4.12.03

UMA HERANÇA PÍFIA




Também era quinta-feira e fazia um frio de rachar. Nessa noite de Dezembro de 1980, o País fervia na campanha presidencial - nessa altura, a ideia de cidadania ainda era viva... - destinada, se nada de extraordinário acontecesse, a reeleger Ramalho Eanes. Porém, aconteceu algo de extraordinário que, no entanto, não impediu que Eanes ficasse. Num País riquíssimo em pessoal político qualificado, como se tem vindo a constatar, desapareciam num estúpido acidente de avião, a dois dias das eleições, nada mais nada menos do que, entre outras pessoas, o Primeiro Ministro e o Ministro da Defesa. Francisco Sá Carneiro protagonizou a primeira experiência de governação do centro-direita após o 25 de Abril, e logo cinco anos depois. A constituição da Aliança Democrática foi um bom "achado" político através do qual a "direita democrática" se inseriu definitivamente no "sistema", em acordo com os "reformadores" do centro-esquerda, de António Barreto e Medeiros Ferreira. Foi preciso esperar mais uns anos para que a proeza se repetisse, desta vez para "atacar" as estruturas da economia e os equipamentos "sociais", com Cavaco Silva e sem alianças. Quer Sá Carneiro, quer Cavaco, julgo que genuínos sociais-democratas, apenas com formações e com noções de tempo "político" diferentes, nunca perderam de vista a chamada "dimensão social", "equitativa", da política. Sá Carneiro juntava a tudo isso a "dimensão lúdica", sem a qual, dizia ele, a política não valia a pena. E impôs ao "politicamente correcto" da altura a sua pública paixão por Snu Abecassis, paixão essa tragicamente imolada no fogo de Camarate. Era um homem com pressa e, nesse sentido, era um homem em perigo. Terá sido, embora o não parecesse, um dos últimos príncipes românticos da política portuguesa no século XX. O sácarneirismo tem assumido diversas formas ao longo destes anos. A maior parte dos que se reclamam dessa "orfandade" nunca chegaram, nem nunca hão-de chegar, aos calcanhares de Francisco Sá Carneiro. Se tivesse sobrevivido e estivesse vivo, não deixaria de nutrir o maior dos desprezos por muitos deles. A "terceira vaga" da direita no poder chegou há quase dois anos. Para lembrar Sá Carneiro, a "coligação" junta o inevitável Santana Lopes e o jovem popular, muito presunçosamente em voga, Telmo Correia, delegado permanente desse pilar indestrutível que é o amigo de Santana, o Dr. Portas. Eu, que apoiei as três experiências, em 79, em 85 e em 2002, não me sinto propriamente satisfeito com esta última prestação ainda em curso, nem me revejo minimamente nos seus principais protagonistas. Francisco Sá Carneiro merecia certamente melhor do que esta herança pífia.

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