12.6.11

A SANTIDADE CÍVICA



Pelos vistos, não fui só eu a reparar. De facto, António Barreto "parecia" o PR e o PR "parecia" um leitor entusiasmado de A Cidade e as Serras, ou de um Camilo de Amor de Salvação ou da novela Coração, Cabeça e Estômago.
«À falta de melhor, os portugueses sempre gostaram de oratória. De oratória sacra, no "antigo regime"; de oratória parlamentar, no liberalismo e na República. Os "tenores" de S. Bento (José Estêvão, Garrett, Rebelo da Silva) tinham uma popularidade sem relação com o seu poder real. Nunca, ou quase nunca, disseram coisa que valesse a pena. Mas falavam bem e enchiam as galerias de aficionados e de senhoras. Esta sexta-feira, em Castelo Branco, parece que a tradição ressuscitou com António Barreto. Os voos líricos de Barreto não nos fizeram compreender melhor a situação do país, nem propuseram nada de prático ou de útil. O que não era, se calhar, o seu propósito. Não interessa. Pelo menos, comoveram o público letrado, que precisava de comoção e consolo. No dia seguinte, os jornais glosaram dois temas. O primeiro foi a diatribe de Barreto contra os políticos, uma velha maneira de aquecer a alma do país. Segundo percebi, para Barreto, os políticos pedem ao bom povo (com "facilidade" e "oportunismo") "sacrifícios" que eles próprios, no seu ofício, se recusam a retribuir. Pelo contrário, andam por aí numa "crispação estéril", em vez de conversarem e discutirem entre si, com verdade e, sobretudo, com "cordialidade" (esperemos que não aquela cordialidade com que Bernardino afogou a República). Além disto, que por si bastava, os políticos mentem, não informam os portugueses, não os representam e não os dirigem. Pior ainda: sendo o nosso sofrimento o resultado da sua "imprevidência", é "indispensável" um "apuramento" de responsabilidades. Como, quando e por quem, Barreto não esclareceu. Em contrapartida, esclareceu que se deve mudar a Constituição, que, na opinião dele se tornou "anacrónica, barroca e excessivamente programática", uma ideia que não fica mal a ninguém e que se distingue pela sua absoluta impossibilidade. E voltou também à sua obsessão de infância, o círculo uninominal, a que atribui virtudes miraculosas. Nunca lhe ocorreu que o círculo uninominal iria entregar a Valentim Loureiro e à sua estirpe a escolha e o domínio do Governo, como já entregou as câmaras (tirando Lisboa, o Porto e mais meia-dúzia por aqui e por ali ) e os partidos, sem qualquer excepção. Mas presumo que Barreto não liga a esses pormenores terrenos. Um homem que acaba um discurso oficial tratando Portugal por "tu", numa longa fuga lírica e tremelicante, está com certeza destinado à santidade cívica.»

Vasco Pulido Valente, Público

8 comentários:

joshua disse...

Barreto já faz muito, de mais até: lê o seu discurso. Depois vem o Vasco dizer de Barreto o que poderia dizer acerca de si mesmo, completando o circuito de vaidade e esterilidade.

Buriti disse...

Concordo em absoluto, quando VPV diz que os portugueses adoram oratória. Todavia, acrescento que a oratória de que mais gostam é aquela que não entendem, visto que ficam deslumbrados com o orador que...enfim, fala muito bem.Como sabemos, o nosso país está povoado de gente instruída, e gente instruída não gosta de passar por ignorante! Nunca! Jamais!
Já o Padre António Vieira chamava a atenção para este problema da oratória, no "Sermão da Sexagésima", e já lá vão três séculos. E lembro o Padre António Vieira só para não recuar mais no tempo.

Aproveito para dar-lhe os parabéns pelos oito anos do seu blogue. Se bem que nem sempre concorde consigo, tem uma excelente qualidade na sua prosa: é sintético, claro e directo. Afinal, isto isto não deixa de vir a propósito da oratória "da moda" que, como compreendo, recusa a usar. Parabéns!

Aires Vilela disse...

No caso, trata-se apenas de ciumeiras serôdias... Ou não?

Anónimo disse...

António Barreto já assentou praça?

Ele que vá bardamerdear para outro lado!

Anónimo disse...

"o círculo uninominal iria entregar a Valentim Loureiro e à sua estirpe a escolha e o domínio do Governo, como já entregou as câmaras (tirando Lisboa, o Porto e mais meia-dúzia por aqui e por ali ) e os partidos, sem qualquer excepção"

Se Valentim e a sua estirpe já escolhem e dominam os partidos e se são estes que por sua vez escolhem os candidatos a deputados e a autarcas, qual será então a novidade dos circulos uninominais ? De acordo com a lógica (sic) de VPV, se os Valentins dominam os partidos são já os Valentins que escolhem os governos !!!!

Cáustico disse...

Não me interessa se Barreto é boa ou má pessoa. Interessa-me, sim , se o que ele diz tem razão de ser para dever ser dito.

Anónimo disse...

Nesta terra gosta-se de oratória e excessivamente de criticar. Ora por que sim, ora porque não! Um ditado antigo: "quem na praça ergueu a casa, a muito se aventurou; uns que é baixa, outros, que de alta passou!" Eu gosto de VPV, é uma pessoa com muito para dizer de interessante! Mas, caramba, podia arranjar outro registo! Maria - Porto.

Anónimo disse...

Gostei bastante do discurso de A. Barreto. Foi de comoção e consolo? Foi, e bem falta fazia.
VPV, que leio quase sempre com gosto e concordância espraia-se em truques de retórica (as aspas já estão um pouco vistas; as obsessões de infância não são, por si, infantis) é tomado de uma indignação sem sentido - e sem causa discernível no que diz.
Quanto à comparação com Eça: «A Cidade e as Serras» é das mais sérias meditações jamais escritas sobre a civilização ocidental. O discurso de A. Barreto chamava a atenção sobre a nossa capacidade de construirmos uma democracia avançada, é um tema bem diverso.