28.2.05

MITTERRAND

É hoje posto à venda em França o livro de Mazarine Pingeot, Bouche Cousue (Editions Julliard), a "memória" da filha "ilegítima" de Mitterrand sobre seu pai. Existe uma vasta bibliografia "mitterrandista" plenamente justificada pela qualidade do objecto de estudo. Com a malícia soberana que o caracterizava, Mitterrand dizia que era o "último Presidente": "depois de mim só haverá administradores". Em parte não deixa de ter razão, da mesma forma que outros desparecidos ou retirados líderes mundiais podiam dizer o mesmo. De facto, os últimos anos têm sido caracterizados pela emergência de criaturas incaracterísticas nas cenas políticas domésticas e mundial. A ascensão do "homem médio" a lugares de destaque não trouxe mais felicidade ao universo. Pelo contrário, banalizou-se o ataque às elites e os povos passaram a estar entregues, de uma maneira geral, à mais confrangedora trivialidade. Mitterrand, um homem da "esquerda", com uma história pessoal e política suficentemente ambígua para ser grandiosa, constitui um dos últimos avatares da política com densidade. A recente descida de Bush à Europa foi uma excelente ocasião para tornar mediaticamente evidente a "qualidade" efectiva dos "produtos" actualmente em uso. A longevidade política de um Blair, por exemplo, já praticamente se confunde com uma sossegada carreira na função pública, feita de compromissos, de amabilidades inócuas e da ausência de melhores alternativas. Ou que dizer da colocação, pela mão dos actuais dirigentes europeus, de um "cinzentão" como Durão Barroso à frente da Comissão Europeia? De Chirac nem vale a pena falar. Por tudo isto, recorrer hoje à memória de Mitterrand pode parecer pura arqueologia política. Não por causa dele, mas essencialmente porque os mais jovens, sem o suspeitarem ou sequer se interessarem, mereciam e precisavam de dirigentes à altura dele. Nas suas contradições, no seu projecto de poder e no seu exercício, Mitterrand não pode deixar de ser uma enorme referência. Depois dele e de outros como ele, como diria Pessoa, faltará sempre qualquer coisa.

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