15.12.03

VITORINO MAGALHÃES GODINHO OU A GRANDEZA DA HISTÓRIA

Sem nunca me ter cruzado com ele, eu sinto que devo muita da minha formação ao Professor Vitorino Magalhães Godinho. Felizmente pertenço a uma geração que ainda usufruiu do privilégio de ter aprendido, na primária e no liceu, com "grandes educadores". Através das aulas desses homens e dessas mulheres, verdadeiramente vocacionados para "ensinar" e que não se resignavam ao ofício como mera alternativa em mercado de emprego escasso, chegávamos a outros "educadores", cujos textos nos eram recomendados. Foi assim que descobri as "entradas", no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, de criaturas tão complexas e fascinantes como António José Saraiva, Jorge Borges de Macedo ( que veio a ser meu professor na Universidade) ou Vitorino Magalhães Godinho. Os seus livros de Ensaios ( Ed. Sá da Costa) e um pequeno e tão actual texto, reeditado depois do 25 de Abril pela Arcádia, A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, continuam a constituir, para mim, referências insubstituíveis. Foi, pois, com alegria que "reencontrei" Magalhães Godinho, em forma, nos seus 85 anos, na notícia de uma homenagem em Paris. Os tempos de "fabricação" de homens destes, acabaram. Aliás, é bem provável que o seu nome nada diga às hodiernas gerações universitárias, quase todas analfabetas funcionais e sem memória. Na entrevista que deu ao Carlos Câmara Leme, no Público, Magalhães Godinho diz esta coisa notável: "acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está". Contrariamente a tanto palonço ignorante que para aí há a falar do "futuro", sabe bem meditar na palavra dos historiadores, essa espécie silenciosa e nobre que procura "perceber". Se fossem mais lidos e escutados, talvez alguns dos desastres do nosso tempo pudessem ter sido evitados. Segue a entrevista.

"Hoje Não Existe Democracia"

Por Carlos Câmara Leme

Aos 85 anos, Vitorino Magalhães Godinho é um homem céptico. Triste com o que vê à sua volta, não encontra uma réstea de esperança na humanidade. O historiador, entrevistado em Paris - onde na semana passada decorreu o colóquio internacional "O Portugal e o Mundo. Leituras da Obra de Vitorino Magalhães Godinho"-, pensa que a humanidade perdeu a grandeza do século XX. À luz das teses de Guy Debord sobre a sociedade do espectáculo, Magalhães Godinho - cujo próximo livro, a editar nos primeiros meses de 2004, terá como título "Portugal, a Emergência de uma Nação" - pensa que, na Europa, "há uma super-estrutura que não influi, no fundo, a sociedade. Não a regula, nem a orienta". Mais, os políticos, chefes de Estado e primeiros-ministros não "representam nada". E Portugal? Em certos casos, não estamos melhor do que antes do 25 de Abril, e hoje, diz, "não existe democracia."

PÚBLICO - Nas intervenções que fez durante o colóquio, reivindicou o seu estatuto de intelectual do século XX. Pensa mesmo que temos de recuperar grandes noções do século passado, já que, como afirmou, o século XXI é mórbido e tem o fascínio da morte? O século XX criou e fomentou algumas das maiores barbáries - duas guerras mundiais, o nazismo, o estalinismo - da história da humanidade.

Vitorino Magalhães Godinho - Há duas ou mais faces do século XX. No meio desses horrores que mencionou, que realmente fizeram milhões de mortos, encontra-se ainda um espírito de cavalaria que não se encontra hoje. Nos nossos dias, a morte é cirúrgica e é feita pelos estados com os bombardeamentos cirúrgicos. Mas, na própria sociedade, a actividade dos grupos terroristas - que não é uma luta de carácter político, como foi no princípio do século XX, com os anarco-sindicalistas - não tem finalidade, a não ser demolir, matar, estropiar. Arriscamo-nos, em breve, a ter mais mortos com a sida do que houve nessas guerras. Nessas guerras estavam em jogo interesses, sem dúvida. Mas, apesar de tudo, havia a consciência de ideais por que se lutava. Muitos desses homens do século XX lutavam por uma democracia e por uma humanidade nova. Havia um grande de espírito de luta por um ideal...

Um nazi também tinha um ideal. E conhecemos os resultados: a exterminação do povo judeu.

Sem dúvida. Sempre que se fala de um ideal, há sempre uma certa ambiguidade. Quando me refiro a um ideal, estou a falar de um conjunto de valores de raiz humanista, que se iniciou no século XIX - basta pensarmos no que representa, ainda hoje, essa obra extraordinária que é "Os Miseráveis", de Victor Hugo.

