Escrevi uma frase para a contracapa do livro da foto. É um livro mais sobre Raul Leal do que sobre Sena, mas dois ou três momentos do que dirigiu ao autor de Sodoma Divinizada bastam para considerar indispensável, para a compreensão de Jorge de Sena, a sua epistolografia édita e inédita. Fernando Pessoa, que está ser alvo (não me enganei no termo) de mais um "congresso" por ocasião do 70º aniversário da sua morte, escreveu uma defesa notável e corajosa de Raul Leal quando Leal foi enxovalhado por uns quantos peralvilhos reaccionários (também não me enganei no termo), na praça pública, por causa da dita Sodoma ("Sobre um manifesto de estudantes" e "Aviso por causa da moral"). As cartas de Leal são imediatamente anteriores à sua morte na maior das misérias quando Sena transitou daqui para o Brasil. Eram verdadeiramente, os dos anos 20 e os dos anos 50 e 60, outros tempos e outras alturas. Mas Pessoa, Sena ou Leal permanecem actuais mesmo quando esforços não foram poupados para os obscurecer ou rasurar. Recordo isto e saliento o livro porque me entristeceu ver o Chefe de Estado - cuja recandidatura apoio - emitir um comunicado nestes termos por causa desta coisa. Quando tudo é cultura, nada é cultura. E quando tudo serve para "glorificar" a pátria, então a noção de pátria não serve para nada. Fiquem, pois, com o Pessoa/Álvaro de Campos em homenagem a um Leal cuja memória, em boa hora, a Guerra&Paz resgatou. «Concluo saudando, que assim manda a tradição. Aos estudantes de Lisboa não desejo mais - porque não posso desejar melhor – de que um dia possam ter uma vida tão digna e uma alma tão alta e nobre como as do homem que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amizade, que não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio especulativo e metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a de tê-lo por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e sozinhos, sob o chasco e o insulto da canalha.»
4 comentários:
Verdadeiramente notável o passo de Pessoa/Campos, meu caro.
O afecto humanista e a estima intelectual levam a gestos destes.
A necessidade de parecer moderno, jovem e estar na moda ou seja ser "cool" levam a apoiar estas coisinhas.
É claro que Cavaco nunca viu, eu também não, a dita telenovela mas é necessário marcar espaço sinalizar o território.
Os gatos mijam, os humanos falam.
Prefiro os gatos.
São notáveis (e corajosas para o seu tempo) as posições públicas de Pessoa não só quanto a Leal,mas tambem quanto a Botto,a propósito das "Canções". Ignorava que Sena se tivesse correspondido com Leal,e vou comprar o livrinho,até por curiosidade quanto às ideias de Leal na época,pois consta que se entregara nos seus últimos tempos a delírios esotéricos, coisa para que Sena não devia ter muita paciência. Permita já agora que exprima o meu apreço pela sua defesa e divulgação de Sena,embora tambem me pareça que sublinha mais os pontos de afinidade pessoal,ou seja o desgosto pelo país e pela mesquinhez de muitas das suas eminências,e menos o seu valor como poeta e romancista,que o coloca entre os primeiros da nossa história literária. Porque não usá-lo nas uas óptimas "ilustrações" musicais e literárias? Uma sugestão: o pouco conhecido(julgo)soneto com que termina a "Fidelidade", "Como de Vós...",e já agora com a dedicatória.
Gostei imenso do anónimo das 2:42 AM:
De Sena: «Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.»
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