17.5.08

A CULTURA DA IRRELEVÂNCIA



«Não é só na economia que estamos a andar par atrás, é na cabeça. A cultura da irrelevância está a crescer exponencialmente e todos já esperam que o mesmo aconteça nos próximos meses, em que mais uma vez o país vai parar porque há um Campeonato. Na última semana, que é igual às últimas semanas, aos últimos meses, aos últimos anos, todos os telejornais em directo foram interrompidos, eu diria mais, foram enchidos, com sucessivas e extensas declarações em directo, sobre as decisões do Conselho Disciplinar da Liga com sanções sobre clubes e dirigentes desportivos, pelo seleccionador nacional anunciando o "plantel", pelo novel director de futebol do Benfica anunciando-se e anunciando umas medidas para o seu clube. A isto acrescenta-se o número de vezes em que quer o "serviço público", quer as privadas dão jogos em horário nobre, atirando as notícias para algures, como se em particular o "serviço público" não tivesse aí obrigações. A RTP é a televisão que mais falta a essas mesmas obrigações, que justificam a superioridade moral do "público" e que, pelos vistos, só serve para receber os muitos milhões que os contribuintes pagam. Mas não é só as vezes em que directos do futebol são o telejornal, é que durante três, quatro dias não nos conseguimos ver livres daquilo. Até aparecer outro directo mais saboroso, temos que assistir a "noticiários" que repetem ad nauseam as mesmas imagens, as mesmas declarações, seguidas por milhões de palavras "escalpelizando" os "factos", em tudo o que é programa de actualidade pela noite fora. O circo está montado na nossa cabeça e nele fazemos o papel do urso amestrado ou dos macaquinhos. Nem sequer o do palhaço pobre. O mundo agressivo e brutal do futebol, com a sua pedagogia de grosseria e violência, ordinário e vulgar, movimentando poderosos interesses políticos, nacionais, autárquicos e regionais, servindo uma economia paralela, que para nosso mal ainda é a única que funciona em muitos sítios, imerso em corrupção, não aflige nem preocupa ninguém. A começar pelos nossos deputados, que dão a caução institucional da Assembleia da República a um dirigente desportivo acabado de sancionar por "corrupção tentada" e que saía de uma acareação num tribunal. Políticos e dirigentes desportivos ajudam-se mutuamente para impulsionar carreiras políticas populistas que o mundo do futebol protege e apoia, e parecem a única coisa que verdadeiramente mexe em Portugal, junto com os negócios da "alta". Ainda um punhado de inocentes pensava que isso era uma pecha do salazarismo, quando meia dúzia de palavras e imagens de cinco minutos, no fim dos telejornais, passavam por ser um excesso e onde um filme como O Leão da Estrela se limita a descarregar sobre o tampo de uma mesa aquilo que hoje obriga a operações paramilitares de contenção de turbas violentas. Não, não andamos para a frente, andamos para trás, para o país chamado Futebolândia, para a futebolização plena da nossa vida pública. Mas não é só o futebol, é tudo o resto. É o mundo das telenovelas, com o seu sangue, suor e lágrimas, transformado em "casos", o caso Maddie, uma coisa abstracta e virtual, sem corpo real, já sem a violência do crime, já transformado numa soap opera de plástico, o caso Esmeralda, uma competição absurda à volta de uma menina imaterial, tão abstracta e morta na virtualidade como a "pequena Maddie", onde todos os dias uma inovação aparecida depois do caso Casa Pia, os "pedopsiquiatras", divulga relatórios que deviam ser confidenciais em tempo real, para movimentar as celebridades que vão beijar o sargento e demonizar o pobre pai que só é "biológico", com a justiça a claudicar perante a pressão dos tablóides em que se transformou muito daquilo que conhecíamos como "comunicação social". E depois o estendal dos acidentes e doenças. Os acidentes são hoje a única coisa que mobiliza directores de informação, pressionados pelo controlo de custos, a atirar a correr para Freixo de Espada à Cinta o "carro de exteriores" à compita com outros "carros de exteriores", para mostrarem camião virado ou, melhor ainda, um autocarro, ou, se andarem depressa, um ferido a ser desencarcerado, ou um morto na berma. E então se houver crianças feridas ou mortas, melhor ainda para as audiências. Depois há um stock de "notícias" para os intervalos do futebol, as reportagens sobre doenças, de preferência raras, de preferência com "casos humanos" apensos, de preferência com imagens fortes como a de um buraco feito por uma broca na cabeça, tudo interessantes matérias para prender o olho dos ouvintes no meio do jantar. Médicos, assistentes sociais, pedopsiquiatras ou pedopsicólogos, ex-polícias da Judiciária, são profissões com garantia de sucesso televisivo, como também astróloga, hortelão urbano, bruxa e ervanário popular explicando como a sua erva é mais eficaz do que o pau de Cabinda. A cultura da irrelevância está impante como nunca, espectáculo e pathos brilham no sítio que anteriormente ainda era frequentado, de vez em quando, pela razão, pelo bom senso, pela virtude. Esta é, obviamente, a melhor comunicação social, a melhor televisão para os governos, e o actual cuida bem que não lhe falte dinheiro para as suas quinhentas horas de futebol. Compreende-se: a bola não pensa, é para ser chutada.»