São os ideias humanistas dos século XIX que reivindica para o século que acabou de nascer?

Não, porque houve uma mutação brusca da sociedade, com a revolução informática, com as novas tecnologias, com a dispensa de trabalho de massas. Hoje, o capitalismo, ou melhor, aqueles que detêm o poder económico, não necessitam de operariado; podem dispensá-lo. O operariado continua a fazer as lutas que faziam sentido no século XX. O sindicalismo, hoje, é um anacronismo.

Como historiador, imaginou alguma vez essa mutação tão rápida e tão complexa da sociedade contemporânea?

Não. Todos fomos apanhados de surpresa.

Qual foi o acontecimento, ou a rede de acontecimentos, que permitiu essa alteração? Eric Hobsman fala, em "A Era dos Extremos", da queda do Muro de Berlim.

O ruir do Império Soviético foi também a ruína do Ocidente, que permitiu a formação de um novo império - o império americano -, sem controlo e em moldes ultrapassados: continua a ser proibido estudar Darwin nas escolas, há perseguições às clínicas que praticam o aborto, há ataques à mão armada... Há meios de matar - a partir da transformação introduzida pela informática - que estão ao alcance de qualquer pessoa. Foi tudo tão rápido, deu-se um vazio e uma incapacidade de organização para resistir, para orientar essa mutação para outros sentidos. Perderam-se as balizas. A humanidade perdeu o controlo. Inclusive, as estruturas económicas mudaram por completo. O capitalismo ruiu, como ruiu o estalinismo. Não há mais capitalismo. O que há é uma organização de redes mafiosas que controlam o mundo.

Acredita mesmo que o mundo, à escala planetária, é controlado por uma rede de mafias?

Não estou a falar de mafia no sentido pejorativo. Nenhuma sociedade é uniforme. Mesmo a sociedade capitalista não tinha só empresas capitalistas - havia o artesanto, o campesinato. Agora, a população camponesa desapareceu. Em vários países, a agricultura desapareceu, ou está em vias de desaparecer.

Como é que vê a construção europeia? Não acha que, apesar de tudo, o acto de 25 chefes de Estado e primeiros-ministros europeus terem-se reunido este fim-de-semana em Bruxelas é um sinal de vitalidade da Europa?

Não, de maneira nenhuma. É uma prova de que, em relação a uma sociedade descontrolada e ameaçada quer pela doença quer pela possibilidade de violência gratuita, há uma super-estrutura que não influi, no fundo, na sociedade. Não a regula nem a orienta. É uma super-estrutura que se legitima por uma pseudo-ressurreição de uma pseudo-ideologia do século XIX, o liberalismo. Mas que não tem nada que ver com o liberalismo, que representa uma peça de teatro. Estamos na pura sociedade de espectáculo, formulada por Guy Debord, justamente na obra "A Sociedade de Espectáculo".

Não o via assim tanto de acordo com as teses de Guy Debord.

Logo que o livro saiu, li-o, e tinha encontrado um paralelo no século XVII, onde era muito frequente falar da sociedade e do mundo como um teatro. Como vê, não fiquei surpreendido com o livro de Guy Debord. Ele veio ao encontro dos caminhos que estavam suspeitados. Porque, na verdade, os chefes de Estado não representam nada...

Nada? Mas eles são eleitos democraticamente.

O que não quer dizer nada, porque, hoje, as eleições não são nada. Não há diferenças partidárias. Há lutas mesquinhas, os partidos estão completamente desfasados da realidade. Veja-se a França...

... e em Portugal, também pensa assim?

A minha opinião é a de que, hoje, não existe democracia. O grande erro é partir-se do princípio que se construiu uma democracia, quando não se chegou a construir uma democracia...

Mas os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão garantidos, não estão?

Nada está garantido? Não estamos melhor do que antes do 25 de Abril?
Em certos casos, menos!


Portugal não tem presos políticos.

Não sei, não sei... Há países onde não é necessário ter as pessoas presas para as ter na mão. Veja o que se passa em Guantanamo.

Qual será, na sua opinião, o papel da História no século XXI?

A história será o instrumento fundamental para uma tomada de consciência capaz de reflectir sobre a realidade e de detectar os verdadeiros problemas que se põem aos homens. E é isso que não acontece.

Não vê, portanto, uma ponta de esperança em lado nenhum?

Por enquanto, não. Acho que caímos num caixote do lixo muito triste. No século XX, havia uma outra grandeza. Repare: a informática e outros meios de informação, como o telemóvel, acabaram por cortar as relações humanas entre as pessoas. O homem da era da comunicação quanto mais comunica mais isolado está

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