OS IMORTAIS
Apeteceu-me falar de Os Imortais, o filme de António Pedro Vasconcelos, assim que o vi. Passado o momento, deparo com um texto de Eduardo Dâmaso, no Público de ontem, que me parece que diz praticamente tudo. Aqui fica.
O Belíssimo Requiem dos Heróis Desempregados
Por EDUARDO DÂMASO
Tenho um amigo mais velho que esteve na guerra em Angola e foi lá que viveu a maior aventura da vida dele. Rapaz de educação rural, deixou a escola cedo e aprendeu o ofício de carpinteiro. Aos dezoito anos foi incorporado nos comandos e aprendeu a matar. Veio de Angola com vinte e um anos e já só sabia a linguagem da guerra. Trouxe na mochila uma história para contar mas também não se esqueceu de trazer umas quantas granadas e mais uma ou outra lembrança daquela guerra onde acreditou que havia mesmo uns "turras" tenebrosos e, do lado dele, a malta da "companhia", os "imortais".
Tantos como ele foram para o Ultramar e vinham de lá outros. Com o mesmo nome, mas outros. Calados, muito calados nos momentos, poucos, em que não bebiam. Nunca se percebia se transportavam o rosto de um vazio ou de uma enorme tormenta interior. Talvez fossem só inadaptados à lentidão da vida que enfrentaram no pós-guerra. Um dia, o meu amigo dos comandos atirou uma granada contra uma parede qualquer numa noite de bebedeira. Não morreu ninguém mas a coisa fez estragos. Desde logo nele próprio, que teve de enfrentar a justiça, a família, os amigos e os seus infernos íntimos.
Tenho outro amigo que esteve na Guiné, nos "fuzos". Veio da guerra depois do 25 de Abril mas não se adaptou à pasmaceira da terra, muito longínqua do epicentro da revolução dos cravos que mantinha o país em chamas. O meu amigo ofereceu-se para a vida de mercenário e foi para Angola, onde havia uma guerra. Andou por lá aos tiros ao serviço da FNLA porque sim. Nunca foi de ideologias, era mesmo só para dar uns tiros e sentir o abismo das noites em que se sai sem saber de há-de haver dia. O pânico de saber se se chega ao dia seguinte transformou-se numa estranha nostalgia daquele medo que é capaz de nos empurrar para a coragem mas também para a loucura.
Um dia, muito mais tarde, já de regresso à terra, pegou em granadas e numa metralhadora e simulou um ataque contra uma boite de alterne. Era para brincar às guerras. Depois não aguentou nada do que tinha: a paz, a namorada, um bom emprego, a terra parada, o silêncio sem a tensão do metal e da pólvora a rabiscar no ar. Despejou um frasco de veneno para ratos e deixou uma carta a explicar que foi por aí porque lhe tinham acabado as granadas para se divertir.
Os meus amigos tornaram-se heróis desempregados da guerra. Há poucos portugueses dos quarenta para cima que não conheçam um ou outro destes velhos leões adormecidos no tédio da paz. É destes homens instruídos na doutrina de um trágico heroísmo para se entregarem aos elevados mas nefastos desígnios da pátria que nos fala "Os Imortais", de António Pedro Vasconcelos. E de que nos falara "O Inferno", de Joaquim Leitão, também um belo filme que, infelizmente, só vi muito depois da sua passagem pelos cinemas.
Eu não sou crítico de cinema nem me interessa ser. Os críticos hão-de ter as suas razões para dizer isto ou aquilo de certos filmes. Também não fui à guerra mas fui crescendo um pouco no medo de chegar a minha hora quando da guerra já só havia a hora do regresso dos caixões de pinho. À minha volta, como em todos as pequenas terras da chamada província, havia já muitos mortos, muitos desaparecidos em combate, muito luto. Por essa recordação de um terror que havia de vir mas, sobretudo, pelo intolerável silêncio destes trinta anos de democracia sobre a guerra, vi nos "Imortais" um bocado de mim próprio, da minha família, dos meus amigos, de um país sonâmbulo que se recusa a saber o que foi isso da guerra colonial. Como espectador deste país tocou-me.
Uma visão mais redutora sobre o filme de António Pedro Vasconcelos pode ver nele apenas uma obra dirigida aos labirintos da memória dos que ainda se lembram destas coisas. Mas estão enganados: este é um filme principalmente para todos os outros porque é uma belíssima história sobre nós, portugueses incautos das bravatas esculpidas na mais bruta das ignorâncias, manipulados por todos os mestres da gestão delinquente do poder, como o foram os próceres do antigo regime. É um belíssimo requiem desses milhares de jovens que seguiram em festa para a carnificina ultramarina, embriagados pelo perfume de uma aventura que não teria paralelo nas suas vidas, e que morreram por lá ou vieram acabar, mais tarde, na inadaptação a um país que os abandonou, ou mesmo na rotina sonâmbula de uma nova rotina que não apagou as feridas desses tempos de "cobóiada".
Roberto Alua, personagem engrandecida pela brilhante interpretação de Joaquim de Almeida não é o meu amigo dos comandos que atirou a granada contra uma parede qualquer mas podia ser. Alua é o lobo da guerra que não consegue lidar com a quietude social nem com o sentimento amoroso. Não foi educado nem para uma coisa nem para outra. É o veterano da morte que precisa de sentir de novo o cheiro do sangue e da pólvora. Mas tem uns restos de dignidade e de amor próprio que evitam a sua própria dissolução moral e ética enquanto ser humano. Acorda já muito tarde e só lhe resta a solução clássica de um combatente que não quer cair nas mãos do inimigo. De um herói perdido em território hostil.
Horácio Lobo, nas mãos de Rogério Samora, é um terrível sacana. Foi educado para a morte e precisa de matar, de estar sempre perto dela, até de a escolher como última missão suicida para não falhar um contrato. Mercenário até ao fim. Tantos houve nessas guerras civis que deixámos espalhadas pelos antigos territórios do império.
Por fim Joaquim Malarranha, ou Nicolau Breyner. Magistral figura de velho polícia manhoso que nos vai transportando para a verdade e para a compreensão dessa confraria de lutadores eternos e desses tempos tão incompreensíveis.
Em suma, "Os Imortais" é um filme que respeita integralmente a grandeza da obra literária de Carlos Vale Ferraz, particularmente em "Nó cego" e no livro "Os lobos não usam coleira" que inspira o realizador, mas tem vida própria. Deveria ser tão visto nas escolas como os livros de Carlos Vale Ferraz estudados no ensino secundário. Filme e livros são instrumentos vitais para que não se perca a memória desse trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de treze intermináveis anos. A guerra colonial foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou oitocentos mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida e a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de 8 mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de stress de guerra. Convém que tenhamos consciência disso. Todavia, como se sabe, Portugal prefere os manuais do "Big Brother" e por isso é um país que não merece ter memória.
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