16.12.09

FAZER VER É OUTRA COISA

Às vezes, aparecem e desaparecem instantes em que o mundo parece feito só para nós. Li o nome de Inês Gonçalves na capa do Ípsilon e fui logo a correr ver as fotografias dela, porque as fotografias da Inês fazem-me lembrar o dia, em 1964, na Rua da Prata, à porta do Oculista Gil, em que eu vi o mundo como devia ser. Como era provável que fosse.
Até aos nove anos, não sabia que era míope: pensava que os impressionistas tinham razão. De repente, Lisboa ficou uma cidade pontiaguda, em que as pessoas e as coisas tinham contornos que as separavam umas das outras.
Lá dentro, vejo, ardendo, duas fotografias dela de dois espantosos edifícios de Francisco Castro Rodrigues: o Bloco Sol (1952) e o Liceu do Lobito (1966). No mês passado, uma amiga que eu não sabia ter mandou-me um livro de memórias e conversas dele, maravilhosamente editado pela Eduarda Dionísio e publicado pela Casa da Achada.
O livro chama-se Um Cesto de Cerejas e é um retrato vivo de um ser livre. Não sabia que era possível tanta liberdade num ser humano, sem teimosia e sem egoísmo, com tanta inteligência e generosidade.
Nesse livro, Castro Rodrigues mostrou-me o que nunca tinha visto: o meu avô, com bons olhos. O meu pai e o meu tio odiavam o meu avô, culpando-o pela morte da minha avó. Nunca ouvi dizer dele uma boa palavra. Até ler este livro.
Fiquei esclarecido. Como fizeram os óculos e as fotografias da Inês. A luz é uma coisa; ver é outra, mas fazer ver é outra coisa ainda. Obrigado.

Miguel Esteves Cardoso, Público


Há dias, quando fui ver os meus pais, fiquei chocado com a minha antiga escola. O pátio parecia um estaleiro do Dubai, mas não era isso que me chocava. Uma tarja da Mota-Engil estava presa entre duas árvores. Por sinal, as árvores onde a Maria deixou gravada a inscrição que fulminou a Dulce: 'Maria loves Henrique'. Mas também não era isto que me inquietava. Ter o Jorge Coelho em cima das memórias amorosas é uma coisa que se aguenta em nome do PIB pátrio. O que me incomodava era outra coisa. Num dos mastros da escola erguia-se uma bandeira. Não era a bandeira de Portugal ou da UE. Era a bandeira da Mota-Engil. Ali estava o esplendor do regime no portão da minha escola. Não dava para dar menos bandeira, dr. Jorge Coelho?
Não pense, caro leitor, que estou a invocar o tema da corrupção quando falo no esplendor do regime. Não sei nada de corrupção, nem ia sujar a memória da Maria com esse assunto. Quando falo de 'regime' refiro-me a algo bem claro: a burrice económica do PS. Os socialistas, coitados, não fazem por mal. É mesmo burrice. Uma burrice pura, ingénua e quase inimputável. Eles acham mesmo que vamos sair do buraco fazendo obras públicas. O evangelho socialista assim o determina. O mundo, segundo esta crendice, começou quando o investimento público criou as obras públicas à sua imagem. Aliás, algures no Largo do Rato, deve estar escondido um velho papiro que reza assim: "No princípio, o investimento público disse 'faça-se luz', e a luz foi feita. Depois, o investimento público disse 'façam-se as construtoras civis', e as construtoras foram feitas. A seguir, alguém perguntou: 'mas quem paga isso tudo?'. Enquanto se queimava o herético perguntador, o investimento público disse 'faça-se a dívida pública, que deve ser consumida acima dos 100%'. E assim se fez o PS". Se procurarem bem, este papiro deve estar escondido na secretária de Sócrates. É o segredo que passa de secretário-geral em secretário-geral, tal como a maleta dos códigos dos mísseis americanos.
Caro leitor, fica assim a saber por que razão o PS olha para o Estado tal como a dona Fátima, a casta mãe da Maria, olhava para Deus. De forma piedosa, os socialistas acham que 'Política' é o mesmo que torrar dívida pública e espalhar betão pelo país. É por isso que eu não me importava de ver a Mota-Engil sair do país, tal como ameaçou o seu presidente há dias. Podem ir embora, sim senhor. Ide, meus amigos, ide. E não se esqueçam das tarjas.

Henrique Raposo, no Expresso

4 comentários:

Anónimo disse...

como é que uma moça prendada como eu ri de forma estridente sem ser mal educada? É o que me apetece ao ler esta prosa do Raposo, a do Cardoso faz-me chorar, mas entre o riso e o choro, fico assim, parada neste tempo histórico manhoso à espera que a primavera traga a luz que permita ao zé povinho ver a merda em que está enfiado, enquanto aquelas brisas de Maio levam as bandeiras do Coelho e do Sousa para longe deste país que se consome, por estas alturas, em bacilentos e azedos e insonsos protestos sem ver a carruagem que está prestes a abalroar a sua vidinha gasta, cansada e triste.
Rita

radical livre disse...

duma velha feia diziam num blog «é mais bonita que inteligente»

Vittorio Alfieri; della tirannide
pode ler no Google gratuitamente

Anónimo disse...

Gostava de "Fazer Ver", àqueles que ainda se não deram conta, "aquilo" em que transformaram a torre Vasco da Gama: num país de varandas fechadas com marquises, resolveram fechar a torre Vasco da Gama com um bloco de apartamentos (ou um hotel?). E colocaram a cereja no topo da torre: um enorme anúncio da cerveja Sagres.Má sorte ter nascido tuga...

F A-S

Unknown disse...

A Mota-Engil já era uma empresa de construção civil emblemática do nosso país e uma das maiores, bem antes do Sr. Jorge Coelho integrar os seus quadros e como tal já se fartava de ganhar concursos públicos (senão não seria certamente das maiores). Não percebo sinceramente a confusão sempre que a Mota-Engil vem à baila. Não li até hoje nenhuma evidência de que a M-E esteja hoje em dia a ganhar mais concursos públicos do que no passado, nem ouvi nenhum dos seus concorrentes a queixar-se disso...