduncho de outrora
«afinal ó desgraçaado quem és tu?
eu sou um casco que deu o que tinha a dar»

Anónimo disse...

Pessoa era um homem infeliz, e de outro modo não poderia ser. A estupidez é uma forte armadura protectora contra os constantes ataques da infelicidade. "...a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes...". Pessoa consegue exprimir, claro e certeiro, o desalento do lúcido. Só no meio de emaranhados de mentiras, e devidamente cultivada a obtusidade, é possível uma modesta e burocrática felicidade, com alguns picos - hoje chamados "férias", "13º mês", "vitória do benfica", "ida à praia", "carnaval". A mentira urdida constantemente, e proporcionadora de felicidade, está aí em todo o lado, pacificadora e estupidificadora: São as expressões felizes dos anúncios; as novas oportunidades; os cartazes dos bancos com cifras e percentis; a publicidade televisiva devidamente purificada de gente real - só a publicidade para restaurar a felicidade e dar um ar de rotina tranquila, logo após, ou no meio, de debates, notícias ou programação onde se tenta expor aos olhos de todos a crua e arrepiante realidade. E tudo isto é apenas um pouco de toda a ilusão. A infelicidade é também a consciência constante e incontornável de tudo o que de estúpido e cruel - tortura a animais, crianças e pessoas, destruição e morte evitáveis - acontece permanentemente e em simultâneo com as nossas vidas parcelares e apartadas no espaço.

Ass.: Besta Imunda

Unknown disse...

“Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.”

In Livro do Desassossego, Volume Um