5.5.06

O ROTEIRO


Quando andava na universidade, lembro-me de colegas - rapazes e raparigas - que se dedicavam nas horas vagas a derramar caridade cristã no bairro pobre da Curraleira, em Lisboa. Eram quase sempre “betas” e “betos”, relativamente bem nascidos, uns, filhos de “novos ricos”, outros, todos devidamente industriados para a função pelo padre “vip” João Seabra. Esses rapazes e essas raparigas devem ser hoje homens e mulheres casados, de preferência com “famílias numerosas” e muito provavelmente ainda atraídos pelo “voluntariado” da adolescência. O estigma do “pobrezinho” sempre impressionou as classes ditas abastadas e, mesmo, as remediadas. Dormem sempre mais sossegadas uma vez praticado o “bem”. Não lhes interessa propriamente a irradicação da pobreza, a qual, a acontecer, as privaria da oportunidade de exibirem a sua infinita bondade e “consciência social”. Basta ouvir a dra. Isabel Jonet, do Banco Alimentar, para ficarmos esclarecidos. Neste contexto, Cavaco Silva tem razões para estar satisfeito. O seu “roteiro para a inclusão” foi bem acolhido por toda a gente, desde os que respiraram aliviados pelo facto de o Presidente se ter “esquecido” da crise, até aos que piedosamente crêem nas virtudes permanentes do “assistencialismo”. Não foi, aliás, por acaso que o “Expresso da Meia-noite” da semana passada acolheu o frade “progressista” Melícias para perorar sobre a “caritativismo” democrático. Nesta matéria, de Manuela Eanes a Maria José Ritta, passando por Guterres, não evoluímos muito desde os tempos da sra. D. Cecília Supico Pinto, a ilustre presidente do Movimento Nacional Feminino do dr. Salazar. Ao escolher um tema pacífico e relativamente “redondo” para estrear a sua versão das estafadas presidências abertas dos antecessores, Cavaco Silva procura “fugir” ao inevitável. E o inevitável chama-se economia e sanidade das finanças públicas sem as quais todos os “planos” e “roteiros” para a inclusão social não passam de vaga e generosa retórica. Para já, os indigentes, com ou sem abrigo, os velhinhos, as mulheres humilhadas e as criancinhas abandonadas, todos conhecidos pelo jargão de "mais desprotegidos" ou “mais carenciados”, têm garantido um batalhão de técnicos, de comentadores e de políticos para velar por eles. O pior é se, depois de produzidos os indispensáveis relatórios e de consumadas as "visitas" mediáticas aos abismos destas vidas, fica tudo mais ou menos na mesma. Aí, e definitivamente, o “roteiro” terá se ser, como lhe compete desde o ínicio, político.

(publicado no
Independente)

9 comentários:

Anónimo disse...

Cada um expiava os seus pecados, consoante as penitências que o Padre João Seabra decretava.
As minhas sempre foram consequência directa, e envolveram, necessariamente, os "pecados sexuais". E as suas, como foram aquilatadas?
Talvez, agora, perceba, porque ab initio fiquei "excluído" de praticar o assitencialimo: foi uma expiação bem mais tormentosa, a minha, mas mto mais gratificante...

Anónimo disse...

O quê? O Independente já voltou a ser um jornal de Direita?

Anónimo disse...

Foi à pala da "Reflexão Cristã" que a nossa Administração ficou tão moderna. Quer exemplos?
Era assim a modos que, uma opus deizinha para a pequena burguesia...de retornados e mercieiros...

Anónimo disse...

Tudo para si merece ser alvo do ataque viperino.
Nada escapa. Tudo tem pecado. Zero virtudes (presumo que escapam as suas).
O poder das palavras, no seu caso (aparentemente patológico ou obsessivo), é directamente proporcional ao vazio das acções.
Lamento. Saia da sombra e procure enxergar também, pelo menos de relance, um pouco de luz.

Anónimo disse...

Isto demonstra que o passado recente do conservadorismo liberal,está aí e ninguem os cala...Irrraaa que só conseguem é ser reconhecidos assim...e depois a culpa é do eleitorado...que não os ouve...nem quer saber...

Anónimo disse...

parabens pelo texto!
seria desnecessário comentá-lo mas, não posso deixar de me repetir para afirmar que a canalha que cria a miséria e a exlusão vem, tentar "fazer figura" ao anunciar que vai combatê-la!!!!

Anónimo disse...

Efectivamente, não há nada como a lei da selva.

Eu também gosto muito dela, na condição de ir fortemente armado.

Nestas condições saio de lá com peles e marfim, e quanto mais mato, mais ganho pois estes bens tornam-se escassos (como o petrólio, que graças ao seu aumento muito tem auxiliado o estado a ganhar receitas).

A chatice é quando não tenho armas, não é?

Anónimo disse...

Por favor, faca uma exame de consciencia! As palavras dos anonimo das 8:56 podem ser um pouco duras, mas capturam o essencial da verdade.

O senhor disse sobre Ratzinger, em tom de elogio: "Gosto de pouca gente e desconfio da natureza humana, como Ratzinger". Que Ratzinger desconfie da natureza humana, parece-me ser obvio e um resultado natural da sua experiencia pessoal. Agora que goste de pouca gente, parece-me ser altamente duvidoso, pois ele e' o chefe de uma religiao que tem como maxima "amai-vos uns aos outros". Alem desta argumetacao algo abstracta, acresce que os que conviveram com Ratzinger dizem que ele e' uma pessoa amavel e benquista. Tudo isto vem a proposito
do seu ataque a pratica crista da caridade, o que me parece estar em grande contradicao com a sua mais ao menos confessada admiracao por Ratzinger. E que o amor esta no centro do pensamento de Ratzinger. Como ele lembra, o amor e o unico criterio que decide se a nossa vida valeu a pena ou nao.

Mesmo que alguem faca caridade por causa de uma mesquinha ma consciencia em relacao a sua fortuna pessoal, essa pessoa merece muito mais louvor do que o indolente bem consigo mesmo mas que nada faz.

Quanto aos "pobrezinhos", infelizmente muitas vezes nao podem esperar pela implementacao de uma qualquer teoria economico-social que erradique totalmente a pobreza (a proposito, Jesus era muito realista quanto lembrou a irrazoabilidade de um tal objectivo). Enquanto os amanhas que cantam nao chegam (sejam eles marxistas ou ultra-liberais) e' preciso que alguem lhes mate a fome, literalmente.

Enfim, parece-me ser uma grave falta para com os outros denegrir quem de boa-fe procura fazer o bem.

Peco desculpa pela falta de acentos,

Alfredo

Anónimo disse...

se há pessoas na rua porque não tentar-mos ajudar? as palavras do JG foram bastante azedas.