«Vários comentadores exibiram a sua indignação ou o seu desprezo pelas dúvidas que manifestei sobre a possibilidade de se estabelecer um regime democrático no Egipto. Esquecendo por agora os pormenores do caso, isto levanta um problema interessante: o problema da diferença entre a visão da política de um historiador académico e a de qualquer outro especialista. Sou um historiador académico e, ainda por cima, estudo principalmente o século XIX e o século XX. Como é natural, perante as manifestações da Praça Tahrir, como da Praça Vermelha ou, se me permitem, do Rossio, as minhas preocupações são sempre duas. Primeiro, perceber as sociedades em que essas manifestações sucederam. Segundo, comparar a situação de que elas nasceram ou criaram com o que sei sobre casos análogos, embora a analogia seja discutível ou ténue. Numa história geral de França, François Furet, encarregado do volume sobre a revolução, escolheu duas datas que, para ele, a limitavam: 1789 e 1870. Porquê? Porque achou, e provavelmente bem, que só com a III República (quase cem anos depois da tomada da Bastilha) se chegou a uma democracia estável, geralmente aceite pela população. E, mesmo assim, não contou com Vichy e com o voto feminino, que teve de esperar por 1944. Houve entretanto duas repúblicas (agora estamos na quinta), três monarquias, Napoleão (o grande) e Napoleão III (o pequeno). Este tumulto endémico em que viveu a França veio directamente da resistência ao Governo representativo e, a seguir, ao Estado laico e ao sufrágio universal da democracia. A França não é o Egipto. Pois não. A França passou, à sua maneira, pelo "iluminismo" e, na literatura, como na pintura, e parcialmente na filosofia, a França era o exemplo do mundo. Em França, existia uma aristocracia "liberal", uma burguesia "progressista" e um eleitorado urbano de "esquerda". E a própria Igreja se submeteu à autoridade civil. E, no entanto, o caminho para o que hoje nós tomamos por "normalidade" foi longo e foi duro. Pensar que 80 milhões de egípcios (na esmagadora maioria, muçulmanos), neste momento "governados" por uma junta militar anónima, encontrarão depressa o regime democrático que lhes convém é, com certeza, um testemunho de virtude cívica. Mas basta pensar em Portugal (ou em Espanha) para perceber que é também um acto de ingenuidade e esperança, que ignora militantemente a realidade e a história. Quanto ao que me disseram os novos missionários da liberdade, repete letra a letra o que os velhos me disseram em 1991, quando a URSS se desfez.»
Vasco Pulido Valente, Público
5 comentários:
Bom texto. Talvez a expressão "acto de ingenuidade" deva ser trocada por "acto de casmurrice", porque este mundo não é para ingénuos.
Eu diria "acto de (assustadora) ignorância".
A pensar como o VPV, a melhor opção seria os povos manterem a sua passividade perante ditaduras e regimes corruptos porque só daqui a 150 anos, como em França, é que teriam resultados democráticos! Uma tese extraordinária: mesmo a ex- União Soviética embora não seja, em muitos aspectos, uma democracia sempre vai evoluindo nesse sentido. Será que os povos não têm direito a se indignarem?
Pois, mas il faut ce qu'il faut.
Pelo menos, haja alguém com juízo. Bom texto.
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