11.2.10

UM GRANDE POEMA

PEDRA DE CANTO


Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar com sílabas ásperas o canto,
De rima em – anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, e a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo e canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso ermita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De falo, falas, fala, rima, rimas, canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces…
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora merda em sangue dessa pobre alma em ferida,
A dela e a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como o vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro,
Flor menina de orvalho e em amor verdadeiro?
Ainda terás alento e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou enfim amor a fogo dado e perdão puro…
Eu quero lá saber! amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve margarida
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te com ela,
Que é maior do que tu no canto,
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!
Mas antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada e niña morta?
Enfim o teu amor?
Dize lá, sem vergonha,
Homem singelo!
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)


Lisboa, 4. 6. 1973
de madrugada

Vitorino Nemésio
, Caderno de Caligrafia e outros poemas a Marga

2 comentários:

radical livre disse...

conheci o poeta nesse ano num jantar de homenagem ao meu saudoso AMIGO Manuel Antunes num restaurante em Telheiras.
este Homem simples tocou viola e declamou para todos nós.
umas senhorecas marginalizaram quem não era de letras, com excepção da mulher dum colega.
o homenageado fez questão que eu soubesse que era filho dum sapateiro.
o meu avô materno era "mestre" marceneiro.
hoje em dia, "pruvinvchianamente", são todos doitores e incenheiros

arrium porrium

Joaquim disse...

Um Açoriano que nunca deixando de o ser foi um Homem do Mundo.