José Pacheco Pereira, in Público

12 comentários:

Anónimo disse...

chamo paneleiros aos adeptos da utilização do "trou du cul" para fins meramente recreativos.
o resto é "conversa para boi dormir com vaca". a economia anda cada dia mais avaxcalhada. continuem a falsificar as estatísticas

Anónimo disse...

"Ainda um punhado de inocentes pensava que isso era uma pecha do salazarismo, quando meia dúzia de palavras e imagens de cinco minutos, no fim dos telejornais, passavam por ser um excesso"

Custou mas foi!
Estava difícil arrancar uma nesga de verdade da boca de um destes democratas,outrora convictos profetas do regime vigente.
Mas o tempo por vezes faz milagres com a massa encefálica formatada destes primatas.

O Pacheco torna-se assim no João Batista da IV República.
Ele vem anunciar o fim deste estado de coisas,a seguir-se o rumo actual.

Ou será que apenas pretende ser arauto da vinda de um novo(a) Messias?!

Anónimo disse...

Pacheco Pereira não deixa de ser um notável de um dos partidos que maior responsabilidade tem na destruição do País. Naturalmente que Sócrates está a levar a ruina e a miséria a niveis nunca antes vistos.
Seja que partido fôr, a tendência para entrar no "triunfo dos porcos" é forte demais para ser ignorada.
Chegou o momento do povo português se erguer contra a corja partidária e dizer BASTA!
www.nenhum.org

Anónimo disse...

Tem muitíssima razão o Pacheco Pereira. Depois da morte de Inês isto ficou um cócozinho

Anónimo disse...

Não conheço o Pacheco Pereira, excepto daquilo que vou retirando do carácter pelo que emerde das suas prosas. Mas sei uma coisa: vê muita televisão. E não é só a RTP, vê também as outras todas. Por isso diz o que diz nesta prosalhada. Isto eu disse-o a brincar. Mas a sério digo o seguinte. Obviamente que o Pacheco Pereira não passa este tempo todo a ver TV, adivinha que é assim e só se preocupa com isto, com este tema, porque sabe, de burro não tem nada, que pressionando desta forma para melhorar os conteúdos da RTP, onde o efeito tende a ser mais possível, da pressão, digo, quando quem decide na televisão pública ceder a esta pressão vai ceder lembrando-se do Pacheco Pereira e nas alterações colocará aquilo que ao Pacheco Pereira interessa. Este homem tem ganho e dado a ganhar tempo de antena a si e aos seus como nenhum outro. Essa a única razão pela qual mantém esta pressão há anos a fio. Sem parar. E é assim nem que seja pelo facto de ser crível que o Pacheco Pereira tenha, sei lá, uns 100 canais em casa para se entreter sem ter que ver as pastichadas da RTP, SIC e TVI. E tem ainda os livros, os tais 50 mil. Que não os deve ter lido todos. Por isso, por tudo isto, acho que o homem é de uma eficácia tremenda. Mas porque será que, quanto mais eficaz é o Pacheco Pereira na TV e a formatar a TV, menos eficaz é o seu esforço para eleger Manuela Ferreira Leite. E, se Manuela Ferreira Leite perder ou ganhar por poucos, porque será que eu acho que a Pacheco Pereira o ficará a dever?? Hummm... Bom, seja como for, a rapaziada das agências anda distraída. Pacheco Pereira seria uma boa aquisição como consultor. Mesmo daqueles que não aparecem nas folhas de pagamento destas. Mais uma coisa certa: se o Pacheco Pereira não tivesse aquele não-sei-bem-o-quê que leva as pessoas a olhá-lo de esguelha, retirando eficiência à sua eficácia, seria um tipo muito perigoso. Assim é só divertido!!!

