23.11.06

GRANDE TEXTO...



... de José Pacheco Pereira no Público - talvez amanhã apareça no Abrupto - sobre Mário Sottomayor Cardia:

"Em Portugal os mortos são todos bons e os vivos todos maus. A explicação é simples: tudo é escasso, os bens são escassos, logo cada vivo ocupa um lugar a mais, o lugar que poderia ser o meu. A enorme inveja social que domina a vida pública e privada em Portugal é a consequência dessa escassez. Mário Sottomayor Cardia morreu agora, mas na verdade já tinha morrido há muito tempo, porque não ocupava já o lugar de ninguém, não afrontava os vivos, logo não existia, estava esquecido. No seu funeral escasseavam os dirigentes socialistas do regime, os actuais detentores do poder, para quem Cardia era já uma sombra de uma sombra e a uma sombra não se justificava sequer o elogio habitual dos mortos. Tivesse Cardia morrido no exercício pleno de qualquer cargo, e a consternação seria maior. O morto já podia ser bom e o lugar podia ser dado ou recebido. Esquecido pelos novos-ricos do seu partido, do poder e da celebridade fátua, Cardia foi lembrado por aqueles que ainda se recordavam do seu percurso solitário na política portuguesa dos últimos 40 anos. Quem se recordava lembrava-se intensamente, como Mário Soares comovido como não é habitual; quem esquecera nunca percebera nada. Perguntar o que sobra é sempre cruel, porque sobra sempre pouco (...). Cardia ficará na história do pensamento político entre a desagregação do marxismo nos anos 60 e 70 e o modo peculiar do nosso socialismo que ele, como vinha do marxismo, queria "sem dogma". Ficará o ministro da Educação de tempos difíceis, num pequeno grupo dos "normalizadores" do PREC, sob a égide do combate político de 1975 de Mário Soares. Ficarão para os seus amigos as recordações do homem, um gesto, um acto, um escrito, uma palavra, um exemplo, uma pena, uma preocupação. Nestes tempos é o que fica. Nestes e nos outros."

3 comentários:

Pitucha disse...

Eu acho que, como Ministro da Educação, ele marcou uma geração de estudantes que, como eu, deseperavam pelo estado para que se arrastavam as nossas escolas.
Fiquei triste com a notícia.
Beijos

Anónimo disse...

O que Pacheco Pereira diz nada tem de novo. Sempre foi assim, será sempre assim, nada mudará, coisa nenhuma será diferente... Tudo continuará na mesma e sempre haverá alguém para dizer o que diz Pacheco. Fica uma certeza, consoladora... serão sempre também os mesmos a lembrar isto, ou seja, aqueles que mais mestres são na arte de matar, como é o caso, como serão sempre, de igual modo, os pequeninos a assobiar para o lado e derreter em lume brando os feitos notáveis dos outros, como serão sempre, igualmente, os melhores a contrariar esta esconsa natureza bem portuguesa. São sempre os melhores de nós que, com desassombro, alertam para as coisas boas que uns e outros vão fazendo, elogiando com tranquilidade e, mais importante ainda, fazendo-o como quem come um pastelinho de nata ao fim da tarde obtendo da deglutição um enorme e tranquilo regozijo...

Anónimo disse...

"Ficarão para os seus amigos as recordações do homem, um gesto, um acto, um escrito, uma palavra, um exemplo, uma pena, uma preocupação."

Tendo acompanhado o Dr. Cardia nos últimos anos da sua vida, revejo-me plenamente nesta frase. Homem como poucos há, amigo como muitos querem. Aproveito este post para deixar o meu último pensamento na blogosfera sobre um homem que marcou a minha vida como amigo, como companheiro e como confidente. Não irá ser lembrado como professor, militante partidário, académico, deputado, ministro etc. Como amigo...apenas como amigo...

Obrigado MSC.