1.12.03

A CULPA HUMANA

Não se trata de um "grande filme", nem a realização de Robert Benton o favorece particularmente. Valem o argumento e as interpretações de Anthony Hopkins e de Nicole Kidman. O argumento trabalha o livro de Philip Roth, The Human Stain, com tradução prometida para a D. Quixote. Stain pode querer dizer "nódoa", qualquer coisa que "descolora" e que se "distingue". A história do livro de Roth é a história do alastramento de uma nódoa, de uma "culpa humana" in crescendo, indistinta, cruel e e mesquinha,que leva à rejeição - subreptícia, nuns casos, e clarissima em quase todos os episódios da "história" - da "diferença", espelhada na cor do rosto e no comportamento desesperado de Faunia/Kidman. Coleman Silk é um homem perseguido pela cor oculta no seu "rosto branco como a neve", numa América racista e "profunda", dos anos 40, 50 e 60. Mais tarde, na América do final dos 90, em plena crise Clinton/Lewinsky, uma palavra ("spook") dita numa aula por Coleman, referindo-se a dois estudantes que ele ignorava serem negros, conduz à sua saída da universidade onde tinha sido reitor, em nome do que hoje se chama de "politicamente correcto". Com a morte da mulher, Coleman volta à paixão e ao sexo com Faunia, a mulher da limpeza, de 34 anos, uma vida desfeita pelo marido errado e pelo desaparecimento trágico dos filhos. Depois do sexo, Faunia recusa-se a acordar ao lado de Coleman, e diz-lhe a toda a hora que ali não há lugar para o "amor". Só no último dia da sua vida, aceita a ideia de "partilhar" o afecto de Coleman. A história é contada pelo vizinho de Coleman, o escritor Zuckerman, um alter ego de Philip Roth. A força disto tudo reside fundamentalmente na escrita de Roth, adaptada aos diálogos do filme, onde se fala de vergonha, de uma imensa e escondida vergonha identitária, da rejeição e da perda irreversíveis. A Culpa Humana é mais um texto poderoso de Philip Roth, em torno dos seus/nossos fantasmas e da violência com que vivemos (mal) uns com os outros, perdidos e insensatos numa perigosa e escura deriva, a caminho da derrapagem final.

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