Unknown disse...

Não é um país - é uma sarjeta...

Anónimo disse...

RTP vai receber 223 milhões em 2008.
Puta que os p...
JB

Jorge Carreira Maia disse...

Há neste comentário de JPP um equívoco quando diz: «Esta é, obviamente, a melhor comunicação social, a melhor televisão para os governos, e o actual cuida bem que não lhe falte dinheiro para as suas quinhentas horas de futebol.» Fica-se com a ideia de que estamos perante uma certa orquestração e manipulação, e que seriam estas que produziriam a irrelevância.

Não é verdade, a irrelevância é a essência dos tempos actuais e as televisões, futebóis, imprensa e governos são a manifestação de uma irrelevância que os produz. Não há aqui uma deliberação dos protagonistas, mas o Zeitgeist impõe-se-lhes de forma imperativa. Mais, o espírito do tempo escolhe irrelevantes para, na sua irrelevância, promoverem o espírito da coisa.

Às vezes, incluindo neste blogue, passa a ideia de que uma mudança de regime alteraria alguma coisa. Pura ilusão, porque um regime é já uma emanação do espírito do tempo. E este é o tempo da irrelevância e qualquer outro regime seria uma emanção desta mesma irrelevância.

O que vale a pena ser meditado é a natureza do espírito do tempo que nos coube. Aquilo que se passa na vida pública, na privada e nas instituições deriva desse espírito. Gosta-se muito de falar em niilismo e em sociedade do vazio, mas tem-se sempre a esperança que a coisa que nos é dada a viver fosse diferente. Não é. A irrelevância só agora começa a tornar-se visível e vai continuar, cada vez mais depressa, a colonizar todas as áreas da vida. Só isso.

Anónimo disse...

Realmente, a televisão portuguesa é das piores do mundo. Muito pior que as televisões do terceiro mundo, muito pior que a televisão do Estado Novo. Há uma série de notícias internacionais que a televisão nunca fornece e as notícias a que JPP se refere tornaram-se insuportáveis; os seus responsáveis deveriam ser todos rapidamente substituídos, antes que seja tarde.

A programação e a informação das 4 televisões constituem um CRIME contra a cultura, contra o pensamento, contra a sanidade mental. Por muito menos do que isso foram muitas pessoas condenadas à fogueira.

Anónimo disse...

É neste pasto mole que as pessoas embrutecem e deixam passar o Acordo Ortográfico. Já que o pessoal gosta tanto de manifestaçõezinhas e participação cívica, não devíamos fazer alguma coisa contra isto?

Anónimo disse...

Mais um a quem cai a Máscara...

JPP, um ser humano a quem não faltam livros, transbordando conhecimentos, bom senso e inteligência, descobriu agora que o Futebol é Irrelevante, Currupto, e meio de Tráfico de Influências...

Tem passado demasiado tempo na Biblioteca...

Mas o Futebol, e o Desporto de Alta Competição em geral não são Irrelevantes... São um passo à frente relativamente às Guerras ancestrais, Arenas Romanas ou Touradas. São Guerras Simuladas. Este espírito guerreiro está no sangue das pessoas, no seu subconsciente, incluindo os intelectuais como JPP.

E será que JPP não consegue arranjar alguns dirigentes desportivos para ajudar na campanha de MFL? Olhe que dava jeito... "São verdes, não trestam"...

Conclui-se ainda que, naturalmente JPP não é um Democrata, ao não respeitar os gostos do Povo pelos Futebois, Telenovelas e Notícias Mórbidas... Só falta admitir que o cheiro a suor no Metro tb não é muito agradável. E afinal quem são os "Contribuintes"? E quem é que não vive à custa do Estado directa ou indirectamente? Que atire a 1ª pedra... oops, já atirou...

Anónimo disse...

Na vida portuguesa há coisas verdadeiramente curiosas.
No consulado do Professor Salazar, a oposição (socialistas de merda, merdas do socialismo - comunistas -, pessoas que não tinham ou a quem tinham sido retirados os tachos que usufruiam, pessoas que não sabiam o que queriam e o que eram) berravam por causa da censura que impedia que as pessoas aprendessem, que as forçava a viver na ignorância, imbecilizando-as com fado, futebol e Fátima.
Quando agora alguém protesta contra a liberdade actual que só nos proporciona futebol em doses maciças, há logo quem venha à estacada afirmando que se dá ao povo aquilo que ele gosta.
Então já não se preocupam que o povo esteja cada vez mais ignorante, mais imbecializado?